Jamil Chade
Colaboração para o UOL, em Genebra (Suíça)

Na Amazônia, reinam “a violência, o caos e a corrupção”. A constatação faz parte dos documentos de trabalho preparados por bispos e dioceses como base das discussões para o Sínodo da Amazônia, marcado para outubro em Roma.

Nos últimos meses, o governo de Jair Bolsonaro demonstrou profunda irritação em relação ao evento, transformando a reunião entre religiosos em seu mais novo palco de um confronto diplomático internacional.

O conteúdo das propostas, de fato, pode significar uma pressão maior ao governo e uma maior capacidade de mobilização das populações que, hoje, são vítimas de abusos de direitos humanos e esquecidas pelo Estado.

Nos documentos oficiais que circulam entre os religiosos para alimentar o debate, fica claro que a Santa Sé coloca em xeque a atual realidade da exploração econômica da floresta, apresentando-a como uma ameaça para o planeta. Mas é, acima de tudo, o novo papel que a Igreja quer ter na região que causa apreensão nos círculos do poder.

Os documentos de trabalho do sínodo não representam o resultado final da reunião. O texto é, acima de tudo, formado por consultas e sugestões enviadas por dioceses espalhadas pela Amazônia. Após os debates em Roma, o papa Francisco poderá responder aos temas propostos com uma carta apostólica, determinando, então, uma linha de atuação da Igreja.

Bispos que conversaram com a reportagem do UOL sob condição de anonimato dizem que a agenda proposta não deve ser vista como uma afronta à soberania do governo na região e lamentam a forma pela qual a administração Bolsonaro optou por tratar o sínodo como um “ato de resistência” e como se fosse uma “conferência da oposição”.

Os bispos também recusam a acusação de que sejam “de esquerda”, forma pela qual membros do governos os têm classificado.

Nas últimas semanas, diversas foram as reuniões entre membros do Itamaraty a e a diplomacia do Vaticano para tratar do assunto. A chancelaria chegou a deixar claro que via com desconforto alguns dos temas da agenda, assim como a forma pela qual foram apresentados.

Durante os meses de consultas por toda a Amazônia para preparar os documentos de trabalho e a agenda do sínodo, a Santa Sé concluiu que “as comunidades consultadas esperam que a Igreja se comprometa no cuidado da Casa Comum e de seus habitantes, que defenda os territórios e que ajude os povos indígenas a denunciar o que provoca morte e ameaça os territórios”.

A partir das consultas, portanto, uma lista de sugestões foi elaborada para que, em Roma, os religiosos as considerem. Entre as propostas está a de que padres e bispos espalhados pela região abracem as causas sociais, de reforma agrária e ambientais, se distanciando do poder político.

Recomenda-se que a Igreja “assuma sem medo a aplicação da opção preferencial pelos pobres na luta dos povos indígenas, das comunidades tradicionais, dos migrantes e dos jovens, para configurar a fisionomia da Igreja amazônica”.

E a orientação vai além: “rejeitar a aliança com a cultura dominante e o poder político e econômico, para promover as culturas e os direitos dos indígenas, dos pobres e do território”.

O Vaticano não fala de questionar a soberania dos governos e nem insinua a necessidade de dar um “status internacional” para a floresta, um ponto sensível para o Brasil. Mas a Igreja insiste que o atual modelo de exploração não pode ser aceito, nem em termos ambientais e nem no que se refere aos direitos humanos.

Em um documento denominado de Instrumentum Laboris, por exemplo, o Vaticano deixa claro: “a vida na Amazônia está ameaçada pela destruição e exploração ambiental, pela violação sistemática dos direitos humanos elementares da população amazônica”. “A ameaça à vida deriva de interesses econômicos e políticos dos setores dominantes”, diz o texto, que aponta ainda para o papel das empresas extrativistas.

Nas consultas realizadas pelo Vaticano em todos os países da região Amazônica, um elemento que surgiu com força foi a conivência do poder com aqueles que ameaçam a floresta. Uma lista dos principais problemas foi elaborada e eles incluem a criminalização e assassinatos de líderes e defensores do território, além de concessões a madeireiras, monocultura e mesmo narcotráfico.

Na avaliação da Santa Sé, o aumento de intervenção humana, incluindo incêndios, e mudanças climáticas “estão levando a Amazônia rumo a um ponto de não retorno”.

“O abate maciço de árvores, o extermínio da floresta tropical causado por incêndios florestais intencionais, a expansão da fronteira agrícola e as monoculturas são causas dos atuais desequilíbrios regionais do clima, com efeitos evidentes sobre o clima global, a nível planetário, tais como as grandes secas e as inundações cada vez mais frequentes”, alerta a Igreja.

O sínodo, ainda que seja um momento para que a Igreja defina seu papel na região, não hesitará em fazer denúncias graves.

Num documento da diocese de San José del Guaviare e da Arquidiocese de Villavicencio e Granada (Colômbia), fronteira entre Brasil, Colômbia e Peru, os indígenas locais apelam: “a terra tem sangue e está sangrando, as multinacionais cortaram as veias de nossa Mãe Terra”, disseram.

Num outro trecho, uma diocese colhe a seguinte descrição da situação: “somos uma região de territórios roubados”.

Para a Igreja, portanto, a Amazônia “constitui uma formosura ferida e deformada, um lugar de dor e violência, como o indicam de maneira eloquente os relatórios das Igrejas locais”.

A realidade da Amazônia é ainda descrita como uma que vive “à margem da lei e do direito em muitas de suas regiões”.

“O grito de dor da Amazônia é um eco do clamor do povo escravizado no Egito”, comparam os religiosos, numa referência a uma passagem bíblica.

O Vaticano defende “aliar-se aos movimentos sociais de base, para anunciar profeticamente uma agenda de justiça rural que promova uma profunda reforma agrária, incentivando a agricultura orgânica e agroflorestal”.

“A Igreja não pode permanecer indiferente mas, pelo contrário, deve contribuir para a proteção dos defensores de direitos humanos, e fazer memória de seus mártires, entre elas mulheres líderes como a Irmã Dorothy Stang.”

Fonte: UOL

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