Para muita gente, ele é o ritmo do momento, o clamor em forma de expressão artística de um segmento marginalizado; para outros, um gênero que deve ser evitado devido à sua associação com a promiscuidade sexual e a criminalidade. Fato é que o funk divide opiniões desde sua eclosão como movimento cultural, no fim dos anos 1980. A cantora de funk, Perlla (foto), ligada à Assembléia de Deus da Penha, no Rio, atribui seu sucesso à bênção de Deus.

De lá para cá, ele tem ditado o ritmo de gerações inteiras e se tornou um fenômeno comportamental e social. Ninguém pode negar, contuto, suas raízes – a começar pela própria etimologia do termo, já que funk vem de um adjetivo inglês traduzido literalmente como fedor e odor de corpos durante o ato sexual.

Profano? Pode ser. Mas, para espanto de setores mais conservadores da Igreja Evangélica, o ritmo tem sido cada vez mais usado como veículo de evangelização e até de louvor e adoração. Já existe até o funk gospel, com músicas no estilo batidão e letras que fazem apologia a Jesus Cristo como Senhor e Salvador, e vem arrebanhando milhares de jovens em todo o Brasil. “É perfeitamente possível conciliar o ritmo com a fé”, pontifica Adriano Melo de Lima, nome artístico Adriano Gospel Funk. Seu CD Chuta que é laço já vendeu mais de 30 mil cópias.

“Realmente existe um lado podre do funk, que é o chamado proibidão, cujas músicas fazem alusão clara às drogas, ao sexo e à violência”, reconhece o artista. “O funk tem uma batida, um ritmo que induz a balançar o corpo, dançar. Se quem está cantando tem orientação diabólica, gestos sensuais e obscenos acontecem.” Mas, segundo Adriano, no funk gospel esse comportamento não tem espaço devido ao temor de Deus. Claro, é preciso ser radical no quesito santidade. “Se, por acaso, num show eu vejo alguma galera se excedendo, paro a música e exorto o pessoal, lembrando que nosso corpo é o templo de Espírito Santo”, explica o cantor, de 23 anos e membro atuante da Igreja do Nazareno, em Mesquita, na Baixada Fluminense.

“No limite”
Nos bailes em que se apresenta, seja em Mato Grosso, São Paulo ou no Rio, Kelly Krenty tem a mesma preocupação. “Tem menina que diz para os pais que vai para uma festa na igreja e lá acaba tendo um comportamento inadequado. Por isso, durante os shows, há um momento dedicado à Palavra de Deus, para que os jovens possam refletir sobre o seu comportamento e entender que só Jesus é o caminho. Muitas conversões acontecem”, garante a moça. Kelly canta funk gospel há um ano e vem arrastando multidões para seus shows, sem se afastar, porém, de sua igreja, o Projeto Vida Nova de Vilar dos Teles, também na Baixada – aliás, é justamente nas periferias que o movimento tem mais força. Em janeiro deste ano, Kelly ficou nacionalmente conhecida após ter se apresentado no programa de TV Gugu Liberato, do SBT.

Outra artista que vem fazendo muito sucesso atualmente é a cantora Perlla, de apenas 18 anos, que lançou ano passado seu primeiro CD – Quero ser livre –, cujas faixas trazem músicas de letra secular e também o sucesso Tremendo vacilão, que estourou no Rio de Janeiro e em outros estados do Brasil.

Como os colegas de palco, ela garante que não há nenhum problema em ser cristã, cantar músicas seculares e fazer shows: “Subo no palco para realizar o meu trabalho, mas as pessoas percebem que há um brilho diferente, que a minha música transmite amor. Eu não me preocupo com o que está acontecendo. O que me preocupa mesmo é não envergonhar o nome de Deus”, diz, convicta.

Perlla conta que sua vida mudou em apenas poucos meses e atribui seu sucesso à bênção de Deus: “Eu sei que minha carreira só está dando certo porque o que faço vem do Senhor. Foi muita oração e jejum para buscar a direção de Deus e é ele quem está conduzindo a minha vida, minha carreira, meu sucesso”, afirma a artista, ligada à Assembléia de Deus da Penha, no Rio. Seu pastor, Vicente Sabbatino, diz que não cabe a ele julgar as atitudes das ovelhas. “Mas não consigo compreender como uma pessoa crente, lavada e remida pelo Senhor, possa emprestar seu talento para cantar músicas que não louvem a Deus.”

Ao contrário do pastor Vicente, Ezequiel Teixeira, dirigente do Projeto Vida Nova, considera o funk gospel uma boa estratégia evangelística. Para o pastor, a Igreja tem que estar contextualizada e falar a linguagem dos jovens.Mesmo assim, faz um alerta: “É importante que os jovens cantores estejam muito bem preparados espiritualmente e tenham um firme compromisso com Deus, porque eles vão no limite do profano”.

Igreja antenada

Apesar da polêmica que desperta, o funk gospel já chamou a atenção do meio acadêmico. A antropóloga Márcia Leitão Pinheiro, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), passou mais de dois anos freqüentando bailes gospel para escrever uma tese de mestrado. “As igrejas tentam falar uma linguagem antenada com a visão de mundo da garotada”, afirma. “Na condição de religião que mais cresce no país, os protestantes perceberam que têm de se manter em sintonia com uma fatia expressiva de seu rebanho, os jovens e adolescentes”, avalia a pesquisadora.

Quem melhor expressa a opinião dos funkeiros de Cristo sobre tudo isso é Adriano Gospel Funk, que na letra de O peso que abençoa, saiu-se com estes versos: “Gospel funk/Som de Deus pra abençoar/Bate palma quem gostou/Quem não gostou, comece a orar”.

Quadro:

O primeiro evento aconteceu em 1998, no Irajá, bairro da Zona Norte do Rio, com a presença de apenas quatro pessoas. Era uma experiência pioneira, a que não faltaram críticas – tanto, que os primeiros freqüentadores tiveram que ser pescados nas ruas, já que muitos crentes torciam o nariz. Hoje, passados quase dez anos, o Gospel Night reúne nada menos que 5 mil jovens em festas que começam às 22 horas e terminam às cinco da matina. Como em qualquer evento do gênero, a galera curte, dança, brinca e paquera. Mas engana-se quem pensa que os jovens que vão ali procuram sexo, drogas e rock’n’roll. O objetivo das noitadas é outro. “Queremos é evangelizar”, diz Cláudia Mattos, uma das organizadoras do espaço. “Criamos um ambiente para que a nossa mocidade fique no meio do povo de Deus e que também seja atraente àqueles que não iriam ao culto em uma igreja”, descreve. É uma balada de Cristo, sem dúvida.

Todas as músicas tocadas, sejam nacionais ou internacionais, são do gênero gospel. Quando a moçada já está cansada de sacudir o esqueleto, por volta de uma hora da manhã, rola a Palavra de Deus. Um pastor convidado faz uma pregação bem contextualizada ao cotidiano dos freqüentadores. “Isso os leva a refletir sobre o próprio comportamento e a aceitar Jesus como salvador de suas vidas”, explica Cláudia, que faz parte da equipe Gospel Night, formada pelos DJs Marcelo Araújo (líder do grupo) e Kiko , o produtor Júnior e ainda Denise e Rodrigo, que respondem pelos contatos comerciais.

As festas são realizadas a cada dois meses, em diversos locais do Rio, da Zona Norte à Zona Sul. Algumas vezes, a coisa é tão bombada que muita gente fica do lado de fora, como aconteceu certa vez no Scalla, badalada casa de espetáculos no Leblon com capacidade para 2,5 mil pessoas. E para quem pensa que o trabalho de evangelização se limita às festas, Cláudia esclarece que todos os jovens que crêem no Evangelho durante os eventos são cadastrados e passam a ser acompanhados e discipulados por pastores das diversas igrejas que apóiam o ministério, que é interdenominacional. Ninguém pense que a coisa corre solta. No Gospel Night, não se vendem bebidas alcoólicas e qualquer tipo de droga é veementemente rechaçado. As danças, coreografias e o comportamento dos jovens são observados atentamente e, quando há necessidade, os mais ousados são repreendidos de forma discreta e amorosa pelos pastores e diáconos intercessores que ficam no meio do salão. “Há muita liberdade, mas nenhuma libertinagem”, garante Cláudia.

Decisão na pista

Esse tipo de ambiente tem sido capaz de chamar a atenção de muita gente para Jesus. É o caso de Thiago Araújo, de 19 anos, morador em Duque de Caxias, Baixada Fluminense. Ele foi criado na igreja, mas aos 13 anos, segundo suas próprias palavras, “começou a se rebelar”. “Eu queria ir a bailes, principalmente de funk, ritmo de que gosto muito. Quando um amigo me convidou para a festa Gospel Night, pensei que fosse uma coisa chata. Mesmo assim, fui”, lembra. Quando viu a galera dançando, cantando e até paquerando – mas de forma muito diferente da que estava acostumado –, ficou surpreso. Nada de brigas ou confusões, rotina tristemente comum nos bailes funk do Rio. “Até um cara que pisou no meu pé pediu desculpas. Fiquei impactado”, reconhece.

Mais tarde, quando ouviu a mensagem, Thiago decidiu, ali mesmo, dar novo rumo à vida. “Voltei para a igreja e me batizei”, conta. Hoje, o rapaz faz parte do ministério de dança da Segunda Igreja Batista em Pilares, subúrbio carioca. Dos bailes mundanos, nenhuma saudade. “Vou a todos os eventos do Gospel Night e sempre levo amigos que acabam se convertendo. Dou glória a Deus por existirem essas festas”, elogia. “Nós, jovens, precisamos de eventos onde possamos nos divertir, conhecer pessoas e arranjar namorada. E que bom que podemos fazer tudo isso entre irmãos e ainda louvando a Deus”, conclui Thiago.

Fonte: Revista Eclésia edição 118

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