Revestido em mármore chiampo, com piso das escadarias em carrara e balaústres em bronze, o hall de acesso às dependências do Palácio da Justiça transformou-se numa majestosa capela, ontem de manhã, no centro de São Paulo.
O “Salão dos Passos Perdidos”, assim denominado porque era onde o público lá permanecia à espera de julgamentos, recebeu tapete vermelho, cadeiras douradas, flores, velas, altar e crucifixo para celebrar uma missa, a 56ª Páscoa da Família Forense, com cerca de 250 pessoas, entre desembargadores, juízes, autoridades e familiares.
A cerimônia foi presidida pelo cardeal arcebispo de São Paulo, dom Odilo Scherer, e durou cerca de uma hora e meia.
“Nossa manifestação de fé pode ajudar a gente a desempenhar nosso papel melhor”, disse ele na missa. “A fé e o respeito ao Estado, que é laico, mas aceita e protege as opções religiosas dos cidadãos.”
Pai de 11 filhos, católico “desde que nasceu”, o desembargador José Geraldo Barreto Fonseca, 66, acha que o Estado não pode ser laico. “Se tirar Deus como fonte, você cai no autoritarismo”, disse. “Toda vez que o homem se fez como referência, grandes tragédias ocorreram.”
Fonseca condena, como as religiões cristãs, temas como o aborto, o casamento gay, a pena de morte e as pesquisas com células-tronco. Devoto de Nossa Senhora e de São José, ele diz que o Judiciário, como a sociedade, é pluralista. Questionado se aceitaria o uso de cartas psicografadas nos tribunais, como defendem membros da recém-criada Associação Jurídico-Espírita de SP, o desembargador disse que não descarta nenhum tipo de prova. “Como não sou espírita, não acredito na reencarnação. A carta, a priori, poderia ser um fenômeno parapsicológico”, afirmou.
Público x privado
À frente da comissão organizadora da missa, o desembargador Munhoz Soares, 67, explicou que a celebração segue uma tradição de ocorrer no segundo ou no terceiro domingo de junho, mês que antecede as férias do Judiciário. Filiado à União dos Juristas Católicos, ele disse que a maioria do Judiciário é católica. “Os juízes decidem de acordo com a lei e com a sua consciência. A fé é o veículo.”
Nem todos os juízes enxergam com bons olhos a presença da religião no Judiciário. “O juiz não pode ter limitações. A Constituição garante liberdade de crença, mas é necessário separar o público da esfera privada”, diz a juíza Kenarik Boujikian Felippe, presidente da Federação Latino-americana de Juízes para a Democracia.
O ex-governador Cláudio Lembo, fiel participante da missa, disse que o Brasil é um país multicultural e multirreligioso. “O Estado laico pode receber qualquer religião. Deus nos livre de fundamentalistas.”
Representando o governador José Serra (PSDB), o secretário estadual da Justiça, Luiz Antonio Marrey, lembrou que o fundamental é garantir que o Estado não assuma religião nem que decisões sejam baseadas na fé. “Não podemos esquecer que até hoje o Supremo Tribunal Federal mantém o crucifixo nos tribunais.”
No fim, foi servido um café da manhã. Havia salgadinhos, sucos, doces e pães, além de chá, café e leite. A entrada era controlada por policiais militares e por um esquema de segurança da organização e do cerimonial do Tribunal de Justiça. O evento foi pago pelos juízes, disse a organização. Os convidados contaram que ofícios foram enviados aos juízes por meio da estrutura do Judiciário, solicitando, inclusive, a indicação de funcionários para a missa.
Fonte: Folha de São Paulo