Nos anos 70 e 80, uma nova abordagem da fé cristã começou a ganhar corpo na esteira da polarização do mundo entre capitalismo e comunismo, a Teologia da Libertação, que apesar da militância católica em sua disseminação, abordagem marxista da fé cristã tem fortes raízes no protestantismo.
A Teologia da Libertação, interpretação do Evangelho pelo viés marxista, floresceu no seio de setores progressistas da Igreja Católica, defendida por teólogos do porte de Gustavo Gutiérrez, José Coblin e Frei Betto, além de Leonardo Boff – este, aliás, tornou-se uma espécie de personificação do movimento no Brasil. Combatido com vigor pelo Vaticano, o frei Boff foi exortado a abandonar suas teses pelo então cardeal Joseph Ratzinger, homem forte da Santa Sé e que, em 2005, acabou chegando ao papado. Boff acabou excomungado, e suas idéias sofreram esvaziamento nas duas últimas décadas.
Devido à sua ligação com pensadores católicos, a Teologia da Libertação acabou sendo associada à Igreja Romana. No entanto, um detalhe é pouco sabido e quase sempre ocultado: esta vertente da fé cristã, de cunho fortemente social, possui uma raiz fortemente evangélica. Movimentos populares e até mesmo revolucionários de contestação à pobreza, miséria e desigualdade social foram atuantes durante toda a história do protestantismo. Ainda no século 15, antes mesmo da Reforma luterana, seguidores radicais do pré-reformador João Huss, os chamados taboritas, apregoavam a luta armada para o estabelecimento do Reino de Deus na terra, onde reinaria a justiça e paz.
Já no século 16, parcela significativa dos anabatistas alemães era unânime em condenar a propriedade privada. Aquele foi um tempo de contestação, ainda inspirado pelo fim da Idade Média e a derrocada do modelo feudal de concentração de riquezas. A classe dos trabalhadores rurais assalariados, em expansão, reivindicava melhores condições de vida – e, na vanguarda do movimento, havia forte inspiração nas idéias de justiça social e igualdade presentes tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Embora, paradoxalmente, tenha sido condenado por Martinho Lutero, o levante dos camponeses germânicos foi fruto direto de suas teses, que minaram a autoridade do maior poder político de sua época, a Igreja.
Um século depois, foi a vez da Inglaterra ser sacudida pela chamada Revolução Puritana. Liderada por Oliver Cromwell, o movimento mudou o perfil político e social da Grã-Bretanha. Os puritanos depuseram o rei Carlos I, que acabou condenado à morte, aboliu a monarquia e instituiu um regime republicano. Inspirada na reforma calvinista que se espalhara por todo o continente europeu, a Revolução Puritana estabeleceu, mesmo que por pouco tempo, uma Igreja radicalmente evangélica, sob os moldes de Genebra. Entre os vários grupos que compunham o exército puritano, os chamados cavadores eram partidários de um verdadeiro comunismo cristão, condenando qualquer tipo de propriedade privada.
Já no fim do século 19, os pastores reformados suíços Leonhard Ragaz e Hermann Kunter organizaram o chamado movimento socialista cristão, que repercutiu por toda Europa e Estados Unidos. Todo este engajamento de lideres evangélicos em prol da justiça social se fez presente no desenrolar do século 20 – justamente, a época que assistiu o surgimento, apogeu e queda do comunismo como política de Estado. Posições democráticas e socialistas foram defendidas por teólogos de renome como Karl Barth e Paul Tillich.
“Ordem desigual”
Se floresceu numa Europa marcada pela busca por mudanças radicais, na América Latina a semente do cristianismo social não encontrou terreno propício para germinar. Se, por um lado, a Igreja Católica, historicamente, sempre tomou o partido dos poderosos, o protestantismo, por sua vez, adquiriu contornos mais místicos que políticos. Relativamente nova – a chegada dos primeiros missionários evangélicos só ocorreu a partir de meados do século 19 – e minoritária, a Igreja Protestante preocupou-se prioritariamente com a salvação individual. “O protestantismo acalenta e agasalha muito bem o conceito abstrato de salvação – o de que o mais importante é a alma”, frisa Ronaldo Cavalcante, doutor em teologia pela Universidade Pontifícia de Salamanca, Espanha, e docente da faculdade de filosofia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo. Ele lembra que, durante boa parte da primeira metade do século 20, a atuação social dos evangélicos latino-americanos ficou restrita a obras caritativas, como creches, escolas e hospitais. “Não havia ferramentas teóricas para tentar modificar a ordem altamente desigual que condenava a parte sul do continente americano a uma existência miserável para boa parte de seus habitantes”, observa o estudioso.
Foi só a partir da década de 1940, com a chegada do missionário norte-americano Richard Shaull ao Brasil, que esta situação começa a mudar. Antes de se estabelecer no país, onde foi responsável por uma verdadeira revolução no ensino teológico e no movimento estudantil entre jovens evangélicos, Shaull foi missionário na Colômbia. Já dotado de uma avançada consciência social, constatou que simples obras sociais não alterariam a situação de profunda miséria que caracterizava a sociedade colombiana. Caminhando pelos subúrbios da capital Bogotá, Shaull percebeu que apenas uma mudança estrutural poderia mudar, não apenas a precária situação local, mas todo o quadro latino-americano. Terminando seu vinculo com a missão colombiana, Shaull retorna aos EUA, onde durante dois anos aprofundou-se no estudo das teorias marxistas.
“Richard Shaull viu no marxismo elementos para a construção de uma ordem social mais justa, e nele sentiu o desafio para se tornar um cristão melhor do que era”, diz Eduardo Galasso Faria, pastor presbiteriano independente e autor do livro Fé e compromisso – Richard Shaull e a teologia no Brasil. Tomado por esta nova compreensão social, Shaull publica o artigo A forma da Igreja na antiga Diáspora. Neste pequeno texto, encontra-se o embrião da Teologia da Libertação, na época conhecida como “teologia da revolução”. “Shaull não é considerado o pai da Teologia da Libertação. Mas, para muitos, é tido como seu precursor. O fato é que, ao ver as primeiras manifestações dessa abordagem teológica, Shaull sentiu que ela era o desenvolvimento natural do trabalho que havia iniciado anteriormente e no qual não pôde prosseguir. Entretanto, existem algumas diferenças entre seu pensamento e as idéias defendidas pelos posteriores teólogos da libertação”, explica Galasso.
Vanguarda evangélica
Na verdade, coube a um discípulo de Shaull, e presbiteriano como ele, a provável paternidade do movimento. Este é ninguém menos que o intelectual brasileiro Rubem Alves. Aluno de Richard Shaull no Seminário de Campinas (SP), Alves transformou-se num dos mais importantes e polêmicos teólogos protestantes da atualidade. Atualmente afastado do labor teológico, ele é considerado o pai do termo Teologia da Libertação. Fora do país devido ao golpe militar de 1964, Alves exilou-se nos Estados Unidos, publicando em 1968 a tese Teologia da Libertação. O trabalho tornou-se um marco – foi a primeira vez que a expressão “libertação”, hoje tão em voga e descaracterizada, foi empregada em uma obra teológica. Com este trabalho, Rubem Alves antecipou muitas das idéias mais tarde defendidas por pensadores católicos como Gutiérrez e Hugo Assman.
“Mesmo não sendo exclusivamente protestante, a vanguarda evangélica na área do estudo bíblico na Europa e nos EUA, unida à liberdade interna existente na tradição protestante, facilitaram muito a aproximação do patrimônio bíblico, com a forte tradição judaico-marxista, fazendo acontecer um diálogo criativo entre eles. Isto foi fundamental para o desenvolvimento da Teologia da Libertação”, analisa Ronaldo Cavalcante. Com o passar do tempo, essa vertente cristã inspirou inúmeras novas formas teológicas voltadas à luta por uma sociedade mais igualitária – inclusive, a teologia feminista e uma teologia negra.
“Mais do que fazer discussões isoladas sobre inúmeros temas, o desafio da Teologia da Libertação é incorporar o cruzamento destas várias categorias políticas, econômicas, raciais e de gênero”, enfatiza a teóloga Sandra Duarte de Souza, professora ligada à Universidade Metodista de São Paulo (Umesp). Para ela, existe uma crescente preocupação por parte de importantes segmentos da Igreja Evangélica latino-americana para fazer da Teologia da Libertação um instrumento para o combate a todo tipo de opressão – e aí, pouco importa se ela tem origem econômica, espiritual e política.
Fonte: Revista Eclésia