Dominado por liberais, o Legislativo da Cidade do México deverá legalizar o aborto em poucas semanas. O projeto de lei tornaria esta cidade uma das maiores na América Latina a romper com a longa tradição de mulheres recorrerem a clínicas ilegais e parteiras para encerrar gravidezes indesejadas.

Mas a medida provocou um debate selvagem e abalou este país altamente católico romano em suas raízes. Nos últimos dias, o projeto de lei tem dominado as conversas das mesas de jantar familiares ao gabinete do presidente. Celebridades e políticos de todas as linhas escolheram um dos lados, disparando dardos verbais uns contra os outros. Grupos católicos e feministas promoveram protestos e marchas concorrentes.

Os contornos do debate são familiares para os veteranos de batalhas semelhantes nos Estados Unidos. Mas a lei da Cidade do México seria pioneira na América Latina, onde a maioria dos países só permite o aborto sob condições excepcionais, como quando a vida da mãe está em risco ou quando a mãe é vítima de estupro ou incesto. Apenas em Cuba, Porto Rico e na Guiana as mulheres podem fazer aborto livremente durante o primeiro trimestre. Três países -Chile, Nicarágua e El Salvador- o proíbem sem exceção.

O projeto da Cidade do México tornaria legal um aborto durante o primeiro trimestre por qualquer razão. O procedimento seria gratuito nas instalações de saúde municipais. Hospitais privados seriam obrigados a realizar o aborto a qualquer mulher que o pedisse, mas médicos com objeções religiosas ou éticas não seriam obrigados a realizá-lo.

Lideres católicos e representantes da Igreja condenaram os proponentes como “assassinos de bebês” e alertaram que a lei poderá provocar violência contra os médicos que concordarem em fornecer o serviço. Um grupo de advogados católicos está lutando para a realização de um referendo municipal sobre o assunto, esperando evitar a votação na Assembléia Legislativa municipal.

O debate no México ameaça reviver as tensões entre o presidente Felipe Calderón, um conservador contrário ao aborto, e o esquerdista Partido da Revolução Democrática, cujo candidato perdeu por margem estreita a eleição do ano passado e ainda se recusa a reconhecer a derrota. Calderón tentou se manter fora da disputa, mas ele disse na semana passada: “Eu sou um defensor da vida”. Mas seu ministro da Saúde e outros representantes do conservador Partido Ação Nacional estão no meio dela. Eles propuseram a simplificação de leis de adoção, a melhoria da educação sexual e o fornecimento de subsídios para mães solteiras como alternativas.

Enquanto isso, esquerdistas e feministas acusam os oponentes de virarem as costas para a realidade. Eles dizem que milhões de mulheres, como de fato em grande parte da América Latina, já ignoram a lei e optam por abortar os fetos, freqüentemente em clínicas ilegais precárias ou nas casas de parteiras. Elas correm risco de infecção, esterilidade e às vezes de morte.

“As mulheres estão morrendo, acima de tudo as mulheres pobres, por causa de abortos inseguros”, disse Maria Consuelo Mejia, diretora da Católicos pelo Direito de Decidir. “O que gostaríamos é que estas mulheres nunca tivessem que enfrentar a necessidade de um aborto, mas nesta sociedade isto é impossível no momento. Não há acesso a informação, a métodos anticoncepcionais. Nem a maioria das mulheres tem o poder de negociar o uso de preservativos com seus parceiros.”

Os conservadores respondem que aborto equivale a assassinato. “Esta lei é uma lei que custará muitas vidas”, disse Jorge Serrano Limon, chefe da Provida, um grupo antiaborto. “Se for sancionada, ela derramará muito sangue, o sangue de bebês recém concebidos no útero materno.”

Serrano Limon e outros oponentes também contestam que a lei colocará um fim aos abortos ilegais. O procedimento carrega um forte estigma aqui, eles disseram, a ponto de independente de ser legal ou não, muitas mulheres procurarão clínicas ilegais para manter sua condição em segredo de amigos e parentes.

O projeto de lei, marcado para votação em 19 de abril, provavelmente será aprovado pela Assembléia Legislativa de 66 membros com maioria sólida, e o prefeito, Marcelo Ebrard, disse que a sancionará, disseram seus proponentes. Ele legalizaria o aborto na capital, que tem 8 milhões de habitantes, e poderia tornar a Cidade do México um ímã para mulheres de todos país à procura de aborto.

O debate em andamento no México no momento seria praticamente impensável há uma década, disseram proponentes da lei. O assunto é tão tabu que a Igreja certa vez excomungou atrizes e produtores de televisão por o abordarem em uma novela.

“As pessoas estão conversando abertamente sobre aborto pela primeira vez no México”, disse Lilian Sepulveda, uma advogada do Centro pelos Direitos Reprodutivos, com sede em Nova York, que monitora o assunto na América Latina. “É histórico.”

Ainda assim, legisladores na Assembléia estão se preparando para uma luta feia e cada lado tem promovido fortes comícios. Várias centenas de pessoas a favor da lei marcharam na tarde de quinta-feira pelas ruas estreitas do centro histórico.

A multidão era composta na maioria por mulheres, principalmente de grupos de direitos da mulher e partidos políticos que apóiam a legalização do aborto. No domingo passado, o cardeal Norberto Rivera estava entre os líderes da Igreja que se juntaram a uma marcha de protesto pelo bulevar que leva à Basílica da Virgem de Guadalupe. Apesar da proibição à participação do clero na política, o cardeal disse a uma multidão de vários milhares: “Nós estamos unidos aqui para que ouçam nossa voz, a voz da vida”.

“Eles dizem que é um problema do direito da mulher sobre seu corpo, mas eles ignoram o direito sobre seus corpos que todos os meninos e meninas abortados têm”, ele disse posteriormente em sua homilia. “Eles lhes negam o direito fundamental, que é o direito à vida.”

Victor Hugo Cirigo Vasquez, o líder da maioria na Assembléia, disse que muitos dos 34 legisladores de seu Partido da Revolução Democrática, que apóia a medida, receberam ameaças de morte e mensagens em seus celulares, assim como e-mails desagradáveis. Foi dito a eles que seriam excomungados ou que iriam para o inferno caso aprovassem a lei. “Há uma campanha de linchamento orquestrada por grupos religiosos da extrema direita”, ele disse. “É uma campanha suja que está endurecendo.”

O principal autor do projeto, Jorge Diaz Cuervo, do Partido Alternativo, disse que os líderes da Igreja violaram a lei mexicana ao interferirem no processo legislativo. “Este é um Estado secular”, ele disse. “Não há motivo para impor as crenças religiosas de uma Igreja a 100% da população.”

Fonte: The New York Times

Comentários