Uma mãe de Araçatuba, no interior de São Paulo, perdeu a guarda da filha de 12 anos após a adolescente passar por um ritual de iniciação no candomblé, que envolve raspar a cabeça dos novos adeptos.
A ação foi movida pelo Conselho Tutelar da cidade, que recebeu denúncias de maus-tratos e abuso sexual.
Como uma delas foi feita pela avó da menina, que é evangélica, a defesa da família afirma que o caso é de intolerância religiosa.
No último dia 23 de julho, o conselho recebeu uma denúncia anônima dizendo que a jovem era vítima de maus-tratos e abuso sexual. Junto de policiais militares, os conselheiros foram até o terreiro.
A adolescente chegou a relatar que não estava sofrendo qualquer tipo de abuso, mas, sim, passando por um ritual. A mãe, que trabalha como manicure, explicou que, durante a cerimônia, a menina não poderia deixar o local.
Os nomes das duas foram suprimidos para não expor a identidade da jovem.
Mesmo com as justificativas, mãe e filha foram levadas para a delegacia. Só foram liberadas depois de a jovem passar por exame de corpo de delito no IML (Instituto Médico Legal), que não encontrou nenhum tipo de hematoma ou lesão.
A adolescente só estava com a cabeça raspada — segundo ela, estava se tornando filha de Iemanjá.
Nestes rituais, chamados de feitura de santo, o novo adepto fica 21 dias recluso no terreiro. Durante o retiro espiritual, recebe banhos de ervas e é exposto a fundamentos da religião. A ideia é que ele se purifique, entre em contato com o axé (que, na língua iorubá, significa “força” ou “poder”) e, de acordo com a tradição, renasça conectado com valores ancestrais da crença. Deste ponto de vista, a passagem pelo terreiro é uma gestação. Raspar o cabelo é um ato sagrado e simboliza tudo isso.
Ainda que não tenham surgido novos indícios de violência ou abuso, familiares que não concordam com a religião fizeram outra denúncia. Dessa vez, registraram um boletim de ocorrência em que apontaram que a adolescente estava sendo mantida à força no terreiro e sob condições abusivas. Isso fez conselheiros tutelares e policiais irem novamente até o local. Não encontraram ninguém, pois a adolescente já estava em casa.
Os familiares não desistiram e, junto do Conselho Tutelar, denunciaram o caso à Promotoria. Alegaram que houve lesão corporal por causa do cabelo raspado. Entraram na Justiça, que transferiu a guarda para a avó materna. Há uma semana, mãe e filha só conversam por celular e se veem durante visitas curtas.
Procurado pelo UOL, o Conselho Tutelar de Araçatuba não quis se pronunciar. Os familiares que estão com a guarda da adolescente também não quiseram falar sobre o assunto.
Frequentadora do candomblé há dez anos, a mãe diz nunca ter visto algo parecido. “O pior de tudo é que em nenhum momento ouviram minha filha ou a mim. Simplesmente a tiraram de mim. Eu nunca a obriguei a nada, esse sempre foi o sonho dela. Ela está chorando a todo momento, me liga de dez em dez minutos querendo vir para casa”, conta.
Rogério Martins Guerra, pai de santo da família, classifica a situação como lamentável. “Eu já vi perseguição, preconceito, pessoas que são agredidas e apedrejadas na rua, terreiros que são incendiados. Mas nunca algo assim. É uma tristeza profunda”, diz.
Para Thais Dantas, advogada do Instituto Alana, que atua em defesa de crianças e adolescentes, mecanismos institucionais não podem ser usados como instrumento de discriminação.
Ela ressalta que a liberdade religiosa é garantida pelo ECA. Em 2016, a lei nº 13.257 garantiu a pais, mães ou responsáveis o direito de transmissão de suas crenças. Além disso, Dantas cita o artigo 5º da Constituição, que assegura que “é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantia, na forma da lei”.
A advogada também analisa que situações como esta devem ser investigadas antes de qualquer ação da Justiça. “É fundamental que haja apuração e qualquer medida seja pautada pelos fatos, não por preconceito, ideias muitas vezes preconcebidas”, afirma.
Para a doutora em Ciência da Religião e pesquisadora da PUC-SP, Claudia Alexandre, há no caso um ataque à religião, o que evidencia como a sociedade está polarizada.
Visitas
A mãe conta que as visitas são bem restritivas — ela só pode encontrar a filha pessoalmente por cerca de cinco minutos. A manicure diz que a filha relatou que estava sendo forçada a abandonar os preceitos que está seguindo em sua iniciação no candomblé.
Na semana passada, a mãe foi visitar a filha, mas a avó não deixou. A menina se revoltou e fugiu. A polícia a encontrou em uma praça próxima, de onde a levou dentro de uma viatura.
O caso segue em segredo de Justiça. A mãe quer a guarda de volta e aguarda o agendamento de uma audiência em que será ouvida pelo juiz, mas que ainda não tem data para acontecer.
Fonte: UOL