Todes e o Inconsciente: Como a linguagem neutra transforma identidades e estruturas psíquicas

Ao incorporar, por exemplo, um pronome neutro, a própria percepção coletiva sobre identidades de gênero pode ser reconfigurada.

Arte de Helena Chiappetta
Arte de Helena Chiappetta

A introdução de uma variação linguística, como o uso de todes em vez de todos ou todas para promover uma linguagem neutra, pode de fato provocar mudanças tanto na estrutura da linguagem quanto no inconsciente, especialmente se considerarmos as teorias psicanalíticas de Lacan e Jung.

A estrutura do inconsciente pela linguagem de acordo com Lacan

O inconsciente, de acordo com Lacan, é organizado de maneira parecida a uma linguagem, sugerindo que os termos, as regras gramaticais e os elementos simbólicos que utilizamos no cotidiano têm um papel decisivo na configuração do inconsciente. Quando consideramos que o uso da linguagem modifica nosso olhar em relação ao mundo, modifica nossa própria identidade e as conexões humanas que construímos, uma mudança nos pronomes utilizados pode afetar como a pessoa se estrutura e se entende.

O inconsciente é, no fundo dele, estruturado, tramado, encadeado, tecido de linguagem. E não somente o significante desempenha ali um papel tão grande quanto o significado, mas ele desempenha ali o papel fundamental. O que, com efeito, caracteriza a linguagem é o sistema do significante como tal. (LACAN, 1985, p. 139).

A introdução de pronomes neutros, como todes, promove uma ruptura na estrutura simbólica da linguagem popular e comum, tradicionalmente constituída numa lógica de gênero, (masculino/feminino). Essa nova abordagem de expressão e categorização do mundo pode indicar um movimento em direção a uma realidade menos delimitada por essas categorias, oferecendo ao inconsciente a oportunidade de se reconfigurar dentro de uma perspectiva menos hierárquica e mais flexível das identidades e papéis sociais.

Todes e o Inconsciente Coletivo de Jung

Já segundo Jung, o inconsciente coletivo é constituído por arquétipos e estruturas universais partilhadas por toda a humanidade. Essas repetições podem ser modelados pela cultura e pela  transformação da linguagem ao longo do tempo. Se uma mudança linguística, como a introdução de todes, for comum, é possível que o inconsciente coletivo comece a refletir essa novidade, se adaptando nos símbolos e arquétipos culturais aos quais as pessoas se conectam diariamente. Jung afirma que o inconsciente pessoal é simbolizado por emoções e pensamentos reprimidos, formados ao longo da trajetória de vida de uma pessoa (OC, vol. IX/I).

O inconsciente coletivo não se desenvolve individualmente, mas é herdado. Ele consiste de formas preexistentes, arquétipos, que só secundariamente podem tornar-se conscientes, conferindo uma forma definida aos conteúdos da consciência (JUNG, OC, vol. IX/I, §90).

Ao incorporar, por exemplo, um pronome neutro, a própria percepção coletiva sobre identidades de gênero pode ser reconfigurada. O arquétipo da persona — a máscara que usamos para nos apresentar ao mundo — pode ser confrontado por essa linguagem renovada, possibilitando expressões de identidade que vão além das antigas definições de masculino e feminino. Com o tempo, isso pode reestruturar a maneira como a sociedade enxerga gênero, identidade e relações interpessoais, trazendo uma fluidez que antes era pouco acessível no nível simbólico e inconsciente.

Considerações finais

Ao tentamos adequar os pronomes – como todes – à neutralidade, isso pode levar o inconsciente a ser bastante afetado, tanto em nível individual (Lacan) quanto em nível coletivo (Jung). A linguagem não é um reflexo da nossa realidade apenas, mas algo que influencia de maneira ativa na construção da nossa realidade. Quando mudamos a linguagem, transformamos as categorias simbólicas que estruturam o inconsciente, levando a novos modelos de subjetividade e de interação social. Essa transformação na linguagem poderá, abrir novas possibilidades de ressignificação e de experiência subjetiva, transformando, portanto, a longo prazo, as formas como pensamos e nos relacionamos.

Referências

JUNG, C.G. Os arquétipos e o inconsciente coletivo. OC, vol. IX/1. Petrópolis: Vozes. 2016.

LACAN, J. O Seminário Livro III As Psicoses. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Ed., 1985.

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Helena Chiappetta
Maria HELENA Barbosa CHIAPPETTA é Psicanalista Clínica pela ABRAPSI. É Psicóloga Clínica (CRP - 02/22041), é também Neuropsicóloga. É Avaliadora Datista CORETEPE (CRTP-1041). Tem Especialização em: Psicanálise, Psicopatologia e Saúde Mental; Terapia Familiar; Arteterapia; Psicopedagogia Clínica e Institucional, e em Ciências da Religião; Licenciatura em Filosofia e em Pedagogia, além do Bacharelado em Teologia. É Bacharelanda em Psicanálise. Atualmente é Docente no SEID Nordeste e SEID Uberlândia. É Professora Convidada no Curso de Formação em Psicanálise da SNTPC. Tem experiência como docente de Hebraico Bíblico, Psicanálise e Teoria Analítica, Educação Religiosa, Artes, Teologia com ênfase em Ciências da Religião Aplicada e Liderança Institucional. Dedica-se ao estudo das neuroses atuais. É colunista deste Portal Folha Gospel. E-mail: [email protected] Instagram profissional: @h.chiappetta
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