Em entrevista ao “Spiegel”, o padre jesuíta Klaus Mertes fala sobre a resposta da igreja ao escândalo sexual e sua revolta com o Vaticano.

O padre jesuíta Klaus Mertes, diretor do Colégio Canisius de Berlim, gerou ondas de choque pela Igreja Católica Alemã em janeiro de 2010 quando expôs o abuso sexual sistemático na escola de elite.

Confira entrevista abaixo:

Pergunta: Padre Mertes, um ano e meio após o senhor revelar o abuso sexual de alunos da escola em Berlim, os bispos católicos iniciaram um diálogo com os frequentadores da igreja na cidade de Mannheim, no Leste da Alemanha. Essa iniciativa não está muito atrasada?

Mertes: O copo sempre está meio cheio ou meio vazio. Acho bom que o diálogo tenha começado.

Pergunta: Qual é o sentido de tais conversas quando pessoas como o arcebispo de Colônia, Joachim Meisner, figura conservadora importante na Igreja Alemã, nem aparecem?

Mertes: Essa pergunta parece derrotista para mim. Seria maravilhoso se o papa dissesse algumas palavras de encorajamento sobre o processo de diálogo em um futuro próximo.

Pergunta: A Igreja católica aprendeu alguma coisa com todo o escândalo de abuso?

Mertes: Só o que eu posso dizer é o que eu aprendi. Eu reagiria muito mais rapidamente e ofensivamente aos rumores de abuso no futuro.

Pergunta: O senhor teve as primeiras pistas anos atrás, mas não as revelou ao público na época. Por que o senhor demorou tanto a reagir?

Mertes: Eram rumores. Quando eu perguntava aos ex-alunos ou professores a respeito, me deparava com silêncio ou agressão. Eu tive que lidar com os rumores sobre um padre na minha ordem em 1996. Depois daquilo, outro padre, que hoje está morto, gritou comigo de uma forma que nunca ninguém havia gritado. “Sei exatamente o que você quer”, disse ele. “Você só quer atormentar seus irmãos”.

Pergunta: Ficou mais fácil para os membros da Igreja conversarem sobre o abuso?

Mertes: Ficou mais fácil para alguns, mas infelizmente não para muitos. Nós fizemos pouco da violência sexual e a mantivemos em silêncio por tempo demais. Foi pelas vítimas que descobri, no início de 2010, que os perpetradores planejavam seus crimes sistematicamente. O silêncio dentro do grupo e na escola funciona como uma espiral: há silêncio sobre o abuso e silêncio sobre o silêncio. Isso leva a uma estrutura de seita no relacionamento entre perpetradores e vítimas, cujos sintomas são desconsiderados ou minimizados no ambiente social.

Pergunta: Por quê?

Mertes: Os jovens mantêm silêncio por medo, e porque não querem perder seu relacionamento próximo com os perpetradores e a sensação de pertencer ao grupo. Há uma espécie de ambivalência insana nos casos de abuso. Há um desejo enorme de não ser rejeitado e também há uma sensação de ser especial como resultado de fazer parte do grupo –apesar das incríveis violações.

Pergunta: O senhor explica em termos tão casuais.

Mertes: Em 2006, quando recebi o primeiro documento que descrevia o abuso cometido por outro padre, fiquei chocado. Passei noites sem dormir e era constantemente perseguido por imagens que invadiam os meus sonhos: imagens de adolescentes forçados a ficarem nus, que apanhavam por duas horas com vassouras, cintos e chicotes.

Pergunta: Por que, então, levou anos para tomar uma atitude?

Mertes: Houve consequências neste caso em particular. Informamos imediatamente o perpetrador à polícia. Mas não publiquei o caso porque me pediram que fosse discreto. Eu me acalmei dizendo que era apenas um caso isolado. Mas hoje sei que não.

Pergunta: Nesses anos, a Igreja Católica não deu a impressão de que desejava resolver os casos de abuso.

Mertes: Não. E eu sempre tive o cuidado em dizer que poderia resolver (esses casos), porque passei pela luta interna necessária para se romper o silêncio. Alcancei este ponto em janeiro de 2010, após ter conversas com três vítimas. Um dos momentos mais emocionantes aconteceu poucos meses mais tarde, em uma reunião com os ex-alunos. Havia cerca de 40 homens adultos, alguns deles com suas mulheres ou parceiros, sentados na minha frente me contando o que acontecera a eles. Foi incrivelmente doloroso de ouvir. Fiquei com um bolo na garganta e os olhos cheios de lágrimas. Em um caso, o perpetrador tinha hipocritamente associado seu abuso a uma bênção, dizendo à vítima: “Você é o filho amado de Deus”. Isso me abalou até a alma.

Pergunta: Em abril de 2010, o cardeal italiano Angelo Sodano referiu-se aos eventos na Alemanha como a “fofoca do momento”.

Mertes: Isso é inacreditável. Fiquei chocado que alguém pudesse dizer isso, e tenho vergonha dessas palavras até hoje.

Pergunta: O senhor reclamou?

Mertes: Não. Tampouco tinha força para lidar com a questão. Fui confortado pelo fato de o cardeal de Viena, Christoph Schönborn, tê-lo contradito publicamente. Eu fiquei extremamente agradecido por isso.

Pergunta: Tanto os jesuítas quanto a conferência de bispos ofereceram às vítimas de abuso até 5.000 euros (em torno de R$ 12.000) de compensação. Não é uma oferta miserável, dada a natureza traumática de algumas das experiências das vítimas?

Mertes: A ideia é transmitir a mensagem que não estamos apenas emitindo um pedido de desculpas. Os jesuítas deliberadamente optaram por um pagamento único porque, como representantes dos perpetradores, não podemos fazer o papel de juízes e começar a medir o sofrimento. Muitas vítimas acham a quantia inapropriada. Eu tenho que lidar com isso.

Pergunta: Por que o senhor não ofereceu mais?

Mertes: Usamos como base a soma básica estabelecida pela Conferência de Bispos da Áustria. Em alguns casos, estamos pagando somas adicionais para apoio ou custos de terapia.

Pergunta: Quantos ex-alunos aceitaram a oferta?

Mertes: De cerca de 200 vítimas, 54 se inscreveram até hoje e 30 já receberam os pagamentos. O processo ainda está em curso.

Pergunta: Os perpetradores foram punidos ou estão mortos, e as vítimas estão sendo compensadas. Isso coloca um fim ao escândalo?

Mertes: Demos alguns passos, mas ainda há um longo caminho. Um bispo auxiliar recentemente deu um sermão em uma instalação de uma igreja no qual, referindo-se à imprensa alemã, ele lamentou: “Fizemos tudo, até demos compensação, e ainda assim estão insatisfeitos”. Esse tipo de reclamação está aumentando e prejudica os ouvintes. É inadequada e perigosa. Afinal, ainda não respondemos à questão de como temos que mudar para podermos ouvir melhor quando as vítimas de abuso quiserem falar. Será que temos a capacidade de ouvir um jovem que sofreu abuso?

Pergunta: Talvez essa mudez por parte das vítimas também tenha a ver com o tratamento que a Igreja dá ao assunto da sexualidade.

Mertes: Há discordância sobre a questão se de fato há mudez no assunto da sexualidade. Acredito que este silêncio pode ser superado se concordarmos que há uma mudez. Essa postura de não querer falar sobre isso tem que mudar.

Pergunta: Por que é tão difícil para a Igreja?

Mertes: Quando alguém quer falar sobre sexualidade, os líderes começam a temer perder o controle do debate. No final, é medo de perder o poder. Fazemos perguntas. A resposta é um silêncio enorme.

Pergunta: Quais são as perguntas?

Mertes: O que, por exemplo, digo a uma criança que é seduzida ou forçada à masturbação e agora acha que é uma pecadora mortal? Tais problemas acontecem na prática, e deveria ser possível falar sobre eles.

“Estou revoltado porque vejo como as pessoas do alto olham em silêncio”

Pergunta: Com tais demandas, o senhor é considerado um tipo de traidor.

Mertes: Não sou traidor. Chamo atenção para algo que aprendi como resultado dos casos de abuso. Temos que olhar para nós mesmos de forma diferente como igreja. Temos que descobrir o que leva ao silêncio. Essa é a questão central das vítimas.

Pergunta: O senhor é repreendido por parte de outros católicos?

Mertes: Sim, com mensagens de ódio na forma de e-mails e cartas. Todos se resumem à acusação de deslealdade e de dividir a Igreja.

Pergunta: Mesmo entre os membros da igreja, o senhor é visto como aquele que levou a Igreja a esta confusão.

Mertes: Não todos. Georg Sterzinsky, cardeal de Berlim que morreu recentemente, me apoiou desde o início. Mas houve outras reações. Durante a viagem ao Vaticano no ano passado, um dos meus professores disse ao cardeal que vinha do Colégio Canisius em Berlim. O cardeal ficou muito irritado e disse que este Mertes deveria ser expulso da Igreja. Mas eu posso viver com isso. O que me preocupa mais é que partes da hierarquia se curvam a esses falastrões, porque têm medo de também serem repreendidos. Há oportunismo na hierarquia em relação a uma minoria que se acha dona da verdade.

Pergunta: O senhor acha difícil permanecer leal à Igreja?

Mertes: Sou agradecido à Igreja por minha fé, pelas preces, pela liturgia e pelo Evangelho. Os padrões pelos quais tento viver vêm do Evangelho. Não me permito ser privado disso por uma facção de pessoas que fala mal de mim e alega estar fazendo um favor à Igreja. A Igreja Católica é muito maior que um grupo de católicos provocadores.

Pergunta: O que o senhor chama de católicos provocadores?

Mertes: Eles veem toda crítica como deslealdade e denunciam as pessoas que têm questões expressando suspeitas sombrias. Eles pensam em termos de lados. Minha preocupação é que eles encontrem um ouvido na hierarquia. É especialmente duro que Roma esteja acatando as denúncias. Aqueles que submetem tais denúncias recebem a proteção do anonimato. Eles podem agir no escuro. Recebem importância do alto.

Pergunta: O papa é tolerante demais com esse movimento?

Mertes: Estamos falando da hierarquia em Roma. Não quero julgar o papel que o papa tem nisso tudo.

Pergunta: Há aparentemente um documento que veio do Vaticano no qual políticos católicos proeminentes, como o ex-ministro da saúde Heiner Geissler e a atual ministra da educação, Annette Schavan, são fortemente criticados e pondera-se uma possível divisão, porque há um movimento tão forte pela reforma na Alemanha.

Mertes: Os que atacam Schavan e outros católicos importantes têm um problema espiritual e intelectual.

Pergunta: Esse tipo de documento só pode rodar no Vaticano com o consentimento do papa.

Mertes: Alguns no Vaticano já falaram contra e se distanciaram disso.

Pergunta: O que o senhor espera da visita do papa a Berlim em setembro?

Mertes: Não muito. Gostaria de ver um gesto ecumênico. Gostaria de ver o papa se estender para a Igreja Católica na Alemanha.

Pergunta: O senhor não acha que isso vai acontecer, realmente?

Mertes: Fico revoltado porque vejo como os que estão no alto olham em silêncio e como algumas pessoas na Igreja estão atacando os outros cada vez mais agressivamente acusando-os de dividir a Igreja, especialmente quando estão envolvidos em associações, conselhos ou até no Comitê Central de Católicos Alemães. Isso poderia ter sido resolvido com um decreto e colocando um fim ao silêncio.

Pergunta: O que mais o papa poderia fazer para ajudar os católicos alemães?

Mertes: Oferecer respostas pastorais muito específicas. Vejo grande aflição entre muitos que se divorciam e voltam a se casar, ou entre casais de diferentes religiões, que não têm permissão de aceitar o Corpo de Cristo (a comunhão) juntos em nossa Igreja. Mudar isso seria um primeiro passo muito grande e teria muitas consequências. Também vejo grande aflição entre muitos homossexuais na Igreja católica, apesar de haver uma proibição clara de discriminação de homossexuais expressa na doutrina católica.

Pergunta: Cerca de 2,6 milhões de católicos deixaram a Igreja desde 1990, 180.000 só no ano passado. Os líderes da Igreja não veem mais isso?

Mertes: Veem. Mas há grupos que até celebram essa debandada, acham que é bom, porque faz encolher a Igreja de forma saudável, de forma que apenas verdadeiros católicos ficam. Perder o contato com a realidade também se relaciona com redefinir a realidade. Observei uma grande exaustão e um senso profundo de resignação em muitos católicos, porque quando eles tentam falar, se confrontam com um muro de silêncio em torno de um mundo paralelo. E então, é claro, também há um exercício brutal de poder.

Pergunta: Por exemplo?

Mertes: Um padre falou sobre estupro em um sermão recente para uma congregação em uma diocese alemã. Ele alegou que as mulheres também seduzem os homens. Quando algumas pessoas saíram em protesto, o pastor disse: “Podem ir. O Diabo está esperando por vocês aí fora!” Ele teve que se desculpar mais tarde, mas esse tipo de coisa afasta as pessoas.

Pergunta: No próximo ano escolar, o senhor estará se mudando do Colégio Canisius em Berlim para a escola jesuíta de St. Blasien na Floresta Negra no Sul da Alemanha. O senhor está se retirando do debate?

Mertes: Não. Você não tem que morar em Berlim para ter influência. E estou ansioso para ir para St. Blasien.

Der Spiegel: Senhor Mertes, obrigado pela entrevista.

[b]Fonte: Der Spiegel[/b]

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