A ousadia e a coragem de pensar sempre impulsionaram a história e, hoje, no Brasil, a criação da Associação Brasileira dos Bacharéis em Psicanálise (ABBP) marca uma nova ruptura: a da psicanálise conquistando espaço acadêmico, sem perder sua alma clínica.
Ao longo dos séculos, a trajetória do conhecimento humano é pontuada por mudanças profundas, por rupturas filosóficas, científicas e religiosas. De Sócrates a Freud, cada avanço de uma nova ideia demandou a bravura de confrontar o que estava estabelecido. Hoje, no Brasil, a criação da ABBP representa essa mesma atitude: a de superar um silêncio histórico e proclamar que a psicanálise está apta para estabelecer um diálogo com o mundo acadêmico, mantendo inalterados seus princípios éticos e sua profundidade existencial.
Na Grécia, Sócrates ensinou que o conhecimento começa com o questionamento, mas pagou com a vida por não se curvar à ignorância coletiva. Platão e Aristóteles transformaram esse gesto em sistema: o primeiro elevando o pensamento ao mundo das ideias, o segundo trazendo-o de volta ao solo da experiência.
Durante a Idade Média, Agostinho e Tomás de Aquino mostraram que fé e razão não são opostas, mas expressões complementares do mesmo mistério.
O Renascimento e a Reforma reacenderam o espírito da insurreição: Lutero questionou o abuso eclesiástico, Galileu ergueu o telescópio contra a soberba religiosa, mostrando que o universo gira não em torno do poder, mas da sede humana de saber.
Descartes colocou a razão como ponto de partida (“Penso, logo existo”), Kant ensinou que o sujeito é quem organiza o mundo, e Rousseau fez da liberdade uma categoria política.
No século XIX, Marx, Darwin e Nietzsche desestabilizaram as certezas da religião, da ciência e da moral, inaugurando a era das perguntas sem garantias, o solo fértil onde germinaria a psicanálise.
Com Sigmund Freud, o homem descobriu que não é senhor da própria casa psíquica. A psicanálise revelou o inconsciente e, com ele, o drama humano entre desejo, repressão e liberdade.
Einstein relativizou o tempo e o espaço; Heidegger redefiniu o ser como “ser-no-mundo”, Simone de Beauvoir desfez a ideia de um destino feminino fixo: “Não se nasce mulher, torna-se mulher”.
Cada um, à sua maneira, rompeu uma muralha e fundou novas possibilidades de ser e existir.
No século XXI, Zygmunt Bauman e Judith Butler nos lembraram que tudo é fluido: valores, identidades e verdades. É nesse cenário que nasce um novo tipo de ruptura brasileira, simbólica e ousada: a criação da Associação Brasileira dos Bacharéis em Psicanálise (ABBP).
A ABBP rompe com a ideia de que a psicanálise deva permanecer confinada às escolas privadas e sem reconhecimento acadêmico. Sua missão é institucionalizar sem burocratizar, formalizar sem engessar, inovar sem trair a essência.
Ao reconhecer o bacharelado em psicanálise como parte legítima do tripé formativo (teoria, análise pessoal e supervisão), a ABBP marca o início de um novo tempo, em que o saber analítico conquista lugar no cenário universitário com profundidade, ética e compromisso social.
Mais do que uma entidade, a ABBP representa uma travessia histórica: da marginalidade à legitimidade, da defensiva à proposição, do isolamento à interlocução pública.
Assim como Sócrates enfrentou o tribunal de Atenas e Freud enfrentou o ceticismo de Viena, a ABBP enfrenta agora o desafio de abrir espaço para o diálogo entre tradição e inovação.
E toda vez que alguém faz isso, nasce um novo tempo.
Travessia, de Milton, em alguns de seus versos, ilustra bem essa ruptura necessária, a travessia corajosa de deixar para trás arranjos que já não servem: no começo, a ruptura é como a noite que cai, traz a solidão, o choro, mas a estranheza de não mais se sentir em casa naquele lugar força a soltar a voz, a falar, não parar, seguir pela vida, esquecendo o passado: “Hoje faço com meu braço meu viver”. É assim que a ABBP deseja fazer também sua travessia.

