Em uma hora na qual a maioria das pessoas está dormindo ou pecando, os devotos do culto da Guerra Espiritual se reúnem no frio santuário propiciado por uma igreja de bairro a fim de combater o mal.
Os estudantes, taxistas, donas de casa e empresários, todos cristãos, a maioria dos quais vindos da África de fala francesa, participam de um culto a 0h, quatro vezes por semana, a fim de pedir proteção contra a luxúria, ira, medo e tristeza.
Eles cantam. Oram fervorosamente. Por fim, brigam contra aquilo que crêem ser a principal causa dos problemas da vida: as feiticeiras e demônios cujas maldições prejudicam suas famílias, cidades e nações inteiras na África, e na opinião deles os seguiram ao novo país, dificultando a busca de emprego, a manutenção da saúde e a sobrevivência.
“Há certas situações que é preciso tratar à noite, porque no culto da guerra espiritual, os demônios – espíritos que enfeitiçam pessoas – preferem esse horário para trabalhar”, disse Nicole Sangamay, 40 anos, que veio do Congo em 1998 para estudar nos Estados Unidos, e agora é co-pastora do culto. “E essa é a hora que escolhemos para anular o que eles fazem”.
Fundado por um casal do Congo, o culto é um dos muitos que atendem à crescente diáspora africana instalada nos Estados Unidos e em outros países, especialmente para combater a feitiçaria. Na maioria das demais igrejas, diz Sangamay, não se pode nem comentar o assunto, quanto mais orar para combater seus efeitos.
Essas outras igrejas possivelmente argumentarão que a preocupação com feitiçaria é uma relíquia das velhas crenças africanas, um resquício preocupante de paganismo. Mas os estudiosos dizem que na verdade estamos diante de uma forma profundamente africanizada de cristianismo. O culto da Guerra Espiritual se considera pentecostal, e como muitos outros pentecostais acredita em uma batalha entre Deus e Satã, ou, como eles preferem, da Bíblia contra a feitiçaria, como o conflito que determinará a direção em que o mundo avança.
“A religião para eles não é como a ocidental”, diz Jacob Olupona, professor de tradições religiosas africanas na Escola de Teologia da Universidade Harvard. “Não é vista simplesmente como significado e referência em uma ordem transcendental. A religião é vista como algo que funciona. Existe uma visão utilitária a respeito, e as pessoas procuram por soluções sob ângulos e maneiras diferenciados”.
Os membros do culto dizem que, porque seus ancestrais não eram cristãos, viviam amaldiçoados, e que a África também vive uma maldição. Agora, os pecados dos pais recaem sobre os filhos.
Em uma noite tempestuosa de segunda-feira, os fiéis estavam chegando ao espaço que o culto aluga na Deeper Life Bible Church, alguns ainda atordoados do cochilo necessário a se manterem acordados até a madrugada.
Rene Tameghi ajeitou sua bíblia e seu livrinho de anotações na cadeira antes de se ajoelhar e começar a rezar. Para Sita Waba, que começa a trabalhar às 8h30min, as duas horas de oração são fonte de força, ela diz, com uma xícara de café nas mãos. Alguns dos pais carregavam crianças adormecidas no colo.
“Repitam: ‘Jesus, aqui estou nesta noite'”, instruiu Jose Shinga à congregação, de um pequeno púlpito.
Os homens e mulheres, ainda usando capas de chuva, sobretudos e chapéus, cantaram em francês uma “aleluia”, batendo os pés, batendo palmas e se movendo ao ritmo da música. O volume parecia ser maior do que as 25 pessoas reunidas no culto noturno, um público equivalente a um quarto daquele que a igreja recebe nas manhãs de domingo. Os vizinhos chegaram a chamar a polícia para reclamar do barulho, e os policiais pediram que os fiéis controlassem o volume.
Um dia antes, os fiéis haviam começado um jejum. Shinga perguntou-lhes por que era necessário jejuar no final do ano, e ele mesmo respondeu: “É essa a época na qual Satã deseja sacrifícios, sangue, e pedimos a Deus que nos proteja, e a nossas famílias”.
Quando Shinga pediu que os fiéis orassem pelo perdão, os apelos ruidosos dos homens e mulheres ecoaram pela sala como um trem rugindo.
As pessoas repetiam relatos sobre casos de câncer e infertilidade curados pelo culto da Guerra Espiritual. Mas poucos desses acontecimentos foram registrados até agora em Washington, disse Sangamay, porque a congregação foi criada há apenas dois anos. Ainda assim, diz, as pessoas costumam procurá-la, e ao seu marido, para uma “terapia da alma”, que envolve oração e jejum. O culto não aconselha que as pessoas rejeitem formas mais convencionais de tratamento, como a medicina ou a terapia psicológica.
“A cada dia, na aldeia ou mesmo aqui, as pessoas nos amaldiçoam”, diz Yemba Shinga, o marido de Jose Shinga e o segundo pregador da noite. “Elas se esforçam para que você não consiga emprego, se veja separado de sua família ou sofra uma doença incurável”.
“Mas vocês sabem como orar a Deus. Digam-lhes ‘c’est fini! Não vou repetir a história dos meus ancestrais, do passado, do demônio!'”
E os fiéis respondiam: “C’est fini!”
A cada oração, os homens jovens e mulheres de meia-idade davam socos e chutes no ar, ou se levantavam das cadeiras, trêmulas. Socavam as palmas das mãos. Amaldiçoavam o demônio em todas as suas formas. Fingiam estar amarrando Satã. Uma criança acompanhava os adultos que batiam os pés no chão. Yemba Shinga perdeu o fôlego, em seu esforço por animar os fiéis. As orações se encerraram. Eles haviam feito todo o possível.
“Declaramos o lugar abençoado”, disse Jose Shinga, enquanto os fiéis se ajeitavam em suas cadeiras. “Obrigado, Senhor, Jesus Cristo. Vão na paz do Senhor”.
As pessoas abotoavam os casacos, para enfrentar o frio da noite, prontas para o combate.
Fonte: The New York Times