O cardeal Walter Kasper (foto), representante ecumênico da Igreja Católica, discute aqui as relações do Vaticano com os muçulmanos e o furor por causa das recentes declarações do papa Bento 16. “Não podemos ser ingênuos ao entrar nesse diálogo. O Islã sem dúvida merece respeito”.
Der Spiegel – Cardeal, o senhor está surpreso com a intensa reação do mundo muçulmano ao discurso do papa em Regensburg?
Walter Kasper – Como a fé cristã constitui um ato pessoal voluntário, o papa tem todo o direito de abordar as preocupações justificáveis do Iluminismo: o conceito dos direitos humanos universais, a liberdade religiosa e a distinção entre religião e política. Afinal, a Igreja Católica é uma igreja mundial e hoje, mais que nunca, um ator global.
O que significa que os conflitos com outras religiões são aparentemente inevitáveis.
O conflito com o Islã, afinal, existiu durante toda a história européia, e é o que o papa estava dizendo. O confronto com o Islã hoje parece estar entrando em uma nova fase. Muitos o chamaram de “choque de civilizações”. Mas essa frase deve ser usada com grande cuidado, para evitar que se torne uma profecia que se auto-realiza. A alternativa ao conflito chama-se diálogo. Essa é a opção escolhida pela Igreja, e também a que o papa prefere. Queremos uma diferença de opinião pacífica, o que, é claro, se baseia na reciprocidade. Mas não devemos abrigar ilusões sobre as dificuldades que isso envolve.
Por que o diálogo com o Islã é tão difícil para a Igreja Católica?
Não existe um único Islã. O Corão é ambíguo e o Islã não é uma entidade monolítica. A distinção entre o Islã radical e os muçulmanos moderados é importante, assim como as diferenças entre sunitas e xiitas e entre o Islã militante e místico. O Islã no mundo árabe coexiste com o Islã indonésio, paquistanês e turco. Existe uma solidariedade limitada, mesmo dentro do mundo árabe. Os muçulmanos que vivem na Alemanha não conseguiram construir uma organização que represente todos os muçulmanos. Essa organização poderia nos proteger contra fantasias irracionais dirigidas pelo medo, fantasias que demonizaram completamente o Islã. Mas é difícil nas atuais circunstâncias encontrar contrapartidas representativas com as quais conversar.
O senhor acha que é possível um diálogo em bases iguais?
Não podemos ser ingênuos ao entrar nesse diálogo. O Islã sem dúvida merece respeito. Ele tem algumas coisas em comum com o cristianismo, como Abraão como progenitor comum e a crença em um Deus único. Mas o Islã desenvolveu-se em oposição ao cristianismo ortodoxo desde o início e considera-se superior ao cristianismo. Até agora ele só foi tolerante em lugares onde é minoria. Onde é a religião majoritária, o Islã não reconhece a liberdade religiosa, pelo menos não como a compreendemos. O Islã é uma cultura diferente. E isso não significa que seja uma cultura inferior, mas é uma cultura que ainda precisa se conectar aos lados positivos de nossa cultura ocidental moderna: liberdade religiosa, direitos humanos e direitos iguais para as mulheres. Esses fracassos são um dos motivos pelos quais muitos muçulmanos sentem tal frustração que muitas vezes se transforma em ódio e violência contra o Ocidente, que é desprezado como sendo ateu e decadente. Os atentados suicidas são atos de perdedores que não têm nada a perder. Nesse caso o Islã serve de máscara, uma cobertura para o desespero e o niilismo, mas não para a religião.
Em que direção o senhor acredita que o Islã está se desenvolvendo?
Uma pergunta não respondida é se um euro-Islã, combinando Islã e democracia, será possível no futuro. Não devemos confundir desejo com realidade. Como a Europa deve se comportar? A Europa se considera uma sociedade de mentalidade liberal. Ela não pretende nem pode ser um “clube cristão”. Mas o experimento da Europa com o pluriculturalismo, a existência lado a lado de diferentes culturas, falhou em todo o continente. A integração exige uma base mínima de valores compartilhados, isto é, uma cultura de tolerância e respeito mútuos – em outras palavras, o que constitui o coração da cultura européia. É por isso que a integração não é possível sem excluir os que não reconhecem essa cultura. Os que não estão preparados para demonstrar tolerância não podem esperar ou mesmo pedir tolerância para si mesmos.
Que tipo de Europa a Igreja quer?
Uma Europa que qualifica seus próprios valores não é interessante aos olhos dos muçulmanos. A Europa deve se comportar como um parceiro forte, intelectual e espiritualmente, e deve estar convencida de suas próprias vantagens. Essa é a única maneira de obtermos respeito.
Somente uma Europa que é consciente de seus próprios valores pode ser ao mesmo tempo economicamente forte e um parceiro moral e intelectualmente respeitado, e assim estender sua hospitalidade aos outros. É uma desgraça cultural sermos obrigados a identificar áreas proibidas para estrangeiros.
Traçar referências na história do cristianismo e do Islã é realmente útil para promover o diálogo?
O cristianismo trouxe algo novo e revolucionário: liberdade e dignidade incondicional para todo indivíduo, independentemente de sua religião, cultura ou nacionalidade. Mas o Oriente e o Ocidente se distanciaram desde as cruzadas. “É melhor ter os turbantes dos turcos do que as mitras dos romanos”, é um ditado antigo no Oriente. O corte de relações com o Oriente significou um empobrecimento intelectual, que levou a uma crise interna na Igreja no final da Idade Média. Foi um dos motivos da Reforma no século 16. Com seu conceito de “liberdade do indivíduo cristão”, a Reforma introduziu uma importante força intelectual e cultural na cultura européia. Mas também levou à fratura do cristianismo ocidental…
… e às guerras religiosas.
Essas guerras religiosas mostraram que a fé cristã não era mais a força unificadora da Europa. Um novo terreno comum era necessário, e acho que foi encontrado na razão, que era algo compartilhado por toda a humanidade. Essa foi uma das raízes do Iluminismo e seu conceito de direitos humanos universais. As conquistas científicas e sociais da era moderna são indiscutíveis. Mas depois da Revolução Francesa a modernidade cada vez mais se emancipou das raízes cristãs, tornando-se assim desenraizada. Essa abordagem especial durou pouco. O “Sonderweg” (“caminho especial”, teoria que afirma que a Alemanha seguiu um curso único na história e que isso levou inevitavelmente às condições que deram origem ao nazismo) não durou muito. O fim da Primeira Guerra Mundial também marcou o fim da cultura burguesa.
Desenvolveu-se um vazio interior nos séculos 19 e 20, que abriu caminho para duas ideologias que arrastaram a Europa e o mundo para o abismo e a mergulharam numa catástrofe.
E agora a Igreja tem uma solução para esse vazio intelectual?
A questão fundamental, quando se trata do futuro da Europa, será se e como vamos conseguir transferir os ideais que já tornaram a Europa grande – especialmente suas raízes cristãs – para o mundo modificado de hoje. Ninguém quer voltar à Idade Média.
É essa a conclusão que o senhor tira da Inquisição e das tentativas de disseminar a fé à força?
A distinção entre ordens religiosas e seculares é um aspecto fundamental do cristianismo hoje. Essa distinção é uma inovação comparada ao islamismo e ao judaísmo, e é uma vantagem que ajudou a moldar a Europa.
Também tem origens nas palavras de Jesus Cristo, que disse: “Dê a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus”.
Fonte: Der Spiegel