Os telegramas confidenciais de 1975 produzidos pelo serviço diplomático americano no Brasil, recém-liberados pelo Departamento de Estado, revelam que o então arcebispo de São Paulo e uma das principais vozes contra a ditadura, o cardeal dom Paulo Evaristo Arns, “implorou” ao governo americano que fizesse um embargo comercial contra o Brasil.

“O cardeal pede um embargo ao comércio brasileiro: expressando essa concordância com a visão recentemente divulgada do juiz aposentado do Supremo Tribunal Aliomar Baleeiro, de que são necessárias pressões tanto externas quanto internas para promover o retorno do Estado de Direito no Brasil, o cardeal, manifestando emoção, implorou que os EUA e outros países ocidentais embarguem o comércio futuro com o Brasil enquanto o Brasil não cumprir sua obrigação internacional de respeitar os direitos humanos”, narra o telegrama, enviado no dia 3 de setembro de 1975 ao Departamento de Estado americano, em Washington (EUA), pelo cônsul americano em São Paulo, Frederick Chapin.

Segundo o cônsul, d. Paulo “recobrou a calma rapidamente, porém, e respondeu ao que ele próprio dissera, afirmando reconhecer que uma ação externa desse tipo geraria resultados negativos e contraproducentes no Brasil”.

O embargo nunca foi decretado. Como a Folha revelou em janeiro último, um telegrama da embaixada americana em Brasília de 1974 havia recomendado ao governo de Richard Nixon que não travasse comércio com o Brasil, embora reconhecesse a legalidade da medida, com base, em grande parte, nas informações coletadas e enviadas aos EUA pelo mesmo Chapin.

Os telegramas revelam que o serviço diplomático americano buscava com freqüência informações de d. Paulo, tanto sobre os direitos humanos quanto sobre o processo de distensão política anunciado pelo então presidente Ernesto Geisel. Numa dessas conversas, d. Paulo revelou dados sobre a morte do jornalista Vladimir Herzog.

Após analisar quatro telegramas que citam d. Paulo, o brasilianista Kenneth Serbin, professor da Universidade de San Diego (EUA), presidente da Brasa (Brazilian Studies Association) e autor de “Diálogos na Sombra”, sobre a relação entre religiosos e a ditadura, e de “Gritos do Coração”, a ser lançado no ano que vem, destacou documento que relata conversa entre o arcebispo paulista e o general Golbery do Couto e Silva, chefe da Casa Civil do governo Geisel (1974-1979).

De acordo com o telegrama enviado pelo cônsul americano, Golbery ironizou acusações de tortura. Naquele momento, setembro de 1975, houve uma onda de prisões de integrantes da Polícia Militar paulista sob suspeita de envolvimento com “o comunismo”. Pelo menos 80 PMs haviam sido presos.

“(…) O general Golbery lhe dissera, ironicamente, que era uma questão de interesse esclarecido do próprio regime pôr fim à tortura; se não se acabasse com a prática, seria impossível saber aonde ela poderia levar. Cedo ou tarde oficiais do Exército se veriam torturados, e isso seria um desastre para a revolução. Bem, refletiu o cardeal, é possível que esse dia já tenha chegado”, escreveu Chapin.

Para o professor Serbin, o documento expressa como os abusos acabaram por ameaçar setores do próprio Exército. “Para mim, as revelações da prisão e tortura de PMs mostram como a tortura corroía por dentro o Estado e as Forças Armadas. O Golbery falou para dom Paulo que não se sabia aonde as coisas poderiam chegar. Eis a resposta: a tortura começava a voltar contra as próprias corporações do Estado”, disse Serbin, por e-mail.

A respeito do embargo, o brasilianista acredita que d. Paulo tenha feito “um desabafo”. “D. Paulo implora o embargo, mas depois recua. Não creio que tenha sido uma proposta séria ou bem pensada. Foi um desabafo. Quem foi incisivo nesse sentido foi o arcebispo de El Salvador, Oscar Romero, que publicamente implorou ao presidente Jimmy Carter que não enviasse mais armas para aquele país. Pouco depois ele foi assassinado”, disse Serbin.

Numa primeira série de telegramas, relativa ao ano de 1974 e liberada no ano passado, d. Paulo já surgia como interlocutor freqüente do governo americano. O arcebispo contou detalhes da reunião de duas horas que manteve com Golbery, em agosto daquele ano. Ao ouvir os relatos sobre desaparecidos políticos, Golbery teria manifestado “incredulidade, confusão e praticamente verteu lágrimas sobre algumas histórias que escutou”. O general teria então pedido tempo para averiguar as denúncias, pelo menos até 27 de agosto.

Quando o prazo expirou, d. Paulo convocou a imprensa para relatar sua conversa com Golbery. Curiosamente, dias depois d. Paulo recebeu a informação de que Golbery ficara “contente” com a entrevista do arcebispo, o que indica que o ato pode ter sido usado na disputa política interna contra os generais da “linha dura”.

O mesmo telegrama relata que d. Paulo contou haver indícios de que estava sob vigilância e pessoas próximas a ele estavam sendo detidas e interrogadas. D. Paulo contou que um parente de seu cardiologista foi seqüestrado após a família dizer que temia pela segurança do cardeal.

Os telegramas relatam ainda que d. Paulo, aproveitando-se de uma missa que teve que realizar no Exército após insistentes pedidos dos militares, pediu a libertação de presos políticos diretamente ao comandante do II Exército, em SP, Ednardo Dávila Melo.

Procurado ao longo da semana passada, d. Paulo não foi localizado. Segundo sua assessoria, “ele não está dando entrevistas” por recomendação médica. Os documentos liberados pelos EUA dentro da lei de liberdade à informação estão disponíveis no endereço da internet: http://foia.state.gov/ SearchColls/Search.asp.

Fonte: Folha de São Paulo

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