Supremo Tribunal Federal vai discutir, nesta terça-feira, 26, a interrupção da gravidez em caso de feto sem cérebro. História de bebê do interior de São Paulo com anencefalia será usada como exemplo por grupos que defendem a proibição do aborto.

O caso de Marcela de Jesus Galante Ferreira, diagnosticada como anencéfala (ausência parcial ou total do cérebro) e que viveu quase dois anos, deve dominar o debate sobre o aborto em casos de anencefalia, que começa nesta semana no STF (Supremo Tribunal Federal).

A menina, caso raro na medicina e que sobreviveu gr aças à intensa medicação, contrariou todos os prognósticos médicos- a grande maioria dos anencéfalos morre em até 72 horas após o nascimento- e se transformou em ícone de grupos antiaborto.

São esses mesmos grupos que levarão ao STF, na terça-feira, a mãe de Marcela, a agricultora Cacilda Galante Ferreira. Ela diz que seu objetivo será ajudar a evitar “crimes” contra crianças como sua filha.

Estima-se que a Justiça brasileira tenha permitido, nos últimos 15 anos, ao menos 5.000 abortos de fetos anencefálicos. Para obter a autorização, a mulher precisa apresentar, entre outros documentos, laudos médicos que atestem a doença. A OMS (Organização Mundial da Saúde) e as sociedades científicas internacionais consideram a anencefalia uma anomalia incompatível com a vida.

Para a advogada Samantha Buglione, a sobrevida de Marcela poderá dificultar o julgamento no STF. “O debate vai ser mais intenso do que foi nas células-tronco. No caso da anencefalia, há um corpo biológico, um apelo visual muito grande. Por outro lado, não dá para esquecer de que se trata de um nível de anencefalia diferenciado. É uma exceção.”

A antropóloga Débora Diniz, que participará da última audiência pública no STF, prevista para o dia 1º, aposta que a excepcionalidade do caso não será levada em conta no julgamento. “A prática médica e nosso sistema judicial não se pautam em exceções.”

Em 2004, uma liminar do ministro do STF Marco Aurélio de Mello liberou a interrupção da gravidez nos casos de fetos anencéfalos, mas a decisão foi derrubada após quatro meses.

Debate vai reunir de religiosos a cientistas

O ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurélio Mello convidou 14 pessoas, entre representantes religiosos, científicos e de ONGs, além de um deputado federal, para participar da audiência pública sobre aborto em caso de anencefalia, que terá início na próxima terça-feira.

Serão 15 minutos para cada um dos pontos de vista. O debate começa na terça-feira, com as entidades religiosas CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), Igreja Universal, Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, e Católicas pelo Direito de Decidir (CDD).

Na semana passada, a CNBB apresentou sua posição sobre o tema: “Para nós independentemente do estado de saúde, da durabilidade, a vida humana sempre será preservada.”

Maria José Rosado, presidente da CDD, diz que reafirmará na audiência pública a necessidade de um Estado laico. “A mulher deve ser respeitada na sua decisão de manter a gravidez mesmo quando não há vida após o nascimento ou de decidir interromper a gestação.”

Na quinta-feira seguinte, os ministros ouvirão os representantes científicos. Foram convidados o Conselho Federal de Medicina, a Federação Brasileira de Ginecologia e Obstetrícia, as sociedades Clínica Brasileira de Medicina Fetal, Brasileira de Genética Clínica e Brasileira para o Progresso da Ciência, e, por último, o deputado José Pinotti (DEM-SP).

“Sou favorável que a mulher possa optar pela continuidade da gravidez ou não”, afirmou o parlamentar. “Acredito que o aborto significa a interrupção de uma potencialidade de vida. No caso do feto anencéfalo, não há essa potencialidade porque não há vida sem cérebro. Mas isso não é a minha preocupação. O que eu quero é que a mulher tenha essa opção.”

Os representantes da sociedade civil apresentam suas teses no dia 1º de setembro. Os convidados são: Anis (Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero), Adef (Associação de Desenvolvimento da Família), Escola de Gente e Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Reprodutivos.

Para favoráveis, aborto poupa mãe de se expor a risco de saúde

Como o feto sem cérebro não tem chance de sobrevivência fora do útero, é legítimo que a mãe possa optar por retirá-lo antes do fim da gestação, o que a pouparia de riscos à saúde e de sofrimento. Da mesma forma que deve ser respeitada a decisão da mulher que deseja levar a gravidez até o final.

Esse é o principal argumento dos especialistas que vão defender no STF o direito à interrupção da gravidez de anencéfalos. Para o ginecologista Jorge Andalaft Neto, que representará a Febrasgo, a anencefalia traz riscos à saúde da gestante, especialmente pela razão de o feto não fazer a deglutição do líqüido amniótico.

“O líquido vai se armazenando na bolsa [amniótica], o útero fica grande e a mulher tem mais chances de desenvolver hipertensão, trombose venosa.”

O sofrimento psíquico também é grande, segundo o médico. “Nos serviços públicos, essa mulher fica ao lado de outras que estão amamentando seus bebês, enquanto que ela, com o peito cheio de leite, terá de providenciar o enterro do seu. É um sofrimento desnecessário.” Ele diz que as mães de anencéfalos têm 30% a mais de chances de ter depressão pós-parto.

O também ginecologista Thomaz Gollop, professor da USP e que falará em nome da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, explica que o feto anencéfalo não tem atividade cerebral. “O encefalograma é uma linha reta, portanto, está em morte cerebral.”

Sobre o caso da sobrevida de Marcela, Gollop defende que Marcela tinha tinha acrania -ausência total ou parcial do crânio com desenvolvimento completo mas anormal do encéfalo-, o que teria permitido sua maior sobrevivência.

A antropóloga Débora Diniz, professora da Universidade de Brasília e que representará a Anis, afirma que as discussões devem ir além das “evidências irrefutáveis” de que a anencefalia é uma anomalia incompatível com a vida. “Nosso argumento é que a mulher deva ser protegida na sua escolha. A obrigatoriedade de ela fazer um itinerário de negociação da sua dor é uma absoluta tortura.”

Para grupos contrários, vida tem de ser respeitada até o final

Os grupos contrários ao aborto de anencéfalo vão defender no STF uma posição semelhante à CNBB: a de que uma vida, mesmo que tenha duração curta, deva ser respeitada até o final.

“Somos totalmente contra o aborto, em qualquer ocasião. O aborto de fetos anencéfalos é a eutanásia pré-natal. Veja o caso da Marcela. Queriam matá-la antes do tempo”, diz Humberto Leal Vieira, presidente da Associação Pró-Vida e Pró-Família.

A bióloga Lenise Garcia, coordenadora do Movimento em Defesa da Vida – Brasil sem Aborto, diz que o caso de Marcela não é único. “Há muitos graus de anencefalia, e o exame intra-útero não dá para prever. O único jeito de conhecer a sobrevida de uma criança anencéfala é deixá-la sobreviver.”

Para o advogado Paulo Leão, procurador do Estado do Rio de Janeiro, o caso de Marcela é o exemplo de que a anencefalia não pode ser considerada incompatível com a vida. “A questão da inviabilidade é muito relativa. Essa anomalia tem uma variedade muito grande. É evidente que a mãe sofre, a gente não deseja isso para ninguém. Mas também não dá para dizer: não consigo superar isso, então, vamos matar logo.”

O obstetra Dernival Brandão, presidente da comissão de ética e cidadania da Academia Fluminense de Medicina, argumenta que a história de Marcela demonstrou que, desde que se tenha cuidados especiais, a sobrevida do bebê anencéfalo pode ir além das previsões.

“Costumam dizer de forma pejorativa que o bebê anencéfalo é um caixão ambulante. Ela nos ensinou que não se pode condenar um bebê na gestação pelo simples fato de ser doente. É um ser humano, tem características genéticas dos pais e como tal merece toda proteção. A dignidade do ser humano tem que ser respeitada.”

Obstetra há 50 anos, Brandão refuta os argumentos de que a anencefalia traz riscos à saúde da mãe. “O mais comum é haver o aumento do líquido amniótico, mas é só esvaziar. Qualquer gravidez implica riscos. ”

Fonte: Folha de São Paulo

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