Grupo evangélico "Patrulha da Paz" usam roupas e veículos parecidos com policias para abordar viciados.

Caio Barbieri e Mirelle Pinheiro
Metrópoles

Nas primeiras horas da noite inúmeras viaturas trafegam em comboio para realizar operações no Sol Nascente, uma das maiores favelas do Brasil. Por ser uma das regiões mais violentas do DF, a cena lembra fortemente a atuação da Polícia Militar (PMDF), mas na verdade integra um projeto polêmico batizado de “Patrulha da Paz”.

A organização evangélica missionária busca por dependentes químicos pelas ruas da cidade. Os alvos, que geralmente são pessoas em situação de vulnerabilidade social, são levados para clínicas de reabilitação ligadas às igrejas. As informações foram divulgadas pelo The Intercept Brasil e confirmadas pelo Metrópoles.

Com todo o aparato capaz de confundir a população, como rádios de comunicação e rotolights nos “camburões”, o grupo peregrina por guetos e invasões com o objetivo de oferecer o serviço social e, consequentemente, evangelizar os pacientes.

O projeto mira pessoas menos esclarecidas, que sofrem na pele a rotina da violência urbana e até mesmo os traumas de transitar em áreas carimbadas pela alta criminalidade.

O uso de fardas semelhantes às das forças de Segurança Pública, porém não iguais às oficiais, tende a confundir e, naturalmente, desarmar quem recebe as investidas para o tratamento contra as drogas.

Ao Metrópoles, o presidente do Conselho de Pastores do Distrito Federal (Copev-DF), Josimar Francisco da Silva, ligado à igreja Assembleia de Deus, afirmou desconhecer a patrulha, mas disse discordar da metodologia, que ele comparou a um tipo de “milícia”. Por esse motivo, ele decidiu abrir uma apuração para avaliar o grupo religioso.

“De antemão, o nosso posicionamento é contrário a essa técnica de abordagem. Temos um trabalho muito sério e acompanhado por muitas clínicas de reabilitação com os métodos reconhecidos na cidade. Todas as instituições que auxiliam na recuperação de viciados químicos com atuação relevante têm o apoio do nosso conselho e, cabe ressaltar, todas elas são interligadas. A gente respeita muito o trabalho social tocado por nossas igrejas, mas essas clínicas ‘piratas’ têm de responder por si. Inclusive, o Conselho de Pastores não compactua com essa metodologia. Vamos apurar se essas clínicas são ligadas a algum de nossos religiosos e recomendar que o trabalho seja feito estritamente dentro da lei”, disse.

Josimar explica que o trabalho oficial realizado pelas igrejas evangélicas não coage nem intimida o paciente a ser internado. Segundo ele, a abordagem habitual permite, inclusive, que o dependente químico deixe o local caso algo o desagrade na proposta de abandonar o vício.

“Isso dá um medo, Deus me livre, mas lembra algo muito paralelo a milícia. Acho que isso deve ser um grupo isolado. Essas pessoas independentes têm de responder criminalmente por elas próprias. Se estiverem agindo fora da lei, terão de responder por isso”, sentenciou.

Fora do campo religioso, o assunto também ecoou de forma negativa dentro dos poderes públicos. A Comissão de Direitos Humanos da Câmara Legislativa encaminhou um pedido para que o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT), a Polícia Civil do Distrito Federal (PCDF) e entidades de defesa ligadas ao tema se manifestem sobre a ação da Patrulha da Paz.

“Imagine só, você simulando que você é agente do Estado. Minimamente, isso é abusivo. Mesmo que não pratiquem violência física, não deixam de praticar uma agressão psicológica e mesmo simbólica. Eles simulam viaturas, o enfardamento, para incentivar o uso dos núcleos de reabilitação tocados pelas próprias igrejas. Eles precisam prestar esclarecimentos aos órgãos oficiais”, disse o deputado Fábio Felix (PSol), presidente do grupo temático da Casa.

Assistente social de formação e originalmente servidor público do sistema socioeducativo, o parlamentar afirmou que o uso de vestimentas e veículos caracterizados como oficiais e de caráter policial, nesse contexto, parece ter o objetivo de confundir a população, especialmente as pessoas mais vulneráveis.

Segundo Felix, a má-fé fica clara quando a patrulha é flagrada usando um poder de coerção próprio do Estado que não é atribuído a uma organização da sociedade civil. “Vemos indicativos de que ocorreriam violações de direitos humanos na atividade desse grupo e a possibilidade de que ocorreriam atividades ilegais”, adiantou.

O uso de uniforme ou distintivo de função pública que não exerce pode configurar crime e, para essa infração, a pena chega a cinco anos de reclusão.

“Temos só um comandante: Deus”

Em entrevista ao Metrópoles, o pastor Gilmar Bezerra, idealizador e fundador da Patrulha da Paz, afirmou que o método usado é uma forma de chamar a atenção de pessoas vulneráveis para a seriedade da abordagem. “Quando nos apresentamos, já fica demonstrado que temos uma organização, que temos responsabilidade com esse trabalho”, disse.

De fato, quem não conhece e observa as “operações”, as quais envolvem até quatro “viaturas” paramentadas, veículos da marca Blazer devidamente adesivados com o nome do projeto e ainda com as rotolights acesas, chega a concluir se tratar de uma ação policial enérgica.

Entretanto, o pastor explica que, na verdade, é um pelotão para levar “a palavra de Deus” a quem precisa encontrar um caminho. “Nós temos apenas um comandante: é Deus”, frisa.

Atualmente com a iniciativa conta com o apoio de 40 voluntários. O fundador da Patrulha da Paz garante não estar em conflito com a lei por recorrer à aparência das forças de segurança para realizar um trabalho com objetivo classificado como nobre.

As inegáveis semelhanças aos “camburões” e aos uniformes dos grupos de operações táticas da Polícia Militar nem de longe, afirma Gilmar, têm a intenção de coagir as pessoas menos esclarecidas.

“Nunca fizemos o uso de comparação com a polícia. No nosso carro está escrito o nome do nosso projeto. Todos os moradores de rua já conhecem os paramentos das forças policiais, que são diferentes dos nossos. Nosso nome diz: somos da paz”, garante.

“Quer saber? Nunca fomos confundidos com policiais e isso é muito simples: na hora em que nos apresentamos, a primeira coisa que falamos é boa noite. Quando há o trabalho de repreensão, como é feito pela polícia, não há de se falar em abordagem gentil. Nosso trabalho é diferente, é social”, afirma o pastor.

Aos 45 anos, o brasiliense diz desenvolver atividades na região periférica de Ceilândia desde 2011, mas apenas no ano seguinte surgiu a ideia de registrar o trabalho e fazê-lo ser oficialmente reconhecido.

“Fizemos o nosso registro apenas em 2014, quando pensamos em estabelecer o uso de uniformes e de carros devidamente identificados. Essa ideia surgiu de mim mesmo e de outros quatro irmãos de igreja”, explicou.

Fundador e seguidor do Ministério A Promessa de Deus, igreja sediada no mesmo local da Patrulha da Paz – o condomínio Privê, em Ceilândia –, o pastor desmente a internação clínica de dependentes químicos como desculpa para a evangelização. Também reafirma que não há coação e que a maior preocupação é com a saúde e acolhimento das pessoas em situação de rua.

“O nosso trabalho nas ruas é o de levar a palavra de Deus, mas sempre evangelizando. Ninguém é internado de forma compulsória, nem temos poder para isso. O que fazemos e mostrar que existe um outro mundo para as pessoas em situação de rua. Se eles aceitam, a gente faz uma triagem, custeia exames e direciona para uma instituição com o perfil adequado”.

Segundo Gilmar Bezerra, atualmente, a Patrulha da Paz encaminha os abordados para até seis clínicas diferentes, algumas até na região do Entorno do Distrito Federal.

“Um dos nossos operários morava na rua, dentro de um buraco. Era usuário de entorpecentes e hoje é um de nossos evangelistas da Casa de Deus. Um outro, chamado Roger, passou por tratamento de desintoxicação e está conosco também. São histórias que foram mudadas graças a esse trabalho social”, conta.

Mas nem todas as histórias têm final feliz: “Há pacientes que ficam dois meses e não voltam a usar drogas. Mas há também aqueles que concluem o tratamento e acabam voltando para as ruas, pela falta de estabilidade familiar. Essa questão influencia muito e acaba levando eles de volta ao vício”. Ele calcula que, diariamente, uma pessoa é acolhida e entregue ao tratamento contra os vícios.

PM não vê problema nas roupas parecidas com fardas

Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF) declarou ao Metrópoles que não vê problemas no fato de a Patrulha da Paz adotar aparatos que se assemelham aos dos oficiais para realizar o trabalho social.

“Assim como outros que também praticam ações em benefício da população, o grupo faz ação social em Ceilândia abordando pessoas nas ruas, em situação de vulnerabilidade, para a entrega de cobertores e mantimentos diversos. [Eles] usam uniformes e veículos caracterizados, os quais não se confundem com as cores, características, nem mesmo com os uniformes e as viaturas da PMDF”, informa.

Ainda de acordo com a corporação, nunca houve registros de denúncias violentas ou mesmo coação por parte do grupo religioso. “A PMDF informa que qualquer pessoa que se sinta coagida poderá ligar para o número 190”, orienta.

Fonte: Metrópoles

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