Pastor Ed René Kivitz
Pastor Ed René Kivitz

Ed René Kivitz, pastor da Igreja Batista de Água Branca, em São Paulo, é voz dissonante entre evangélicos contra o bolsonarismo e o fundamentalismo religioso.

Com mais de 300 mil seguidores no Instagram, o teólogo viu viralizar nesta semana um vídeo no qual afirma que o Brasil está diante de marcos civilizatórios nesta eleição.

“Não estamos escolhendo apenas o tipo de governo que desejamos, mas em qual sociedade queremos viver”, repetiu à Folha de S.Paulo.

  • “Os conservadores querem um Brasil em que as hierarquias sejam mantidas, onde os brancos valem mais que os pretos, os homens mais que as mulheres, os ricos mais que os pobres, os heterossexuais mais que os homossexuais e assim por diante.”

Posicionamentos fortes como este resultaram na expulsão da Ordem dos Pastores Batistas do Brasil. “Fui expurgado pelo fundamentalismo.”

Kivitz reafirma que a Bíblia precisa ser atualizada. “Sob pena de continuarmos, em nome de Deus, praticando violências e injustiças de gênero, de raça e de classe social.”

A seguir, os principais trechos da entrevista, na qual avalia o bolsonarismo como uma ideia maldita e diz esperar que os evangélicos vejam que o “rei está nu” e votem pela democracia em 30 de outubro.

PERGUNTA – Por que estamos diante de marcos civilizatórios nesta eleição de 2022?

ED RENÉ KIVITZ – O bolsonarismo aparece como uma força de captura do antipetismo, mas se torna mais do que isso, porque se constrói a partir de críticas explícitas a conquistas de direitos civis.

Não estamos escolhendo apenas o tipo de governo que desejamos, mas em qual sociedade queremos viver. Os conservadores querem um Brasil em que hierarquias sejam mantidas, onde os brancos valem mais que os pretos, os homens mais que as mulheres, os ricos mais que os pobres, os heterossexuais mais que os homossexuais, o Sul mais que o Norte e Nordeste e assim por diante.

O bolsonarismo é reação da sociedade conservadora para tentar brecar um forte processo de emancipação da mulher e de superação do racismo nas relações pessoais e nas estruturas sociais. O conservadorismo considera degeneração social essa sociedade plural, horizontal, igualitária e libertária.

O bolsonarismo não vende um discurso de liberdade?”‚ É um paradoxo falar de liberdade quando se tem um governo militarizado e miliciano, cujo símbolo é uma arma. Essa fala “um povo armado jamais será escravizado” é fascista. É acreditar que um povo armado supera a violência. É uma estupidez acreditar que um revólver na bolsa da minha filha vai impedir sequestro relâmpago..

Nas periferias, a violência é caracterizada pelos conflitos do crime organizado com a polícia. Armar a população só piora o quadro. Há pouco tempo, violência doméstica era um homem batendo na mulher, agora ele bate com o revólver na mão. A legalidade desse porte de arma não impede a violência. Pelo contrário.

P. – É também paradoxal falar de cristianismo?”

EK – “Conhecereis a verdade e a verdade vos libertará” é lema de um governo conhecido como o mais mentiroso, que se utiliza de fake news e do tal gabinete do ódio. Eu disse do púlpito que era inadmissível um sujeito fazer um voto em plenário em homenagem a Brilhante Ustra [torturador na ditadura] e não ter perdido seu mandato. E mais: tenha sido alçado a presidente da República, com pastores como cabos eleitorais.

Infelizmente, eu estava certo ao dizer que soltaram os monstros. Deram legitimidade, autorizaram monstruosidades.

A fake news não é somente a mentira explícita. É a verdade fora de contexto, manipulada. Tem uma frase de padre Antônio Vieira que diz que a palavra de Deus, usada com sentido diverso daquele que Deus pretendeu ao proferi-la, passa a ser palavra do diabo.

Quando o presidente tem uma fala misógina, não interessa dizer “eu não sou misógino”, porque é apropriada para alimentar uma cultura misógina.

P. – O que acha do argumento de que essas falas são brincadeiras?

EK – É nessa descontração e em brincadeiras que Bolsonaro revela quem ele é. É uma política do deboche, do escracho.

O bolsonarismo é uma ideia, uma ideologia que prescinde do Bolsonaro. Ele não tem genialidade para dar sustentação a um sistema de ideias. As piadas e o chamado politicamente incorreto que vocaliza à exaustão reproduzem e retroalimentam essa ideia maldita.

Vou dizer uma coisa muito forte. Nem todo bolsonarista é nazista, mas todo nazista é bolsonarista. Todo supremacista, quer seja social, racial, de gênero, é bolsonarista.

P. – Como vê essa agenda moral em defesa da família e contra gays puxada por pastores?

EK – O fanatismo tem três grandes características que afrontam o espírito do Evangelho. A primeira é a interpretação literal dos textos sagrados. Isso é um problema gravíssimo, porque o Evangelho é uma nova consciência. Não é uma nova moral, no sentido em que ela não tem uma legislação. Quando interpreto o texto sagrado literalmente, eu caio num legalismo que, levado ao extremo, me faz apedrejar pessoas.

O fundamentalismo fere o espírito do Evangelho também por tentar impor a parte para o todo. A minha fé, meu código moral, minha opção existencial tem que valer para você. Não quero saber quem é você, se acredita no que acredito. Ou concorda comigo ou está no engano, na maldade, nas trevas. A experiência religiosa só é legítima quando é resultado de uma escolha, nunca quando é imposta.

O fundamentalismo fere ainda o Evangelho por sua índole violenta. Trata o discordante, o divergente, o diferente como inimigo, uma ameaça ao meu sistema de valores, crenças e sociedade. Então, tem de ser eliminado.

A igreja evangélica hoje, na sua face hegemônica, é de índole fundamentalista. É literalista, legalista, excludente, violenta e impositiva.

P. – Como vê o crescimento da bancada evangélica e o papel de líderes religiosos com mandato?

EK – Eu tenho esperança. Não acredito que a voz do povo é a voz de Deus. Acredito que o povo é capaz de ouvir a voz de Deus, a voz do bom senso, da lucidez. Tenho esperança de que essa igreja evangélica vá perceber que o “rei está nu” e que seus líderes espirituais não são tão dignos de crédito.

Não sabemos o que é democracia no Brasil. O deputado da Assembleia de Deus não foi eleito para defender os direitos da Assembleia de Deus. O deputado espírita não foi eleito para defender o povo espírita.

Não podemos subestimar o povo, como massa ignorante e manipulada ad infinitum. Existe nas falas, inclusive dos progressistas, um preconceito de classe e religioso. Claro que as massas podem ser manipuladas, mas Bolsonaro teve menos penetração entre o povo evangélico em 2022 do que em 2018.

P. – Michelle Bolsonaro ganhou protagonismo como primeira-dama evangélica. Como avalia o uso do púlpito para fins eleitorais?

EK – Uso do púlpito como recurso de campanha é uma traição às duas instâncias: do estado democrático de direito e da igreja. Quando alguém do púlpito, que é o lugar da representatividade divina, faz campanha eleitoral, não se sabe se aquela pessoa é da confiança de Deus ou do imperador. Isso degenera o discurso religioso.

Também é uma traição ao espírito do estado de direito porque quando se associa a figura do presidente a uma unção divina, você dá a ele um poder absoluto. Quem fala em nome de Deus ou está lá porque Deus ungiu não pode ser questionado nem substituído.

P. – O sr. concorda com Michelle Bolsonaro, que disse que estamos em uma guerra espiritual?

EK – Concordo. Só que a guerra espiritual que nós estamos não é essa do ritualismo religioso mágico. Michelle Bolsonaro disse que o Palácio do Planalto foi consagrado a demônios. Não adianta fazer culto de oração no Planalto e cortar verba da educação e condenar criança a passar fome.

Se queremos falar de luz e trevas, vamos falar de negacionismo da ciência e de um presidente alterar a estrutura da Polícia Federal para proteger seus filhos, sua família e a si mesmo. Isso é guerra espiritual, é a mentira prevalecendo contra a verdade, a injustiça sobre a justiça. Assim como retardar a compra de vacina é a morte prevalecer contra a vida.

Guerra espiritual acontece na dimensão ética. A luz e as trevas estão em constante conflito. No Brasil, em Brasília, dentro de mim e de você.

P. – A sua igreja foi uma das primeiras a fechar e abolir o dízimo no auge da crise sanitária da Covid-19. Isso não seria uma heresia?

EK – Foi tratado dessa maneira. Se o dinheiro da fé não é para socorrer pessoas em suas necessidades, para que serve? Se quer dar dinheiro para Jesus, dê para alguém que está com fome.

P. – O senhor declara seu voto?”

EK – Nunca declarei. Sempre defendi que meu papel pastoral tem a ver com a crítica social e política dentro de uma pauta de valores. Quando opto por uma candidatura, no púlpito ou fora, eu me comprometo. O que fiz até agora é tentar mostrar as incoerências e contradições do bolsonarismo para com o espírito do Evangelho. Cheguei até aí.

P. – Isso não seria um apoio a Lula?”

EK – Eu me coloco dizendo que tudo aquilo que a sociedade critica no Lula e no PT é crime. Pode ser julgado, ter condenação. Enquanto o bolsonarismo se constrói com uma orientação social violenta, excludente, e nada disso é considerado crime. No mensalão, todo mundo foi julgado. Agora, o orçamento secreto não é crime. Deveria ser, mas não é.

Eu me coloco nessa polarização dizendo: Estou criticando uma cultura, que chamo de bolsonarismo, uma realidade abjeta que o Brasil tem de expurgar.

Em 2020, fora do contexto eleitoral, escrevi o seguinte tuíte: “Existe por trás desse governo uma mente intelectualmente limítrofe, cientificamente ignorante, ideologicamente totalitária, religiosamente obscurantista, e moralmente perversa. É urgente que seja exorcizada”.

P. – Que Brasil espera ver emergir das urnas?

EK – A minha esperança é que a democracia seja salva. E no meu entendimento, a derrota de Bolsonaro e a eleição de Lula é o único caminho para que isso se realize. Se o presidente for reeleito, com esse Congresso conservador e maioria no Senado e na Câmara, ele tem os recursos nas mãos para subversão do estado democrático de direito. É o golpe dentro da democracia.

P. – As pessoas me dizem: “Ah, você é a favor de ladrão?

EK – É abortista, gayzista, quer liberar maconha, transformar o Brasil numa Venezuela?”. Eu respondo que estou discutindo isso agora. Acho isso tudo falacioso, preconceituoso, mentiroso.

Estou discutindo democracia, o sistema que protege as minorias. É isso que vejo em risco, inclusive com força militar, paramilitar e miliciana armada. Na cabeça do presidente e de seus seguidores, democracia é o governo da maioria. Eles dizem: Ou a minoria se adequa ou procura outro lugar para viver. Isso não é democracia, é totalitarismo.

Fonte: Yahoo Notícias com informações de Folhapress

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