Depois dos escândalos que abalaram a Irlanda, os Estados Unidos ou ainda a Áustria, a Igreja Católica belga começou a desvelar, na sexta-feira (10), os casos de pedofilia que a atingiram nas últimas décadas.
A comissão de inquérito instaurada para cuidar das queixas de abusos sexuais de fato publicou o resultado de suas investigações, e em especial os depoimentos de 124 vítimas.
Frente a essa dor persistente, Peter Adriaenssens, o autor do relatório, não hesitou em falar do “caso Dutroux da Igreja”. “É claro, os fatos revelados são antigos. A sociedade evoluiu. Os pais, a sociedade, hoje em dia estão mais atentos aos direitos das crianças”, disse. “Mas nada indica que a proporção de pedófilos tenha diminuído. Onde eles estão hoje? Cabe a nós tomar as medidas necessárias para proteger as crianças. E diminuir a dor dos sobreviventes”. Detalhes de uma investigação que suscitou polêmicas, repulsa e indignação.
Como a comissão conduziu o inquérito?
A Comissão encarregada de investigar queixas por abusos sexuais em uma relação pastoral, criada pela Igreja mas dirigida por um pedopsiquiatra independente, Peter Adriaenssens, indica que ela recebeu, entre janeiro e junho de 2010, 488 queixas. Entre elas, 327 queixas vêm de homens e 161 de mulheres.
Essas queixas, em sua maior parte, remetem a atos de pedofilia cometidos dos anos 1950 até o fim dos anos 1980 por eclesiásticos, mas também por professores de religião e monitores de grupos de jovens. O relatório constata uma diminuição dos supostos atos após meados dos anos 1980, uma vez que os padres passaram a ser menos ativos no ensino desde então.
Quais são as conclusões de seu relatório?
Mais do que números e estatísticas, a comissão decidiu publicar, em seu relatório de 200 páginas, depoimentos de 124 vítimas “sobreviventes”, segundo o termo utilizado. Depoimentos crus, duros, divulgados na internet de forma anônima, na língua das pessoas abusadas, em holandês e em francês.
Algumas dessas vítimas esperaram décadas para tornar público seu calvário, que começou quando elas tinham em média 12 anos. Para outras, os fatos chegaram a se iniciar quando elas tinham apenas 2 ou 5 anos. O risco de abuso para as mulheres crescia com a idade, ao passo que os homens corriam um risco nitidamente mais elevado entre 10 e 14 anos, observa a comissão. Ainda que a descrição dos autores dos abusos muitas vezes se revele imprecisa, “pode-se dizer que nenhuma congregação religiosa escapou do abuso sexual de menores por um ou vários de seus membros”, escrevem os autores do relatório.
Entre as vítimas, treze se suicidaram, revela o relatório, um gesto cometido “em relação com o abuso sexual de um padre”. “Percebemos que éramos totalmente mal informados, e que não sabíamos a gravidade das coisas e o fato de que essas vítimas haviam sido machucadas para o resto da vida”, reagiu após a publicação do relatório o bispo de Tournai, Guy Harpigny. Como essa mulher, que aos 17 anos sofreu abuso de um padre, explica no relatório que tentou contar o fato a um bispo, em 1983. Para ouvir a seguinte resposta: “Pare de olhar para ele, e ele a deixará em paz”.
Quais foram as dificuldades encontradas pela comissão?
O trabalho da comissão foi marcado por inúmeras reviravoltas. Um “tsunami” de queixas se abateu sobre seus membros após a demissão forçada no dia 23 de abril do bispo de Brugges, Roger Vangheluwe, que reconheceu ter abusado sexualmente de seu sobrinho menor de idade entre 1973 e 1986, explicou o professor Adriaenssens.
Depois, em junho, uma convenção foi assinada com a Justiça, estipulando que a promotoria respeitaria a confidencialidade das vítimas de atos de pedofilia que se apresentariam diante da comissão Adriaenssen. No dia 24 de junho, foram conduzidas investigações minuciosas na sede da Igreja belga, na casa de um cardeal e dentro da comissão pela Justiça, que desconfiava que a comissão queria abafar casos não prescritos para proteger a imagem da instituição. Então todos os membros da comissão Adriaenssens pediram demissão no dia 28 de junho, acreditando que a convenção não havia sido respeitada. As investigações em seguida foram invalidadas por um inquérito judicial. A comissão não se formou novamente, mas conseguiu analisar os depoimentos das vítimas.
Mas certos grupos de vítimas de atos de pedofilia, apoiados por partidos políticos como os Ecolo-Groen!, pedem pela instauração de uma Comissão de inquérito parlamentar que deverá examinar a maneira como a Justiça tratou os casos de pedofilia dentro da Igreja. Para o editorialista do “Soir”, os resultados da comissão Adriaenssens são necessários, mas não suficientes: “A Igreja pode e deve agora contribuir ativamente para o advento da verdade sobre os atos criminais cometidos dentro de sua instituição por ovelhas negras que ela protegeu continuamente. Isso é possível pelo encorajamento de todas as ações judiciais de vítimas, e por ações judiciais em nome da Igreja, que contribuirão para que a Justiça possa fazer seu trabalho”, escreve.
Fonte: Le Monde