Por um vídeo de 30 segundos imitando uma oração, quatro adolescentes cristãos foram condenados a cinco anos de prisão. Por criticar o sacrifício de animais em uma celebração islâmica, uma escritora recebeu três anos.
Os tribunais egípcios têm distribuído, nos últimos anos, condenações baseadas no artigo 98 de seu Código Penal, que pune a blasfêmia.
E a frequência desses julgamentos, criticados por organizações de defesa dos direitos humanos, cresce sob um governo laico: 21 punições em 2015, contra três em 2011, durante a revolução que derrubou o então ditador Hosni Mubarak.
Após a queda de Mubarak, egípcios elegeram o islamita Mohammed Mursi, ligado à Irmandade Muçulmana, para presidente. Descontentes com suas políticas, vistas como conservadoras demais, milhões foram às ruas. Em 3 de julho de 2013, o Exército depôs Mursi.
Eleito no ano seguinte como alternativa à política islamita, o militar Abdel Fattah al-Sisi tem no entanto ampliado a repressão usando a religião como argumento.
Um dos casos mais emblemáticos é o dos adolescentes do vilarejo de Bani Mazar, ao sul do Cairo. Em 2015, eles gravaram um vídeo ridicularizando a organização terrorista Estado Islâmico. Na cena, imitavam a reza islâmica.
Meses depois, colegas muçulmanos viram o arquivo.
O povoado enfureceu-se diante do que foi considerado desrespeito ao islã. Os jovens foram acusados de blasfêmia e condenados a cinco anos de prisão. Hoje estão foragidos em outro país.
A gravação, dizem familiares, era uma reação à morte de 21 cristãos na Líbia. O alvo era o terrorismo, e não o islã, segundo a família.
“Cinco anos de cadeia para uma criança?”, lamenta o pai de Muller Atef, 17, em entrevista à Folha. “É culpa do governo. São eles que estão fazendo isso com a gente.”
Maher Naguib, advogado dos jovens, e cristão, ecoa Atef. “Os extremistas tentam colocar seu radicalismo religioso em prática, e o país os ajuda. Não há justiça.”
[b]DEFENSOR DO ISLÃ
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O artigo 98 proíbe o desrespeito ao judaísmo, ao cristianismo e ao islã. Mas o texto é aplicado em especial contra cristãos, o que reforça as críticas de membros dessa comunidade, que temem perseguição com apoio do Estado.
Especialistas tentam entender o incremento das condenações sob a “lei da blasfêmia”. Uma possibilidade é que o Estado, após derrubar um governo religioso, tenta acalmar as populações mais conservadoras apresentando-se como defensor do islã.
“O governo quer mandar uma mensagem ao povo, de que quer aplicar a lei islâmica com mais esmero do que os próprios islamitas”, diz o ativista cristão Ishak Ibrahim, da Iniciativa Egípcia para os Direitos Pessoais.
A máquina estatal sabe também, diz Ibrahim, que diante de uma grave crise econômica não é capaz de garantir direitos políticos ou bem-estar social. “Por isso, dizem que podem proteger os valores da sociedade.”
Mas os gestos do governo funcionam, afirmam analistas, porque ressoam em uma sociedade em si crescentemente conservadora. Nas últimas décadas, a população egípcia tem dado mais mostras de sua religiosidade.
Para Ibrahim, uma das razões é o retorno das levas de trabalhadores que foram ao golfo Pérsico e, ali, tiveram contato com interpretações mais radicais do islã. “Eles voltaram ao Egito e aplicaram seus sistemas de valores.”
Também porque, diante do fracasso do Estado em garantir educação e saúde de qualidade, instituições religiosas preencheram esse vazio.
Há ainda a sensação, nas comunidades conservadoras, de que cabe a elas a defesa da religião. Há casos de blasfêmia levados à Justiça por cidadãos, e às vezes a punição nem chega ao governo, com ondas periódicas de ataques a igrejas e expulsões de famílias cristãs de suas vilas.
[b]BLINDAGEM SECTÁRIA
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O artigo 98 é aplicado também a muçulmanos, em menor escala, e ativistas temem que ele venha sendo usado para punir a sociedade civil.
Em junho, movimentos sociais reuniram-se e pediram o fim da legislação.
O governo egípcio negou a petição, afirmando que o artigo protege o país da violência sectária e não interfere na liberdade de pensamento.
[b]Fonte: Folha de São Paulo[/b]