Anglicanismo sem Cantuária: uma Gafe contra a Comunhão!

Essa ameaça de ruptura surgiu com a nomeação da Bispa Sarah Mullally como Arcebispa de Cantuária.

Sarah Mullally é a primeira mulher arcebispa de Canterbury (Foto: Palácio de Lambeth)
Sarah Mullally é a primeira mulher arcebispa de Canterbury (Foto: Palácio de Lambeth)

Há uma estranha ironia no ar. Em nome de uma suposta fidelidade às Escrituras, parte da Comunhão Anglicana decide apartar-se de Cantuária, alegando querer preservar os valores da família. O gesto, revestido de zelo doutrinário, soa, contudo, como uma espécie de donatismo gourmet: um antigo pecado da pureza travestido de modernidade reformada (GAFCON, 2025).

O donatismo foi, em síntese, uma corrente heterodoxa do século IV que pretendia separar os “puros” dos “impuros”. Essa mesma tentação ainda ronda certos setores eclesiásticos que confundem santidade com isolamento e fidelidade com separação. Agostinho de Hipona, o grande opositor do donatismo, lembrava que o trigo e o joio crescem juntos até a colheita, ele afirmava que a igreja é um corpus permixtum. O Reino de Deus, portanto, não é um condomínio de perfeitos, mas um hospital de pecadores reconciliados pela graça, uma comunidade diversa e redimida (GONZALÉZ, 2011).

Essa ameaça de ruptura surgiu com a nomeação da Bispa Sarah Mullally como Arcebispa de Cantuária. Mullally encarna a própria síntese do espírito anglicano: fiel à tradição, mas aberta à reforma; comprometida com a ortodoxia dos credos, mas sensível à realidade pastoral contemporânea. Rejeitá-la sob o pretexto de preservar a ordem apostólica é esquecer que o anglicanismo sempre reconheceu a ação de Deus no tempo e na história, reformando continuamente sua forma de ser Igreja. Se o lema da Reforma foi ecclesia reformata semper reformanda, recusar a liderança de uma mulher capaz, piedosa e firmada na fé é, em si mesma, uma contradição com o DNA reformador da própria comunhão que esses críticos afirmam defender.

 Ruptura Reforma

A recente Declaração da GAFCON anuncia uma reordenação da Comunhão Anglicana, rejeitando os Instrumentos de Comunhão: o Arcebispado de Cantuária, a Conferência de Lambeth, o Conselho Consultivo e a Reunião de Primazes, e proclamando-se a “verdadeira” Comunhão Anglicana Global.

Mas o Anglicanismo, por definição, não é uma confederação denominacional, nem uma coalizão de igrejas independentes. É uma comunhão enraizada; um organismo vivo cuja seiva flui desde Cantuária, onde, há séculos, a fé cristã encontrou um equilíbrio raro entre Escritura, Tradição, Razão e Experiência. Romper com essa raiz não é reformar: é desfigurar. Um anglicanismo sem a Anglia (Inglaterra) é como um ramo que se corta do tronco e, ao tentar florescer sozinho, morre por asfixia espiritual (é como tentar plantar um cajueiro na Sibéria).

 Um chamado à comunhão

Enquanto uns proclamam independência, o Secretário-Geral da Comunhão Anglicana, o Bispo Anthony Poggo, em sua Carta Pastoral (17/10/2025), escreve com mansidão e firmeza: “a Igreja é sempre reformanda… nossa fidelidade se baseia em oração, arrependimento e conversão, para que possamos receber a mente de Cristo”.

Poggo não nega as tensões, mas recorda que a comunhão é um dom antes de ser um acordo. Ele exorta as igrejas a enviarem representantes ao próximo encontro do Conselho Consultivo, insistindo que “aqueles que participam moldam as decisões”. Eis a essência da via media (nem Roma, nem Genebra): caminhar juntos, mesmo com discordâncias, sob o mesmo Evangelho.

 Graça antes da culpa: o sacerdócio feminino como memória do Éden

Trago algumas reflexões da minha esposa, Helena Chiappetta, psicóloga / psicanalista e teóloga, em sua monografia Uma alise teológica sobre a mulher como sacerdotisa no cristianismo (CHIAPPETTA, 2016). Ela lembra com propriedade que a punição para a mulher logo após a queda foi: “O teu desejo será para o teu marido, e ele te dominará” (Gênesis 3.16). Logo, se o domínio foi consequência da queda, segue-se a lógica de que antes do pecado original não havia uma relação de subordinação, mas uma relação de complementaridade e corresponsabilidade. A lógica é clara: a dominação masculina não é algo padrão na Criação de Deus, mas uma distorção da queda. Logo, permitir que mulheres ministrem e preguem não é ceder ao “feminismo secular”, mas restaurar algo anterior à própria maldição: o plano original de Deus em que homem e mulher reinavam juntos, como co-imagem do Criador.

Essa hermenêutica da redenção desmonta o patriarcalismo teológico e mostra que a verdadeira ortodoxia é libertadora, não repressora. Pois a ortodoxia, quando fiel à Encarnação, reconhece que o Verbo se fez carne também no feminino, afinal todos nós somos a soma, a união cromossômica dos genes de nossos pais e de nossas mães.

Entre o zelo e a graça

O problema não está no zelo, mas no excesso de zelo. Quando o zelo se transforma em instrumento de exclusão, deixa de ser virtude e torna-se idolatria. A pureza que se distancia da comunhão trai o Cristo que se fez “impuro” por amor aos impuros. A reforma que se isola perde o nome de reforma e assume o de ruptura. Não se trata, portanto, de uma reforma protestante que busca retornar às origens da fé, mas de um movimento que se fecha sobre si mesmo. Como afirmou o Arcebispo de Cantuária Michael Ramsey, “a Igreja não é uma sociedade de opinião religiosa, mas uma companhia de pecadores redimidos, sustentados pela graça”.

A tentativa de equiparar o atual rompimento promovido pelo GAFCON ao movimento da Reforma Protestante é historicamente imprecisa e teologicamente insustentável. A Reforma do século XVI não foi uma reação de ruptura por divergências administrativas ou culturais, mas uma reorientação teológica profunda, que buscava restaurar a centralidade das Escrituras como a principal fonte de autoridade suprema na fé e na prática cristã (Sola Scriptura), enfatizando que a Reforma Protestante teve seu ponto de partida com Martinho Lutero, o qual, ao ser pressionado a renunciar às suas convicções diante da Dieta de Worms (1521), respondeu com firmeza: “Se não me persuadirem pelas ESCRITURAS e pela RAZÃO, de maneira alguma me retratarei”, reconhecendo, assim, que a fé cristã não é cega nem irracional. Essa afirmação revela o coração do espírito reformador: a crença não é algo sem sentido, mas uma adesão consciente e racional à verdade revelada. Lutero demonstrou, portanto, que a teologia autêntica nasce da harmonia entre fé e razão, onde a luz das Escrituras não anula, mas ilumina o pensamento humano e vice-versa.

Os reformadores não rejeitaram a Tradição, mas subordinaram-na à Palavra revelada, corrigindo séculos de acúmulo de superstições e práticas devocionais sem base neotestamentária e sem o mínimo de racionalidade. Já a ruptura no interior do Anglicanismo não se fundamenta em supostas “heresias” centrais, nem em corrupção doutrinária, mas em disputas eclesiológicas e culturais sobre temas de gênero, linguagem e representatividade (usos e costumes). Por isso, tratá-lo como uma nova reforma é uma distorção: a motivação não é a restauração da fé apostólica, mas o desacordo com a forma como ela se encarna na contemporaneidade.

Confundindo Sola Scriptura com Sola Traditio

Além disso, a nomeação de Sarah Mullally como Arcebispa de Cantuária não representa uma negação da fé apostólica, mas uma continuidade da tradição reformada de discernir os sinais do Espírito no tempo presente (“Derramarei do meu Espírito sobre toda a carne; vossos filhos e vossas filhas profetizarão… até sobre os servos e as servas derramarei o meu Espírito naqueles dias..” Joel 2.28-29 e Atos 2.17-18). Mullally não foi escolhida por militância ideológica, mas por maturidade espiritual, competência pastoral e fidelidade à doutrina cristã. A incoerência, portanto, está em setores do anglicanismo que rejeitam sua nomeação enquanto, paradoxalmente, ordenam mulheres ao diaconato e ao presbiterado, reconhecendo nelas vocação e autoridade ministerial. Se a autoridade sacramental de uma mulher é legítima para servir à mesa e proclamar a Palavra, por que deixaria de sê-lo ao exercer o episcopado? A questão não é sobre fidelidade bíblica, mas sobre um tradicionalismo seletivo, que confunde limites culturais com mandamentos divinos e, ao fazê-lo, corre o risco de transformar a Tradição, que deveria ser serva da Palavra, em seu substituto.

Se a objeção à nomeação de uma mulher com Arcebispa de Cantuária, se fundamentando em uma suposta “fidelidade bíblica”, a coerência exigiria também cessar a ordenação de mulheres ao diaconato e ao presbiterado, ministérios já inseridos na prática eclesial. A seletividade na aplicação da “letra” revela mais uma postura ideológica  sobre manutenção de poder, do que teológica. E se, por outro lado, a motivação for a exaltação da Tradição acima do discernimento contemporâneo, então a coerência histórica pediria um retorno pleno a Roma, onde a Tradição ocupa de fato o lugar supremo. O Anglicanismo, porém, nasceu precisamente da tensão criativa entre Escritura, Tradição, Razão e Experiência (As quatro fontes da Teologia), e não da absolutização de uma delas apenas (McGRATH, 1921).

Comunhão x Cantuária = Anglicanismo

O Anglicanismo nasceu da tensão e nela encontrou maturidade. É o corpo que ora com os puritanos, canta com os carismáticos, e pensa com os eruditos; um corpo que só permanece vivo enquanto permanecer unido.

Separar-se de Cantuária é desfigurar a eclesiologia da encarnação, é amputar o corpo para preservar o dedo. A fidelidade verdadeira não é a do isolamento, mas a da permanência, porque, em Cristo, o cálice é comum.

Referências

 GLOBAL ANGLICAN FUTURE CONFERENCE (GAFCON). The Future Has Arrived. Londres: GAFCON, 16 out. 2025. Disponível em: https://gafcon.org/communique-updates/the-future-has-arrived/. Acesso em: 17 out. 2025

CHIAPPETTA, M. H. B. A mulher como sacerdotisa no cristianismo: uma análise bíblica-teológica refutando a interpretação patriarcal judaico-cristã. 2016. Monografia (Bacharelado em Teologia). Faculdade de Teologia Integrada, FATIN. Igarassu, 2016.

GONZÁLEZ, J. L. História ilustrada do cristianismo: das origens à Idade Média. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2011. v. 1.

GONZÁLEZ, J. L. História ilustrada do cristianismo: da Reforma ao século XXI. 2. ed. São Paulo: Vida Nova, 2011. v. 2.

McGRATH, A. E. Teologia sistemática, histórica e filosófica. 2. ed. São Paulo: Shedd Publicações, 2021.

THE ANGLICAN COMMUNION OFFICE. A Pastoral Letter from The Secretary General of the Anglican Communion in response to a statement by GAFCON. London: Anglican Communion Office, 17 out. 2025. Disponível em: https://www.anglicancommunion.org/media/542454/A-pastoral-letter-from-the-Secretary-General-of-the-Anglican-Communion_17102025.pdf . Acesso em: 17 out. 2025.

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