O martírio e a perseguição de cristãos dizem respeito não só à igreja primitiva, mas acompanharam todos os ramos do cristianismo durante a História. A história da Igreja é também a história de sua perseguição. A maior parte da perseguição e morte de cristãos pode ser atribuída a um destes três grupos: Estados islâmicos, Estados seculares totalitários e países combatendo o trabalho missionário cristão.
1. A perseguição em países islâmicos
Desde a fundação do islamismo e a expansão dos primeiros impérios muçulmanos pelo Império de Otomano e seus “satélites”, os cristãos foram conquistados, mortos, escravizados ou desprezados como cidadãos de segunda classe. Hoje, essa espécie de perseguição é mais óbvia no Irã, na Arábia Saudita, nos Emirados Árabes, no Paquistão, no Afeganistão, no Iraque, no Sudão e no norte da Nigéria; e em menor extensão em países mais secularizado como o Egito, a Indonésia, a Tunísia, e a Turquia.
Constantinopla foi conquistada e destruída pelos otomanos em 1453, que então ocuparam grandes áreas do Império Bizantino com suas igrejas ortodoxas, à medida que conquistavam as regiões de muitas igrejas orientais mais velhas, como os coptas no Egito ou os cristãos siríacos.
Os cristãos eram considerados cidadãos de segunda classe; contudo, a política da opressão modificou-se de sultão para sultão — da perseguição severa e cruel à pressão sutil por meio de imposto extra, a falta do acesso à educação e distúrbios. A perseguição atingiu o ápice apenas no fim do Império de Otomano e no começo da república turca moderna, quando os armênios foram mortos diretamente ou por inanição e doença enquanto nas marchas forçadas em 1895, 1908, e de 1909 a 1916 (chegando ao ponto máximo em 1915).
Entre 1909 e 1916, cerca de 155 milhões de armênios morreram. Semelhantemente, os cristãos assírios enfrentaram a perseguição em 1895, em 1933 e novamente nas décadas de 1970 e 1980. No fim das contas, 750 mil assírios morreram. Hoje, apenas 4 mil assírios e 40 mil armênios vivem na Turquia.
Quando a Turquia teve de devolver Esmirna à Grécia em 1921, severos programas de perseguição contra os gregos na Ásia Menor resultaram em dois milhões de mortos. Em 1922, outros 120 mil gregos foram mortos em Esmirna em um único dia. Isto pôs fim a 4 mil anos da história dos gregos na Ásia Menor. A porcentagem total de cristãos na Turquia também diminuiu de 30% antes da Primeira Guerra Mundial a 0,3 % hoje.
2. Perseguição por governos ateus e seculares
Desde a Revolução Francesa, governos nacionalistas e totalitários (como o México), passando por socialistas nacionais (como na Alemanha) e déspotas africanos (como Idi Amin em Uganda), a governos totalitários de esquerda (principalmente em países comunistas como ex-União Soviética, China, Vietnã ou Leste Europeu) os cristãos foram perseguidos.
Desde 1989, o número de países comunistas diminuiu muito; contudo, essa espécie de perseguição ainda é óbvia hoje na China e na Coréia do Norte e em menor grau em Cuba e na Líbia.
Durante o Terror, na Revolução Francesa, a guerra contra a religião no século XVIII alcançou o ápice em 1792 com o assassinato de 200 clérigos e com a fuga 30 mil pessoas do país.
Em 1793, a chamada “descristianização” começou: igrejas foram fechadas ou destruídas, leis foram modificadas, sacerdotes e freiras foram forçados a se casar e as posses da Igreja foram saqueadas. Milhares de sacerdotes foram deportados para a Guiana ou para ilhas-prisões da França em 1797.
O acordo entre França e Vaticano reduziu a perseguição e a “separação entre Igreja e Estado” de Napoleão terminou em 1805 — embora o cristianismo nunca mais desempenhasse um papel principal na política, educação ou vida pública da França.
A maior perseguição contra os cristãos na História aconteceu durante os 70 anos da União Soviética (1917-1989). Em 1917, Lênin começou a sua guerra contra as igrejas ortodoxas e católicas, causando em 1922 a morte de 8.100 clérigos e, em 1928, uma decisão de que os comunistas apagariam qualquer religião.
Apenas em Moscou, 150 igrejas foram destruídas, 300 igrejas foram redirecionadas para fins seculares e 200 bispos ortodoxos foram mortos. Daí até 1943, aproximadamente 15 milhões de cristãos morreram – muitos não diretamente por causa da perseguição contra a Igreja, mas contra os “kulaks”, os supostos “inimigos políticos”.
Além da igreja ortodoxa russa e da católica, também foram vítimas da perseguição a igreja alemã, a lituana luterana e batista e a menonita.
Durante a guerra contra a Alemanha, a restrição contra o cristianismo foi suavizada. Ainda assim, uma forma severa de perseguição continuou nos Estados-satélites Letônia e Ucrânia, principalmente contra a Igreja católica.
De 1945 a 1956, a perseguição intensificou-se novamente em toda a Europa comunista. Era raro que os cristãos fossem diretamente assassinados. Em vez disso, eram enviados aos gulags e a clínicas psiquiátricas.
Nikita Khrushchev fechou 13 mil igrejas e 53 mosteiros ortodoxos russos. Na Hungria e na Iugoslávia foi feito um acordo entre Estado e Igreja; em todos os outros países, a perseguição intensificou-se até a década de 1980.
A perseguição aos cristãos, muitas vezes, mistura-se a problemas econômicos, políticos, sociais e raciais.
Para selecionar mais um exemplo, a perseguição contra a Igreja católica no México sob Benito Juarez (1861-1872) e Plutarco Calles (1926-1938), bem como na Espanha (1931, 1936-1939), ocorreu em um contexto revolucionário social, pois a Igreja Católica era a maior proprietária de terras e foi vista como inimiga do pobre.
Mas esse é só um lado da moeda. O outro é o fundamento ateísta da luta contra a Igreja.
No México, todos os bispos tiveram de deixar o país. Os padres não tinham acesso à educação, e a educação dos jovens foi monopolizada pelo governo ateu. O número de mártires no México durante esse período é de aproximadamente 5.300.
Ao mesmo tempo, na Espanha, 2 mil igrejas e mosteiros foram destruídos e 6 mil clérigos assassinados.
3. Reação ao trabalho missionário cristão e ao cristianismo como religião ocidental*
A maior parte dos exemplos da perseguição pode ser encontrada na Ásia, com ocorrências adicionais (mas em extensão menor) na África.
Na história asiática, vemos os cristãos sendo perseguidos em períodos:
• Japão: 1587-1635; o cristianismo foi proibido de 1635-1854;
• China: 1617, 1665, 1723- 1724, 1736, 1811, 1857, 1900-1901;
• Coréia: 1784, 1791, 1801, 1815, 1827, 1839, 1846, 1866, 1881, 1887;
• Madagascar: desde 1835.
Os exemplos de hoje na Ásia são: China, Coréia Norte, Vietnã, Nepal, Sri Lanka e certas regiões da Índia.
Em alguns países asiáticos, como Indonésia e Índia, a perseguição tronou-se mais severa recentemente. Contudo, em outros países asiáticos, ela existe há séculos.
Perseguição de cristãos a cristãos
Também houve considerável perseguição de cristãos praticada por outros cristãos. O cristianismo não é um grupo homogêneo, e confissões diferentes combateram-se muitas vezes na guerra, valendo-se do sistema criminal ou de outros tipos da perseguição.
Em 1179, o III Concílio Lateranense ordenou que legisladores seculares punissem hereges. Em 1215, o IV Concílio Lateranense deu a mesma ordem aos bispos.
O papa Gregório IX estabeleceu a Inquisição em 1231. Na era medieval, a Igreja Católica Romana ou reis católicos cruelmente suprimiram movimentos de reavivamento, bem como outros movimentos.
Ainda é discutido quanto eles de fato se diferenciaram do cristianismo ortodoxo (cátaros, albigenses, béziers e outros).
Os movimentos da pré-reforma, como os waldenses ou os hussitas, foram subjugados com fogo e espada. As Cruzadas, muitas vezes, guerrearam contra igrejas orientais ortodoxas.
Depois da Reforma, católicos lutaram e perseguiram Protestantes, especialmente depois da chamada “Contra-Reforma”, em 1546.
No dia de São Bartolomeu de 1572, o rei francês encomendou o assassinato de todos os protestantes da França. Na Espanha e na Itália era praticamente impossível viver como protestante durante séculos.
Ao mesmo tempo, contudo, os protestantes contiveram os católicos – embora, muitas vezes, não de forma tão cruelmente ou sistematizada (com a exceção da Reforma Inglesa, em que qualquer ato da lealdade ao papa foi considerado traição de acordo com os soberanos anglicanos).
Tanto católicos como protestantes na Europa cruelmente reprimiram os anabatistas e movimentos semelhantes, levando muitos seguidores a emigrar à América e outros países em busca de liberdade religiosa.
À medida que a idéia da liberdade religiosa ganhava terreno entre os evangélicos em meados do século 19 (entre os protestantes conservadores depois da Primeira Guerra Mundial; entre católicos depois de Segunda Guerra Mundial; e entre ortodoxos recentemente), a perseguição de cristãos contra cristãos se esvai gradualmente e não acontece mais em grande escala atualmente.
A perseguição dos cristãos é um tópico central e uma realidade cruel, mas onipresente, no Velho e Novo Testamento. Ela está relatada na história da Igreja e também na História geral.
Essa é uma realidade mundial hoje, em termos espirituais, estatísticos e políticos. É tempo de dar-lhe o espaço que merece em nosso ensino, pensamento e ação.
Perseguição e missão – 2ª parte
Seguindo a tradição velho-testamentária (por exemplo, Jó 31.29; 42.8-9), o Novo Testamento nos exorta a pedir a graça de Deus sobre os perseguidores e a testemunhar a eles (Mt 5.44, Lc 6.27-28; 1Co 4.12).
O testemunho mais impressionante foi a oração de Jesus quando disse que Deus terá misericórdia de seus perseguidores (Lc 23.34). O primeiro mártir cristão, Estevão, orou de maneira parecida (At 7.60). Ambos pedidos foram atendidos, já que alguns dos perseguidores mais tarde se converteram (por exemplo, o centurião romano em Lc 23.47 ou Paulo em At 9.1-18).
A história da igreja está cheia de relatos de cristãos martirizados como Policarpo (conhecido porque orou por aqueles que o torturaram).
A Igreja contemporânea tem também seus próprios exemplos. Em 1913, o evangelista indonésio Petrus Octavianus relatou a história de um missionário da região de Toradya, no sudeste de Java. Cinco membros de uma tribo queriam matar o missionário, mas permitiram-lhe que orasse antes por eles. Ele orou em alta voz, pedindo que fossem salvos.
Três deles foram banidos para Java, converteram-se na prisão, e retornaram para Toradya, onde fundaram uma igreja que mais tarde, em 1971, tornou-se a quarta maior da Indonésia.
Não nos esqueçamos dos cinco missionários martirizados no Equador pelos aucas na década de 1960. Muitos dos assassinos tornaram-se anos depois os pilares da Igreja entre os aucas.
Muitos perseguidores de cristãos tornaram-se, tempos depois, cristãos. O mais conhecido deles é Paulo. Ele freqüentemente referia-se à perseguição que perpetrara conta a Igreja (1Co 15.9; Gl 1.13; 23.24; Fp 3.6; 1Tm 1.13; At 9.4-5; 22.4,7-8; 16.11, 14-15).
Jesus, missões e perseguição
Falar de Jesus é falar de missões, sofrimento e perseguição. A profecia de sua morte acompanha inteiramente seu ministério na Terra (Mt 10.17-19; 16.21; 17.22-23; 26.2).
Os detalhes da narrativa da Paixão ocupam as maiores seções dos evangelhos. Paulo consistentemente apresentou Jesus como o mártir arquétipo e como exemplo para todos os cristãos. Desse modo, não é de se surpreender que os escritos da igreja primitiva a respeito do martírio consideravam Jesus como o protótipo do mártir.
Jesus é o verdadeiro objeto de toda perseguição. Por essa razão, Jesus pergunta a Saulo: “Saulo, Saulo, por que me persegue?” (At 9.4; 22.7; 26.14), e se identifica como “Jesus, a quem você persegue” (At 8; 9.5,22; 26.15).
A verdadeira razão para o sofrimento dos cristãos é Cristo, já que é o foco nele que justifica a oposição. Martinho Lutero disse certa vez: “Quanto mais claramente a Igreja reconhecer Cristo e testificar a respeito dele, mais certo se tornará o fato de que ela encontrará contradição, confrontação e ódio do anticristo”.
O próprio Jesus freqüentemente lembrava seus discípulos de que seriam perseguidos por sua crença enquanto pregassem o evangelho (Mt 10.22; 16.25; Lc 21.12).
Sem a ofensa da cruz, não haveria missões, mas também não haveria perseguição (Gl 5.11). Paulo acusou seus adversários de serem circuncidados apenas para escapar da perseguição (Gl 6.12,14). De fato, a palavra da cruz é loucura para os que não crêem (1Co 1.18), impedimento para os judeus, e tolice para os gentios (1Co 1.23). Entretanto, é também o centro da história da salvação (1Co 1.23, 2.2). Dessa forma, a mensagem da cruz é a glória do evangelho, assim como sua loucura (1Co 1.17-25; Gl 6.11-14).
O Espírito Santo, verdadeiro missionário, e a perseguição
Sem o Espírito Santo, todas as missões são fúteis e não servem para nada. Então, como missões e perseguição estão intimamente relacionadas, o Espírito Santo também possui um papel vital na experiência com a perseguição.
Ele é o “Consolador” (Jo 16.16,26) e dá aos cristãos a força para enfrentar a perseguição e a alegria para regozijar nas condições mais difíceis (1Pe 4.14). O espírito da glória, que repousou sobre o Messias (Is 11.2) traz sua glória a todos que aparentemente perderam-na, como Estevão, descrito por Lucas como aquele que “estava cheio do Espírito Santo” ([At 7.55) durante sua defesa e execução, e como aquele que viu a glória de Deus no céu.
Jesus prometeu sabedoria aos perseguidos quando estivessem diante de juízes e necessitassem testemunhar. O Espírito Santo, de fato, os instruiriam naquilo que tivessem de falar (Lc 21.12-15; Mt 10.19-20).
William Carl Weinrich* observa que raramente Jesus falou da função do Espírito Santo, entretanto, quando o fez, descreveu-o como o Auxiliador e Consolador em meio à perseguição (Mt 10.17-20; Mc 13.9-11; Lc 21.12-19). Não é de se estranhar que Paulo atribuía sua perseverança ao Espírito Santo (2Co 6.6; Fp 1.19; 1 Ts 1.6-7).
A Igreja primitiva era constantemente advertida de que somente o Espírito de Deus poderia dar sabedoria e força aos perseguidos para que resistissem.
Notas
3. Konrad-Adenauer-Stiftung: Berlin. 1981. Spirit and Martyrdom. Washington D.C.: University Press of America.
* Os países islâmicos não foram incluídos aqui.
Sobre o autor
Dr. Thomas Schirrmacher é professor de ética e sociologia da religião na Alemanha e na Turquia. Ele também é presidente do Seminário Teológico Martin Bucer, representante de direitos humanos da Aliança Evangélica Mundial e diretor do Instituto Internacional da Liberdade Religiosa (Bonn, Cidade de Cabo, Colombo).
Schirrmacher tem quatro doutorados (teologia, antropologia cultural, ética, e sociologia da religião).
Tradução: Daila Fanny
Fonte: Portas Abertas