Trabalhar o luto e a melancolia

No luto patológico (melancolia) ocorre uma diferenciação do luto normal, no sentido de o objeto de amor estar perdido e não necessariamente morto.

"Outono" é uma tela da artista Helena Chiappetta

Melancolia e luto são fenômenos inerentes à nossa condição humana; eles se manifestam com toda a sua força nas inevitáveis perdas da vida, quando, então, precisamos aprender a lidar com eles. Trata-se de um verdadeiro desafio, que exige tempo e paciência, na contracorrente da mentalidade atual, que tudo quer resolver rapidamente, recorrendo a todo tipo de remédio miraculoso: “A tristeza ou a depressão não são, portanto, quadros distintos de uma pretensa ‘normalidade’ que se deva buscar restituir a todo custo. Elas podem ser o sinal de que um importante trabalho subjetivo está em marcha, operando a perda do objeto e implicando uma remodelagem do eu, à maneira do trabalho de luto. Esse é um ponto a ser sublinhado na atualidade, de modo a trazer modulações e nuances à crescente medicalização da tristeza, impulsionada pelo desenvolvimento dos antidepressivos nos últimos vinte e cinco anos e o interesse comercial dos laboratórios que os produzem” (Tania Rivera).

Para este trabalho, pode ser útil saber, inclusive, de onde provém tais fenômenos: “O homem deve saber que de nenhum outro lugar, mas apenas do encéfalo, vêm a alegria, o prazer, o riso e a diversão, o pesar e o luto, o desalento e a lamentação. E por meio dele, de maneira especial, nós adquirimos sabedoria e conhecimento, enxergamos e ouvimos, sabemos o que é justo e injusto, o que é bom e o que é ruim, o que é doce e o que é insípido… E pelo mesmo órgão nos tornamos loucos e delirantes, e medos e terrores nos assombram…Todas essas coisas nós temos de suportar quando o encéfalo não está sadio…Nesse sentido, opino que é o encéfalo quem exerce o maior poder no homem” (Hipócrates).

Durante séculos, a teoria hipocrática descreveu a melancolia como o sentimento de um abismo sem fim, ânimo entristecido, cessação do desejo e da fala, desejo de morte, nostalgia, luto etc.

Segundo Roudinesco e Plon (1998), melancolia é um termo aplicado desde os primórdios para indicar “uma forma de loucura caracterizada pelo humor sombrio, isto é, por uma tristeza profunda, um estado depressivo capaz de conduzir (o indivíduo) ao suicídio e por manifestações de medo e desânimo que adquirem ou não um aspecto de delírio” (p. 505).

Dos poetas, filósofos e escritores temos as melhores definições sobre a melancolia. Freud amava a filosofia, a poesia e as artes, e se apropriou do termo para caracterizar determinada forma de transtorno. Em seu artigo Luto e Melancolia (1915), ele restabelece um comparativo entre essas duas condições, onde existe um “pesar por algo perdido”. Ele caracteriza o estado melancólico como a forma patológica do estado de luto.

No luto patológico (melancolia) ocorre uma diferenciação do luto normal, no sentido de o objeto de amor estar perdido e não necessariamente morto. Freud cita como exemplo: “O objeto talvez não tenha realmente morrido, mas tenha sido perdido enquanto objeto de amor (como no caso, por exemplo, de uma noiva que tenha levado o fora)” (FREUD, 1914/1916, p. 251).

Afirma, ainda, que na melancolia não é possível ver conscientemente o que foi perdido pelo luto de alguém ou alguma coisa: “Isso, realmente, talvez ocorra dessa forma, mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua melancolia, mas apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu desse alguém.” (ibidem, p. 251).

No luto normal, a pessoa tem consciência da perda do objeto amado, exemplo: pai, mãe, filhos, amigos etc. Na melancolia, a pessoa sabe conscientemente sobre sua perda, no entanto, não sabe sobre o que perdeu no inconsciente. O melancólico não se conforma nunca com a perda, diferente da pessoa que passa pelo luto normal, que com o tempo se conforma com a perda. No melancólico existe a perda que é retirada da consciência, indo portanto, para o inconsciente. No entanto, no luto normal não existe nada de inconsciente sobre a perda.

Ainda segundo Rivera, “na melancolia, o eu se revolta contra a perda, em vez de engatar um trabalho de luto através do qual possa a ela se con-formar, identifica-se maciçamente ao objeto perdido, a ponto de se deixar perder junto com ele. Tal rebelião é o cerne da melancolia e pode se instalar como uma ‘ferida aberta’ que suga a libido e dolorosamente empobrece o eu”.

Fica o questionamento: como lidar com a perda em nós mesmos? E lidar com a falta do outro? E com o que falta do outro em nós? “De fato, não basta que o objeto desapareça para que dele nos separemos. É necessário um verdadeiro trabalho psíquico de perda, chamado por Freud ‘trabalho do luto’ – tarefa lenta e dolorosa através da qual o eu não só renuncia ao objeto, dele se desligando pulsionalmente, como se transforma, se refaz no jogo com o objeto” (Tania Rivera).

Vento no litoral
Legião Urbana

De tarde eu quero descansar, chegar até a praia e ver

Se o vento ainda está forte

E vai ser bom subir nas pedras

Sei que faço isso pra esquecer

Eu deixo a onda me acertar

E o vento vai levando tudo embora

Agora está tão longe

Vê, a linha do horizonte me distrai

Dos nossos planos é que tenho mais saudade

Quando olhávamos juntos na mesma direção

Aonde está você agora

Além de aqui dentro de mim?

Agimos certo sem querer

Foi só o tempo que errou

Vai ser difícil eu sem você

Porque você está comigo o tempo todo

E quando vejo o mar

Existe algo que diz

Que a vida continua e se entregar é uma bobagem

Já que você não está aqui

O que posso fazer é cuidar de mim

Quero ser feliz ao menos

Lembra que o plano era ficarmos bem?

Ei, olha só o que eu achei, cavalos-marinhos

Sei que faço isso pra esquecer

Eu deixo a onda me acertar

E o vento vai levando tudo embora

Leia também o artigo: LUTO E MELANCOLIA


Referências

Hipócrates, Da Doença Sagrada (século IV a.C.) (BEAR; CONNORS; PARADISO, 2017, p. 4) BEAR, Mark; CONNORS, Barry; PARADISO,

Michael. Neurociências: Desvendando o Sistema Nervoso. 4. ed. Porto Alegra: Artmed, 2017. 974 p.

FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (1914-1916). Rio de Janeiro: Imago, 1996.

ROUDINESCO, E.; PLON, M. Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Tania Rivera, Luto e melancolia, de Sigmund Freud (https://www.scielo.br/j/nec/a/SKPG96FFGB6qtfGzgHkTpkP/?lang=pt).

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Helena Chiappetta
Maria HELENA Barbosa CHIAPPETTA é Psicanalista Clínica pela ABRAPSI. É Psicóloga Clínica (CRP - 02/22041), é também Neuropsicóloga. É Avaliadora Datista CORETEPE (CRTP-1041). Tem Especialização em Psicopedagogia Clínica e Institucional, e em Ciências da Religião; Licenciatura em Filosofia e em Pedagogia, além do Bacharelado em Teologia. É Bacharelanda em Psicanálise, Pós-graduanda no curso de Arteterapia, Pós-graduanda no curso de Psicanálise, Psicopatologia e Saúde Mental, Pós-graduanda em Terapia Familiar. Atualmente é Docente no SEID Nordeste e SEID Uberlândia. É Professora Convidada no Curso de Formação em Psicanálise da SNTPC. Tem experiência como docente de Hebraico Bíblico, Psicanálise e Teoria Analítica, Educação Religiosa, Artes, Teologia com ênfase em Ciências da Religião Aplicada e Liderança Institucional. Dedica-se ao estudo das neuroses atuais. É colunista deste Portal Folha Gospel. E-mail: [email protected] Instagram profissional: @h.chiappetta
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