Suprema Corte dos Estados Unidos
Suprema Corte dos Estados Unidos

Alessandra Corrêa
De Winston-Salem (EUA) para a BBC News Brasil

Quase 50 anos depois de o direito ao aborto ter sido garantido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, a nova composição do tribunal, que desde o ano passado tem uma sólida maioria conservadora, vem encorajando uma onda de leis estaduais com restrições cada vez mais severas à prática – há até proposta pedindo pena de morte para mulheres e profissionais envolvidos.

Um dos exemplos mais recentes é a lei sancionada na semana passada pelo governador de Ohio, o republicano Mike DeWine, que proíbe abortos a partir do momento em seja possível detectar batimentos cardíacos no embrião – o que ocorre em torno da sexta semana de gestação, quando muitas mulheres ainda nem sabem que estão grávidas.

A lei deve ser contestada na Justiça e tem poucas chances de entrar em vigor, já que a Constituição americana garante o direito ao aborto até o ponto de viabilidade fetal (a partir do qual o feto pode sobreviver fora do útero), que varia, mas ocorre geralmente em torno de 24 semanas de gestação.

Mas, mesmo sob o risco de uma batalha judicial, Ohio é o terceiro Estado a aprovar uma lei do tipo neste ano, depois de Kentucky e Mississippi. Dakota do Norte já havia aprovado lei semelhante em 2013, e Iowa, no ano passado. Na Geórgia, a legislação aguarda apenas sanção do governador. Propostas semelhantes estão sendo consideradas em pelo menos outros 11 Estados.

Até agora, nenhuma das chamadas “leis de batimentos cardíacos” entrou em vigor. Em Ohio e Mississippi, estão previstas para julho. Nos demais Estados em que já foram sancionadas, foram bloqueadas nos tribunais, por serem inconstitucionais.

Mas ativistas dos dois lados do debate dizem que um dos objetivos dessas leis é exatamente provocar ações na Justiça, na esperança de que um dos casos sobre aborto chegue à Suprema Corte e que a maioria conservadora no tribunal decida reverter a decisão de 1973, no caso Roe vs. Wade, que legalizou a prática no país.

“Todas essas legislações são claramente inconstitucionais. A estratégia é litigar uma delas até a Suprema Corte”, diz à BBC News Brasil a advogada responsável pelas políticas estaduais da organização de defesa do direito ao aborto Center for Reproductive Rights, Elisabeth Smith.

O próprio governador de Ohio reconheceu, na cerimônia de assinatura da lei, que o objetivo era fazer um argumento pela reversão do precedente legal existente. “A Suprema Corte, em última análise, decidirá”, afirmou.

Restrições

A decisão no caso Roe vs. Wade reconheceu o aborto como um direito fundamental em todo o país e determinou que, antes do ponto de viabilidade fetal, os Estados não podem proibir a mulher de exercer esse direito por nenhum motivo.

Mas como depois desse ponto os Estados podem regular o aborto (exceto quando for necessário para preservar a vida ou saúde da mulher), desde 1973 os governos estaduais, principalmente os de maioria conservadora e comandados pelo Partido Republicano, vêm adotando uma série de restrições ao procedimento.

Segundo o Guttmacher Institute, organização de pesquisa que defende direitos reprodutivos e monitora leis sobre o tema, 43 dos 50 Estados americanos proíbem o aborto a partir de determinado período de gestação.

Há várias outras restrições. Alguns Estados impõem determinados períodos mínimos de espera, aconselhamento obrigatório ou, no caso de menores, necessidade de aprovação do pais. Outros aumentam as exigências sobre as clínicas.

Mas, até recentemente, essas leis estaduais buscavam restringir o acesso ao aborto sem, no entanto, contrariar frontalmente a Constituição. Agora, com a nova composição da Suprema Corte, muitos opositores do aborto acreditam que o cenário nunca foi tão favorável à sua causa, e estão pressionando por estratégias mais agressivas.

Pena de morte para mulheres

Segundo o Guttmacher Institute, desde o início do ano já foram apresentadas mais de 300 leis estaduais restringindo o acesso ao aborto.

Vários Estados vêm proibindo o procedimento a partir de 20 semanas, quando, segundo os autores dessas leis, o feto pode sentir dor. Outros proíbem abortos motivados por gênero, raça ou diagnóstico de anomalia do feto.

No Alabama, foi realizada audiência pública na semana passada sobre uma proposta que torna o aborto, em qualquer estágio, crime com pena de até 99 anos de prisão para os profissionais médicos envolvidos. Não há exceção para caso de estupro ou incesto, somente para caso de risco à saúde da mulher.

No Texas, uma lei que classifica qualquer tipo de aborto como crime de homicídio recebeu audiência pública neste mês. O Estado tem pena de morte para homicídio, o que tornaria possível que grávidas e profissionais médicos que fizessem abortos fossem passíveis de uma condenação desse tipo.

Apesar de a proposta não ter chances de avançar, o simples fato de ter sido debatida, com 446 testemunhas em apoio e 54 em oposição, é visto como exemplo da nova onda de leis consideradas extremas, que teriam o objetivo de provocar contestação na Justiça, na esperança de chegar à Suprema Corte.

No Brasil, o aborto é permitido por lei em três tipos de gravidez: estupro, risco à vida da mulher ou feto anencéfalo.

A promessa de Trump

Em sua campanha à Presidência, Donald Trump prometeu nomear juízes que se opusessem ao aborto para a Suprema Corte – e também em instâncias inferiores, como os tribunais de apelação. Eleito em 2016 com o apoio de 81% dos eleitores evangélicos brancos do país, o presidente cumpriu a promessa.

Em 2017, nomeou Neil Gorsuch para a vaga deixada por Antonin Scalia, morto em 2016. Como Scalia era conservador, a substituição não alterou o equilíbrio da Suprema Corte. Mas, no ano passado, Trump nomeou Brett Kavanaugh para substituir Anthony Kennedy, que se aposentou. Apesar de conservador, Kennedy costumava se aliar à ala liberal da corte em diversas decisões.

Kavanaugh consolidou a maioria conservadora na corte, de 5 a 4, e seu voto é considerado decisivo nos futuros casos sobre aborto que possam chegar ao tribunal.

“É um momento muito especial. Uma janela de oportunidade”, diz à BBC News Brasil a presidente da organização de oposição ao aborto Americans United for Life (Americanos Unidos pela Vida, em tradução livre), Catherine Glenn Foster.

“Com a composição da Suprema Corte, há a opinião de que talvez estejamos mais perto do que jamais estivemos nos últimos 25 anos de reverter Roe vs. Wade.”
Caso isso ocorra, o aborto passaria a ser regulado apenas pelos Estados. Alguns Estados conservadores já vêm adotando leis que proibiriam completamente o aborto a partir do momento em que Roe vs. Wade fosse revertida. Por outro lado, Estados liberais vêm aprovando leis para ampliar o acesso, caso as proteções federais sejam derrubadas.

Em Nova York, por exemplo, o governador democrata Andrew Cuomo sancionou lei que remove o aborto do Código Penal estadual e permite que seja feito após 24 semanas se o feto não tiver chance de sobreviver fora do ventre ou quando for necessário para proteger a vida ou a saúde da mulher.

Outros casos

Mesmo dentro do movimento antiaborto, muitos questionam a estratégia de aprovar leis claramente inconstitucionais, como as de “batimentos cardíacos”, que têm poucas chances de entrar em vigor e podem custar aos contribuintes centenas de milhares de dólares em um processo judicial.

“Nós celebramos as pessoas que estão promovendo essas leis (de batimentos cardíacos). Elas querem fazer a declaração mais forte possível sobre (a necessidade de) acabar com o aborto no país, e nós concordamos completamente com isso”, salienta Foster, cujo grupo oferece assistência e modelos de legislação a políticos estaduais que se opõem ao aborto.

“Mas a verdade é que nenhuma dessas leis, em lugar algum, já salvou alguma vida. Todas foram bloqueadas nos tribunais. Nossa posição é a de que aqueles que querem salvar vidas devem buscar outros tipos de legislação (com mais chance de resistir a contestação na Justiça)”, ressalta.

Além disso, não há indicações de que a Suprema Corte aceitaria analisar um caso relacionado a estágios tão iniciais da gravidez. Mas, segundo analistas, há pelo menos outros 20 casos atuais que poderiam ser aceitos pelo tribunal.

Entre eles está uma lei de Indiana que determina que mulheres sejam submetidas a exame de ultrassom e, então, esperem 18 horas antes do aborto (o que pode exigir duas idas à clínica, às vezes a quilômetros de distância). O Estado também proíbe abortos baseados no sexo do feto ou em diagnóstico de anomalia fetal, e exige que restos fetais sejam enterrados ou cremados.

Outro possível caso se refere a uma lei da Louisiana que exige que médicos que façam abortos sejam ligados a hospitais próximos do local onde o procedimento é realizado. A lei foi bloqueada pela Suprema Corte, e é quase idêntica a uma lei do Texas que foi declarada inconstitucional em 2016.

“Tanto os que apoiam o direito ao aborto quanto aqueles que se opõem têm dúvidas sobre como essa Suprema Corte, com o juiz Kavanaugh, irá se posicionar”, observa Smith.

“Mas é importante lembrar que a composição da Suprema Corte já mudou inúmeras vezes desde Roe vs. Wade, e todas as vezes em que analisou um caso sobre aborto, o tribunal reafirmou que é um direito fundamental”, ressalta Smith.

Fonte: BBC News

Comentários