Ministério Público Federal de São Paulo pede à Justiça a retirada de crucifixos e bíblias de repartições públicas federais. O argumento é o de que os objetos ferem a liberdade de crença e não respeitam o princípio do Estado laico; medida divide igrejas cristãs.
Reprovada pela Igreja Católica, a ação do Ministério Público Federal de São Paulo pedindo a retirada de símbolos religiosos de repartições públicas federais no Estado encontra defensores entre evangélicos e igrejas cristãs históricas.
No final de julho, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão em São Paulo ajuizou ação civil pública pedindo à Justiça que obrigue a União a retirar símbolos religiosos, como crucifixos e bíblias, de áreas públicas de órgãos federais. O argumento é o de que os objetos ofendem a liberdade de crença e sua permanência fere o princípio do Estado laico.
A decisão caberá à juíza Maria Lúcia Lencastre, da 3ª Vara Federal, que irá ouvir a União antes de tomar uma decisão.
A ação da Procuradoria teve origem com uma representação do grupo Brasil para Todos, que defende a laicidade do Estado e a impessoalidade da administração pública.
O arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, viu a decisão com estranheza. “Ter um Estado laico não significa passar por cima da cultura de um povo”, afirma. Segundo ele, a existência de crucifixos e bíblias faz parte da tradição cultural brasileira. “Uma posição como essa não vem defender o interesse da maioria dos cidadãos”, afirmou.
Entre grupos religiosos, a retirada dos símbolos, apesar de considerada polêmica, encontra defensores.
Coordenador da bancada evangélica no Congresso, o deputado pastor Pedro Ribeiro (PMDB-CE) diz que a bancada está de acordo com a iniciativa. “A retirada desses símbolos a princípio choca muitos evangélicos. Mas a bíblia não é o instrumento religioso de todos.”
O secretário-geral do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil, Luiz Alberto Barbosa, diz que não há consenso entre as chamadas igrejas cristãs históricas sobre a defesa ou não da permanência de símbolos religiosos em locais públicos governamentais.
Ele ressalta que, quase na totalidade, as figuras são referentes apenas à Igreja Católica Romana. Como exemplo, ele cita o crucifixo em que há o corpo de Cristo como símbolo católico, enquanto igrejas cristãs históricas utilizariam a cruz vazia.
“Nós entendemos que, do ponto de vista legal, o Ministério Público está querendo implantar apenas o que a Constituição consagra, que é a separação igreja e Estado.”
Coordenadora do grupo Católicas pelo Direito de Decidir, Maria José Rosado apoia a ação. “Embora haja uma predominância da cultura católica e do poder institucional da Igreja Católica no Brasil, cada dia mais a sociedade é plural.”
Segundo ela, na medida em que se mantêm símbolos religiosos em lugares públicos de representação do Estado, há privilégio de uma determinada religião. “É um respeito a um país que se torna cada dia mais plural em termos religiosos.”
O presidente da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, Walter Altmann, não concorda com uma decisão de “cima para baixo”. Ele é a favor de audiências públicas para discussão do tema. “A retirada [de cruzes e bíblias] fere o sentimento daquele para quem o símbolo é relevante”, diz ele.
França detém vanguarda da laicidade
A discussão sobre os símbolos religiosos em espaços públicos chega ao Brasil com mais de um século de atraso.
A França, que não por acaso inventou o conceito de laicidade, representa a vanguarda da iconoclastia. Lá os crucifixos foram retirados dos tribunais e dos colégios nos anos 1880. Na mesma década, o ensino religioso foi suprimido das escolas públicas, e magistrados e militares foram proibidos por lei de participar em caráter oficial de festas católicas.
A apoteose do movimento, porém, veio em 1905, com a edição da Lei da Laicidade, que rompe unilateralmente a concordata entre Paris e o Vaticano, confisca bens da igreja e suspende todas as subvenções que eram concedidas a ministros e cultos. Esta última medida poupou aos cofres públicos 35 milhões de francos anuais.
O papa Pio 10º (1903-1914), é claro, não gostou e, em 1906, baixa a encíclica “Vehementer nos”, na qual denuncia o diploma francês e qualifica a separação entre Estado e igreja como “tese absolutamente falsa”, “erro perniciosíssimo” e “em alto grau injurioso para com Deus”.
Mais recentemente, os franceses voltaram à carga antirreligiosa, mas o alvo deixou de ser a Igreja Católica e passou a ser o islamismo. Em 2004, o Parlamento emendou a Lei da Laicidade para proibir alunos de escolas públicas de usar ícones religiosos ostensivos como os “hujub” (véus muçulmanos). O presidente Nicolas Sarkozy pede agora a proscrição da burca, o traje inteiramente fechado usado por algumas poucas mulheres islâmicas.
Nos EUA, embora a laicidade também esteja na Constituição, o anticlericalismo nunca esteve na ordem do dia. Pelo contrário, os EUA são, de longe, a nação mais religiosa do mundo desenvolvido.
Instada a manifestar-se sobre símbolos religiosos em tribunais, uma Suprema Corte, dividida, resolveu sair pela tangente. Em 2005, tomou uma decisão ambígua, na qual permitiu a um tribunal manter um monumento com os Dez Mandamentos, mas proibiu duas outras cortes de fazer o mesmo. A diferença apontada pelos juízes era o contexto. No primeiro tribunal o monumento estava ao lado de outras obras. Nos demais, os Dez Mandamentos apareciam isoladamente, no que foi interpretado como uma violação ao princípio da laicidade do Estado.
Fonte: Folha de São Paulo