Cresce o número de pastores que processam as igrejas para receber indenizações por serviços prestados. “Temos jurisprudência firmada de que o ministro religioso atua de forma vocacionada, em atendimento a uma orientação divina.”, diz Gilberto Garcia, advogado e colunista do FolhaGospel.

Entre suas inúmeras atividades – ele é conferencista, professor e pesquisador do segmento religioso há mais de 15 anos –, F.J.A. ainda encontra tempo para se dedicar à vida ministerial. Pastor evangélico, ele atuou, durante quatro anos, na Igreja Pedra Viva, localizada no bairro da Vila Mariana, em São Paulo. E foi exatamente lá que se viu diante de um problema cada vez mais comum nas igrejas: os conflitos oriundos do Direito do Trabalho.

Após algum tempo atuando como ministro e servindo também em funções administrativas, o pastor viu a relação com os líderes da denominação ir se desgastando devido a uma série de divergências e ao descumprimento, por parte da congregação, do que havia sido previamente combinado. Com a intenção de receber o que julgava ter direito pelos anos de serviços prestados, F.J.A. se viu obrigado a acionar a Justiça. “Por não concordar com um comportamento ético dentro da igreja, o pastor presidente e fundador da denominação sugeriu a minha saída. Depois de muito diálogo e tentativas de conciliação, não tive mais como suportar a pressão que vinha sofrendo e saí”, lembra. “E eu não estava exigindo direitos pelo trabalho pastoral, mas por trabalhar em outras áreas da organização, como um verdadeiro funcionário.”

Pastor e igreja, depois de muitas negociações, acabaram convergindo num acordo. F.J.A. recebeu uma indenização bem menor do que a pedida. “E olha que não queriam me dar nada”, comenta. Ele admite que enfrentou dificuldades financeiras, mas agora está ligado a outra denominação, onde suas funções são essencialmente pastorais. Por isso mesmo, e para evitar constrangimentos, pediu que seu nome fosse preservado. Casos como o dele têm crescido nas estatísticas dos Tribunais Regionais do Trabalho – a quem cabe a jurisdição sobre o tema – e esquentam uma discussão que já se tornou recorrente: afinal, o ministério pastoral é uma profissão como outra qualquer e, portanto, deve ser amparado pelas leis trabalhistas; ou um sacerdócio espiritual sem qualquer vínculo empregatício, movido simplesmente por princípios de fé?

Se o assunto deixa em dúvida até mesmo quem compete tomar decisões, não é nada estranho que os leigos se sintam completamente perdidos diante de tanta incredulidade. Autor do livro Legislação para igrejas e outras entidades sem fins lucrativos (CPAD), o pastor Rubens Moraes não hesita em afirmar que o maior erro jurídico que uma igreja pode cometer é registrar seu pastor como empregado: “O pastor, como tal, não exerce uma profissão pastoral, nem o seu ministério se confunde com a prestação de serviço, como se fosse um profissional liberal”, ensina.

Recentemente, o pastor catarinense Luiz Marcelino dos Santos entrou com uma ação por danos morais contra a congregação onde pregava – a Igreja do Evangelho Quadrangular de Camboriú –, sob a alegação de ter sido afastado da função por se recusar a ceder apoio a candidatos políticos apoiados pela denominação. Na dúvida de que decisão deveria tomar, a 1ª Vara do Trabalho da cidade recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), solicitando orientação sobre qual esfera teria a incumbência de julgar o caso: a Justiça comum ou a do Trabalho. Após análise, o imbróglio retornou à instância de origem, onde deverá ter um desfecho. Foi essa a ação que forçou o STJ, por meio de seu relator, o ministro Humberto Gomes de Barros, a determinar que os pastores são, sim, trabalhadores das igrejas, embora não haja, judicialmente, uma explícita relação de emprego.

Essa decisão, contestada por muitos líderes e juristas evangélicos, pode gerar precedentes perigosos, na opinião do advogado e consultor jurídico Gilberto Garcia, do Rio de Janeiro. “Temos jurisprudência firmada de que o ministro religioso atua de forma vocacionada, em atendimento a uma orientação divina. O reconhecimento do vínculo implicaria numa mercantilização da fé”, alerta. O advogado desaconselha a litigância judicial por questões espirituais. “Mas quando se exerce um trabalho administrativo e a outra parte não cumpre com suas obrigações, não podemos ser coniventes com o erro”, ressalva. Evangélico e com mais de 20 anos de experiência jurídica, Garcia afirma que o trabalho exercido pelos pastores não pode ser caracterizado como de vínculo empregatício perante a legislação trabalhista brasileira, já que tal atividade é fruto do exercício da espiritualidade na divindade em que se professa fé. Em seu livro O novo Código Civil e as igrejas (Editora Vida), o advogado explica as diferenças entre funções eclesiásticas, entre as quais se enquadram os pastores, e cargos estatutários, que são os estabelecidos pelo regimento das igrejas.

Relação de emprego

Garcia lembra de um caso em que atuou orientando um pastor que, além de obreiro, era uma espécie de “faz-tudo” na igreja. “Após ficar doente, ele foi abandonado pela instituição”, conta o advogado. Segundo ele, é comum as igrejas pagarem um salário ao pastor, negociado livremente – mas, no caso de benefícios como planos de saúde e previdência, muitas são negligentes. “Na perspectiva legal, não há qualquer direito trabalhista a ser pleiteado pela via judicial em se tratando do trabalho sacerdotal. Entretanto, no que se refere à atuação profissional, desde que comprovada a caracterização da relação de emprego, ou seja, subordinação, habitualidade e remuneração, cabe indenização.”

“Não podemos fechar os olhos às injustiças cometidas por quem deveria dar o exemplo. Ademais, muitas igrejas esquecem de cumprir o mandamento bíblico de cuidar do sacerdote, de garantir a ele sobrevivência digna, preferindo assim ser motivo de escândalo em vez de dar bons exemplos para o mundo secular”, critica, por sua vez, a advogada e servidora pública Tânia Castro. Embora reconheça que demandas entre obreiros e lideranças costumem repercutir mal para o Evangelho, ela é taxativa: “Sem dúvida, isso traz repercussões negativas, mas a Igreja deve cuidar para que a situação não chegue a este extremo. Todavia, o prejuízo não será maior do que as seqüelas acarretadas à vida do pastor, que muitas vezes é descartado sem nenhuma proteção, e indo – não raras vezes – integrar o quadro dos desamparados, ficando à margem da sociedade e à espera da caridade dos irmãos”, desabafa.

Tânia pesquisou, durante dez anos, as relações entre pastores e igrejas, e analisou casos, acórdãos de tribunais e a jurisprudência da área – “além da fonte maior, a Bíblia Sagrada”, como faz questão de dizer. Seu entendimento difere do de Garcia: “Basta analisar a atividade do religioso perante sua entidade à luz do que dispõe a legislação temporal sobre a relação de emprego, ou seja, a Consolidação das Leis Trabalhistas, a CLT. Em muitos casos, ela se enquadra perfeitamente no conceito de vínculo empregatício, pois estão presentes os elementos caracterizadores, que são a prestação de trabalho a um tomador, a pessoalidade dessa prestação, a forma não-eventual, a onerosidade e a subordinação jurídica e a autoridade”, ensina.

“Preconceito”

Posição diversa tem o deputado federal Hidekazu Takayama (PSC-PR). Ministro evangélico ligado à Assembléia de Deus, ele é autor do Projeto de Lei 5.443/2005, que propõe uma emenda à CLT afastando qualquer possibilidade de vínculo empregatício entre entidades religiosas e seus congregados. A justificativa da proposta do parlamentar é de que a liberdade de religião é um dos direitos fundamentais do cidadão garantidos pela Constituição Federal, prescrevendo ainda que o Estado é responsável por proporcionar a seus cidadãos um clima de perfeita convivência religiosa. O projeto ainda não tem data para ser votado, mas tem recebido apoio de setores ligados à liderança das denominações.

Na opinião do juiz Jorge Alberto Araújo, titular da Vara do Trabalho de Rosário do Sul (RS), não se pode rejeitar o fato de que o religioso, embora não sendo considerado um empregado na acepção estrita do termo, mantém com a igreja a que pertence uma relação de trabalho. “Deve-se destacar que a contar da Emenda Constitucional 45, de 2004, a Justiça do Trabalho teve a sua competência alargada para compreender também outras relações de trabalho distintas da de emprego”, lembra. “E tal relação tem subjacente um contrato que, ainda que verbal, terá como conteúdo todos aqueles elementos que circundam a relação. Ou seja: obviamente o religioso perceberá alguma remuneração, ainda que não se possa chamá-la de salário, que lhe permita fazer frente às suas despesas”, emenda. Juridicamente, este tipo de remuneração dos trabalhadores religiosos recebe o nome de prebenda.

O magistrado admite que existe certo preconceito contra as religiões no que tange à questão. “Não se debate, ou se debate pouco, a existência de um contrato de trabalho entre um padre e a Igreja Católica, um rabino e sua sinagoga ou um pastor com a Igreja Evangélica”, comenta. E ele concorda que a existência de uma categoria que zelasse pelos interesses dos envolvidos poderia trazer conseqüências positivas a ambas as partes: “Representando coletivamente os indivíduos, os sindicatos poderão levar aos responsáveis pela igrejas reivindicações comuns, o que no plano individual muitas vezes não encontraria a repercussão necessária”, conclui. A iniciativa já foi tentada em 1999, quando um grupo de pastores paulistas fundou o Sindicato dos Ministros de Cultos Religiosos Evangélicos e Trabalhadores Assemelhados no Estado de São Paulo (Simeesp), justamente para intermediar as negociações dos associados junto às entidades religiosas. Contudo, o registro do órgão foi cassado em apenas um mês pelo Ministério do Trabalho.

Entre os fiéis, as opiniões se dividem. O carioca Adelson Cerqueira, membro da Igreja Assembléia de Deus de Campo Grande, Estado do Rio de Janeiro, defende que os pastores não são apenas líderes espirituais, mas verdadeiros funcionários a serviço de suas congregações. “Seja de que denominação for, todo obreiro faz jus ao seu salário”, comenta. Já o contabilista Carlos Eduardo Pereira, membro da Igreja Renascer em Cristo de São Paulo, discorda: “Se o pastor crê e aplica o que está escrito na Bíblia, então ele não tem qualquer direito trabalhista, pois abdicou de sua vida profissional para se dedicar à obra de Cristo, assim como fez João Batista e seus discípulos”, compara.

Fonte: Revista Eclésia

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