Professor de sociologia da USP diz que bispo poderia vir a ter seguidores, mas não tem características de líder carismático. Para antropóloga, protesto trouxe questões que não apareceram em outros momentos em que a igreja se envolveu com a política.
Ao fazer seu protesto contra a transposição das águas do rio São Francisco, o bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, 61, promoveu um ato mais político do que religioso, disseram professores à Folha. Apesar disso, o bispo não tem as características de um líder messiânico.
Para o professor titular de sociologia da USP Lisias Nogueira Negrão, autor de “O Messianismo no Brasil Contemporâneo”, o bispo até poderia vir a ter seguidores, apesar de não ter características de líder messiânico. O professor explica que esses líderes costumam atuar à margem da igreja, o que não é o caso de d. Luiz.
“Não que não tenha havido líderes messiânicos dentro da igreja, como o caso famoso do padre Cícero, que foi neutralizado pela igreja. Mas normalmente o líder messiânico se contrapõe à instituição. Embora a CNBB tenha se posicionado nessa caso- ela foi meio ambígua-, não há um rompimento com a instituição”, diz.
“Uma atitude como essa, que poderia ter como conseqüência a própria morte, poderia provocar um surto messiânico. Ele poderia ser pensado como sendo um homem de virtudes excepcionais e como tal ser objeto de um certo culto a ele como um santo em vida”, avalia.
Mario Maestri, professor do de pós-graduação em história da Universidade de Passo Fundo (RS), diz que “no mundo latino o catolicismo teve sempre enorme dimensão política”.
“A greve de fome enseja discussão porque emprega a dimensão sacra do sacerdote contra iniciativa dos grandes interesses econômicos, de gravíssimas seqüelas sociais e ambientais, em época de grande despolitização”, diz. “É um ato político que se dá dentro do espaço de concepção de mundo, com toda uma comunidade de esquerda da igreja.”
Já a antropóloga Regina Novaes, que estuda a relação entre política e religião, afirma que o protesto trouxe pontos inéditos, que não estavam presentes em outros momentos em que a igreja se envolveu em questões políticas no Brasil.
“O que é novo agora? Trata-se de um protesto sobre um assunto que não alinha de um lado a elite e de outro o povo; nem de um lado os conservadores e de outro os progressistas. Nem sequer podemos dizer que de um lado está a igreja progressista e, de outro, a conservadora”, afirma.
Segundo a professora, as definições de “bem” e “mal” neste caso estavam embaralhadas, “em linguagem técnica, ecológica e de justiça social”.
“Por um lado, trata-se de um Estado laico e de um governo eleito democraticamente e, neste sentido, não haveria como ceder a um bispo católico por mais carismático e generoso que ele seja”, afirma Regina. “Por outro lado, trata-se de um país bastante marcado pela cultura católica, que santifica por meio do sofrimento. D. Cappio se tornaria um mártir em defesa do “Velho Chico’? É possível. Mas não certo.”
Para teólogo, ato de bispo tem amparo na Bíblia
A greve de fome do bispo de Barra (BA), dom Luiz Cappio, tem amparo bíblico, segundo o teólogo Geraldo Hackmann, professor da PUC-RS e único brasileiro na Comissão Teológica Internacional do Vaticano. “É uma forma pacífica de se pedir uma mudança”, diz ele.
Ao longo da semana, os religiosos que apóiam dom Luiz Cappio, como o bispo auxiliar de São Paulo dom Pedro Stringhini, repetem que ele não fez greve de fome, mas jejum, que está regulamentado pelo Vaticano. O Código de Direito Canônico afirma que todos os católicos devem se privar de alimento por um ou mais dias durante o ano para refletir sobre seus pecados.
Não é o caso de d. Luiz, que viveu à base de soro na tentativa de barrar a transposição do rio. Tanto que d. Aldo Pagotto, arcebispo da Paraíba, tem afirmado que o ato do bispo de Barra não é religioso, é político.
Para Hackmann, o jejum de d. Luiz se enquadra no exemplo do profeta Jeremias, no Antigo Testamento, que era crítico do rei Sedecias e de sua política externa que teria levado à destruição de Jerusalém. “O ato de d. Luiz lembra o que se chama de gesto profético”, afirma o teólogo. Um gesto profético ocorre, por exemplo, quando uma pessoa toma medidas políticas inspirada por princípios religiosos, mesmo que sob risco de vida. Acredita-se que o profeta é inspirado por Deus.
O problema é uma questão de consciência, na opinião dos religiosos. Segundo eles, se dom Luiz estiver convicto de que a greve é inspirada por Deus, tudo bem.
Supremo libera transposição; bispo desmaia e é internado
Ontem o STF (Supremo Tribunal Federal) liberou as obras de transposição de parte das águas do rio São Francisco. Também ontem, o bispo de Barra (BA), d. Luiz Cappio, que faz greve de fome contra a transposição, passou mal e foi internado, segundo informações do médico que o atendeu, frei Klaus Finkam. Pela manhã, o plenário do STF negou recurso que, se aceito, paralisaria as obras. Em outro processo, o ministro do STF Carlos Menezes Direito cassou decisão do juiz do Tribunal Regional Federal da 1ª Região Antonio Souza Prudente que havia suspendido as obras.
Tanto a rejeição do recurso quanto a derrubada da decisão do TRF-1 representam uma importante vitória judicial do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, que elegeu a transposição, orçada em mais de R$ 5 bilhões, como uma das prioridades de seu governo.
Por 6 votos a 3, os ministros negaram um pedido de paralisação das obras, apresentado em julho pelo procurador-geral da República, Antonio Fernando Souza, para quem o governo não cumpriu as exigências mínimas para executar o projeto. Os ministros favoráveis à suspensão das obras foram Carlos Ayres Britto, Cezar Peluso e Marco Aurélio Mello. Para eles, seria uma medida de cautela contra eventuais riscos de danos a ambiente, erário público e populações atingidas.
A maioria dos ministros disse que o governo vem cumprindo os requisitos para realização do projeto e que o Judiciário não pode interferir na definição de políticas públicas. “Cabe ao Executivo a exclusiva responsabilidade de avaliação, definição, execução e portanto opção de políticas públicas diante das necessidades sociais da população”, disse Direito, o relator.
Ele rebateu um dos pontos mais polêmicos do projeto: a necessidade de autorização do Congresso por atingir comunidades indígenas. Direito afirmou que só haveria essa exigência se a finalidade fosse retirar recursos hídricos das terras indígenas, não fornecer a elas. Britto, um dos votos vencidos, disse que o rio São Francisco padece de “pobreza franciscana” e criticou a transposição simultaneamente à revitalização. “Se o rio está doente, deveria ser revitalizado primeiro. Não se pode exigir que a pessoa doente seja doadora de sangue”, afirmou ele.
As obras de transposição são contestadas pelo Ministério Público Federal, seccionais da Ordem dos Advogados do Brasil, entidades ambientalistas e associações de trabalhadores rurais, principalmente da Bahia, de Sergipe e Minas Gerais.
“Vamos levar adiante esse projeto, que é importantíssimo ao Nordeste e ao Brasil. Vamos repetir que a decisão do STF não significa vitória de ninguém sobre ninguém, nós continuamos abertos para ouvir propostas venham ela de onde vier, inclusive do bispo, que possam aprimorar, melhorar, agregar qualidade ao projeto”, disse o ministro Geddel Vieira Lima (Integração Nacional).
Fracasso
Também ontem Lula encerrou as negociações com o bispo. A decisão foi informada no final da tarde de ontem ao comando da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), por meio de um telefonema do chefe-de-gabinete da Presidência, Gilberto Carvalho, ao secretário-geral da entidade, dom Dimas Lara Barbosa. De acordo com o governo, os trabalhos serão retomados pelo Exército em 7 de janeiro, quando os militares retornam do recesso do Natal e do Réveillon.
“Aqui [em Brasília] morreu a negociação com o governo. Não tem mais nada para ser conversado”, disse Roberto Malvezzi, agente da CPT (Comissão Pastoral da Terra), e que está desde anteontem em Brasília como representante de dom Luiz.
Fonte: Folha de São Paulo