John Cabon permaneceu em silêncio e fez o sinal da cruz diante de uma imagem da Virgem Maria, do lado de fora da igreja de São Paulo, a matriz da Diocese de Pittsburgh (EUA).
“Eu mantenho a fé”, disse Cabon, 64 anos, a caminho da missa do meio-dia. Sua irmã, ele contou, abandonou a religião quando revelações explosivas de abuso sexual sacudiram a Igreja Católica Apostólica Romana em 2002. Ele se recusou. “Você realmente não acredita em tudo.”
Mas dentro da igreja, não há como escapar do escândalo de abuso, que entrou em um novo capítulo após revelações monstruosas serem divulgadas em um relatório do grande júri na terça-feira (14), descrevendo o abuso de mais de mil menores por centenas de padres na Pensilvânia.
O padre na São Paulo falou em “atos horrendos e malignos”, “fracasso moral” por parte dos líderes da igreja, e no “pesar, tristeza, sentimentos de traição, até mesmo raiva” que se seguiu. Uma mulher chorava em silêncio em seu banco.
Em Pittsburgh, cenário de alguns dos atos mais medonhos no relatório, e em dioceses por todo o país, católicos lidaram com o conteúdo do relatório.
Alguns permaneceram na igreja após as revelações explosivas de abuso por padres há mais de uma década, que implicavam os líderes, mas levaram a promessas de expiação por parte da hierarquia da igreja. E agora surgem descrições de padres envolvidos em estupro e pornografia infantil por décadas, usando “açoites, violência e sadismo”, e em um caso até mesmo se unindo a um grupo secreto de abusadores. Ainda mais doloroso, o relatório contém relatos de bispos que defenderam ativamente os padres acusados.
“Acho que no momento é realmente difícil ser católico”, disse John Gehring, um diretor de programa católico da Fé na Vida Pública, uma rede nacional de líderes religiosos. “Para todo lugar que se olha, as coisas parecem estar desmoronando.”
E isso não se limita à Pensilvânia.
Na Diocese de Lincoln, em Nebraska, o bispo pediu desculpas nos últimos dias pela forma como lidou com as alegações de má conduta contra os padres, incluindo um para o qual disse para que não ficasse sozinho com mulheres e outro que ele disse que tinha um “relacionamento emocionalmente impróprio, não sexual, com um jovem de 19 anos”.
Uma escola católica em Baltimore não se chamará mais William H. Keeler, o cardeal que morreu no ano passado e antes era visto como um defensor das vítimas de abuso sexual, mas que foi acusado no relatório do grande júri de não ter agido contra mais de um padre acusado de abuso.
Na quarta-feira, o cardeal Seán O’Malley, arcebispo de Boston e presidente da Comissão do Vaticano para a Proteção de Menores, anunciou que não participaria do Encontro Mundial das Famílias, que será realizado em Dublin neste mês, um evento importante no qual o papa estará presente.
Em uma declaração, O’Malley disse que precisava permanecer em Boston para lidar com as questões no seminário São João em Brighton, Massachusetts. Na semana passada, ele colocou o reitor em licença e iniciou uma investigação da cultura do seminário após alegações de má conduta sexual na escola.
A quarta-feira também foi o dia em que os católicos celebraram a Assunção da Virgem Maria ao Céu. A dissonância não passou desapercebida pelas pessoas.
“Aqui estamos, na Festa da Assunção, e Jesus está olhando para sua mãe e dizendo: ‘Veja o que fizeram à minha igreja'”, disse Jessica Bede, uma fiel da Igreja Nossa Senhora da Paz, em Manhattan, que foi fechada em uma série de fechamentos de igrejas. “Eles a destruíram.”
Juntamente com outros entrevistados na quarta-feira, Bede disse acreditar que a liderança da igreja não está à altura dos fiéis. Vários disseram que se os líderes da igreja tivessem confiado na fé inabalável dos fiéis, eles não teriam praticado acobertamentos tão extraordinários. Mas os líderes de novo deixaram a desejar.
Em Boston, Barbara Bowe, uma enfermeira que cresceu em escolas católicas, disse que se afastou da igreja. E com as mais recentes revelações, é improvável que ela volte tão cedo.
“Quanto a acreditar em padres e freiras, isso acabou”, ela disse. “A autoridade se foi.”
A poucas quadras de distância da cruz branca no alto da Arquidiocese de Miami, Mirta Criswell, 77 anos, estava carregando suas compras na traseira de um sedã. Sobre o relatório, ela disse, “acredito nele 100%”.
Criswell disse que o escândalo de abuso sexual que teve início em Boston em 2002 foi doloroso o bastante, mas as notícias mais recentes a deixaram ainda mais exasperada. Apesar dos escândalos não minarem seu compromisso com a fé, ela acredita que eles mostraram que algumas das regras da igreja precisam ser mudadas.
“A Igreja Católica precisa mudar”, disse Criswell. “Ela precisa permitir que padres se casem, que tenham uma família. Os seres humanos precisam de sexo.”
Mas outras disseram que o relatório é apenas mais uma evidência da fragilidade dos seres humanos e que ele não abalaria sua fé.
“Há muitas maçãs ruins e elas precisam ser removidas”, disse Robert Romano, 62 anos, após rezar na Igreja dos Santos Inocentes, na West 37th Street em Manhattan. Mas, ele acrescentou, “não vou à igreja pelo padre. Vou porque, no meu coração, há algo mais”.
Alguns poucos católicos até mesmo viram as revelações, por mais horríveis que fossem, como motivo de esperança.
“Isso é algo muito bom e saudável”, disse David Williams, ao sair da missa do meio-dia na Igreja de São Paulo, em Pittsburgh. O relatório foi realmente terrível, ele disse, e acredita que ocorrerão ainda mais revelações.
E foi pessoalmente doloroso: um de seus 15 filhos é um padre, e um de seus netos está cursando um seminário em Roma. Mas aos 88 anos, Williams disse que já viu muita coisa ruim, e que está otimista de que a igreja se recuperará. “Não pode haver expiação sem que você enfrente o fato de que pecou”, ele disse.
A dor entre os católicos é nacional, mas há uma angústia especial em Pittsburgh, onde muitos conhecem um ou mais dos 99 padres da diocese listados no relatório.
“Você folheia as páginas e então um nome se destaca, tipo, o padre da minha infância”, disse Brett Sullivan Santry, 44 anos. Ele já serviu como coroinha, depois abandonou sua fé durante um divórcio. Mais recentemente, atraído pelo papa Francisco e inspirado pela educação de sua filha nas escolas católicas, ele sentiu que podia voltar à igreja. Mas então, na terça-feira, ele leu o relatório.
“É doloroso perceber quase um senso de alívio por ter sido um coroinha que não foi abusado por ele”, afirmou sobre o padre de sua infância, George Koychick, que foi descrito no relatório como tendo molestado múltiplas meninas menores de idade.
Santry não sabe ao certo o que isso tudo significará para sua fé, ou para a de sua filha. Ele ainda se identifica como católico e viu todo o bem genuíno que a igreja fez por eles.
“Sou grato por isso”, ele disse. “Mas agora, algum dia terei que explicar para ela”, então fez uma pausa. “Poderemos ter uma conversa em algum momento no futuro a respeito disso. O que raios vou dizer?”
Fonte: The New York Times (Tradutor: George El Khouri Andolfato) via UOL