O papa Bento 16, em uma carta aos fiéis irlandeses, se disse envergonhado pelos abusos cometidos no seio da Igreja Católica da Irlanda, criticou a postura das autoridades eclesiásticas dessa diocese e ordenou aos bispos que ajudem as autoridades civis. Leia íntegra da carta do papa sobre casos de pedofilia aos fiéis irlandeses.
Diante da “gravidade” dos pecados relacionados aos crimes de pedofilia cometidos na Irlanda, houve uma “resposta inadequada” por parte “das autoridades eclesiásticas”, afirmou o Pontífice, em um texto divulgado hoje e que fora assinado por ele na tarde de ontem.
“Expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos provamos”, complementou o Papa, esclarecendo às vítimas que este também é um “grande dano” à Igreja e “à pública percepção do sacerdócio e da vida religiosa”.
“A Justiça de Deus exige que assumamos nossas ações sem ocultar nada”, por isso, “reconheçam abertamente a sua culpa, submetam-se às exigências da Justiça”, determinou aos envolvidos nas agressões.
Aos padres pedófilos, Bento 16 reiterou que estes devem responder por seus crimes, “perante ao Deus onipotente e também frente aos tribunais devidamente constituídos”.
Dirigindo-se especificamente aos “sacerdotes e aos religiosos que abusaram das crianças”, ele disse compartilhar do “temor” de tantos fieis, pela “traição” dos abusos e desejou “o renascimento” da Igreja Católica na Irlanda.
Às vítimas, que “sofreram muito” e “que nunca se poderá anular o mal que suportaram”, Bento 16 reconheceu que “foi traída a vossa confiança, a vossa dignidade foi violada”.
“Muitos de vocês experimentaram que, quando eram suficientemente corajosos para falar do que havia ocorrido, ninguém os ouvia”, por isso, “é compreensível que, para vocês, seja difícil perdoar ou se reconciliar com a Igreja” e “sei que para alguns de vocês é difícil também entrar em uma igreja depois do que ocorreu”, disse.
“Com humildade”, o Pontífice pediu ainda que as pessoas que foram abusadas “não percam a esperança” e as convidou a confiarem “no poder do amor de Jesus”, pois ele também “foi vítima da injustiça e do pecado”, que leva “à libertação e à promessa de um novo começo”.
Os casos de abusos contra crianças, cometidos por décadas por integrantes de instituições católicas irlandesas e que foram encobertados pela diocese de Dublin, vieram à tona em novembro do último ano com a divulgação do relatório da Comissão Murphy, elaborado pela juíza Yvonne Murphy.
Ao tomar conhecimento da denúncia, o Papa se disse “chocado e angustiado” e condenou qualquer tipo de abuso contra crianças. Depois disso, diversos bispos apontados pelo relatório renunciaram.
A carta divulgada hoje foi anunciada por Bento XVI após reuniões com os religiosos. O texto era aguardado com grande expectativa diante dos diversos casos denunciados recentemente em outros países.
Em 2002, foi descoberto que sacerdotes abusaram sexualmente de cerca de 14 mil crianças nos Estados Unidos. Atualmente, são investigadas denúncias em várias nações, como Alemanha, Áustria, Brasil, Holanda e México.
Leia íntegra da carta do papa sobre casos de pedofilia aos fiéis irlandeses
O Vaticano divulgou neste sábado a carta que o papa Bento 16 escreveu aos fiéis irlandeses sobre as centenas de denúncias de abuso sexual de crianças contra padres do país. No documento, o papa diz se sentir envergonhado pelo escândalo, pede que os padres culpados se entreguem à Justiça e condena os graves erros de julgamento dos bispos que ocultaram por décadas as denúncias.
Leia a íntegra da carta do papa, em português, disponibilizada pelo site oficial do Vaticano.
“Amados Irmãos e Irmãs da Igreja na Irlanda, é com grande preocupação que vos escrevo como Pastor da Igreja universal. Como vós, fiquei profundamente perturbado com as notícias dadas sobre o abuso de crianças e jovens vulneráveis da parte de membros da Igreja na Irlanda, sobretudo de sacerdotes e religiosos. Não posso deixar de partilhar o pavor e a sensação de traição que muitos de vós experimentastes ao tomar conhecimento destes atos pecaminosos e criminais e do modo como as autoridades da Igreja na Irlanda os enfrentaram.
Como sabeis, convidei recentemente os bispos irlandeses para um encontro aqui em Roma a fim de referir sobre o modo como trataram estas questões no passado e indicar os passos que empreenderam para responder a esta grave situação. Juntamente com alguns altos Prelados da Cúria Romana, ouvi quanto tinham para dizer, quer individualmente, quer em grupo, enquanto propunham uma análise dos erros cometidos e das lições aprendidas, e uma descrição dos programas e dos protocolos hoje existentes. As nossas reflexões foram francas e construtivas. Alimento a confiança de que, como resultado, os bispos se encontrem agora numa posição mais forte para levar por diante a tarefa de reparar as injustiças do passado e para enfrentar as temáticas mais amplas relacionadas com o abuso dos menores segundo modalidades conformes com as exigências da justiça e com os ensinamentos do Evangelho.
Por meu lado, considerando a gravidade destas culpas e a resposta muitas vezes inadequada que lhes foi reservada da parte das autoridades eclesiásticas no vosso país, decidi escrever esta Carta Pastoral para vos expressar a minha proximidade, e para vos propor um caminho de cura, de renovação e de reparação.
Na realidade, como muitos no vosso país revelaram, o problema do abuso dos menores não é específico nem da Irlanda, nem da Igreja. Contudo a tarefa que agora tendes à vossa frente é enfrentar o problema dos abusos que se verificaram no âmbito da comunidade católica irlandesa e de o fazer com coragem e determinação. Ninguém pense que esta dolorosa situação se resolverá em pouco tempo. Foram dados passos positivos em frente, mas ainda resta muito para fazer. É preciso perseverança e oração, com grande confiança na força restabelecedora da graça de Deus.
Ao mesmo tempo, devo expressar também a minha convicção de que, para se recuperar desta dolorosa ferida, a Igreja na Irlanda deve em primeiro lugar reconhecer diante do Senhor e diante dos outros, os graves pecados cometidos contra jovens indefesos. Esta consciência, acompanhada de sincera dor pelo dano causado às vítimas e às suas famílias, deve levar a um esforço concentrado para garantir a proteção dos jovens em relação a semelhantes crimes no futuro.
Enquanto enfrentais os desafios deste momento, peço-vos que vos recordeis da rocha da qual fostes talhados (Is 51, 1). Refleti sobre as contribuições generosas, com frequência heroicas, oferecidas à igreja e à humanidade como tal pelas passadas gerações de homens e mulheres irlandeses, e deixai que isto gere impulso para um honesto autoexame e um convicto programa de renovação eclesial e individual. A minha oração é para que, assistida pela intercessão dos seus muitos santos e purificada pela penitência, a Igreja na Irlanda supere a presente crise e volte a ser uma testemunha convincente da verdade e da bondade de Deus onipotente, manifestadas no seu filho Jesus Cristo.
Historicamente, os católicos da Irlanda demonstraram-se uma grande força de bem, quer na pátria, quer fora. Monges célticos, como São Colombano, difundiram o Evangelho na Europa Ocidental lançando as bases da cultura monástica medieval. Os ideais de santidade, de caridade e de sabedoria transcendente que derivam da fé cristã, encontraram expressão na construção de igrejas e mosteiros e na instituição de escolas, bibliotecas e hospitais que consolidaram a identidade espiritual da Europa. Aqueles missionários irlandeses tiraram a sua força e inspiração da fé sólida, da guia forte e dos comportamentos morais retos da Igreja na sua terra natal.
A partir do século 16, os católicos na Irlanda sofreram um longo período de perseguição, durante o qual lutaram para manter viva a chama da fé em circunstâncias perigosas e difíceis. Santo Oliver Plunkett, o Arcebispo mártir de Armagh, é o exemplo mais famoso de uma multidão de corajosos filhos e filhas da Irlanda dispostos a dar a própria vida pela fidelidade ao Evangelho. Depois da Emancipação Católica, a igreja teve a liberdade de crescer de novo. Famílias e inúmeras pessoas que tinham preservado a fé durante os tempos das provações tornaram-se a centelha de um grande renascimento do catolicismo irlandês no século 19. A igreja forneceu escolarização, sobretudo aos pobres, e isto deu uma grande contribuição à sociedade irlandesa. Um dos frutos das novas escolas católicas foi um aumento de vocações: gerações de sacerdotes, irmãs e irmãos missionários deixaram a pátria para servir em todos os continentes, sobretudo no mundo de língua inglesa. Foram admiráveis não só pela vastidão do seu número, mas também pela robustez da fé e pela solidez do seu empenho pastoral. Muitas dioceses, sobretudo na África, América e Austrália, beneficiaram-se da presença de clero e religiosos irlandeses que anunciaram o Evangelho e fundaram paróquias, escolas e universidades, clínicas e hospitais, que serviram tanto os católicos, como a sociedade em geral, com atenção especial às necessidades dos pobres.
Em quase todas as famílias da Irlanda houve alguém –um filho ou uma filha, uma tia ou um tio– que deu a própria vida à igreja. Justamente as famílias irlandesas têm em grande estima e afeto os seus queridos, que ofereceram a própria vida a Cristo, partilhando o dom da fé com outros e atualizando-a num serviço amoroso a Deus e ao próximo.
Contudo, nos últimos decênios, a Igreja no vosso país teve que se confrontar com novos e graves desafios à fé que surgiram da rápida transformação e secularização da sociedade irlandesa. Verificou-se uma mudança social muito rápida, que muitas vezes atingiu com efeitos hostis a tradicional adesão do povo ao ensinamento e aos valores católicos. Com frequência as práticas sacramentais e devocionais que sustentam a fé e a tornam capaz de crescer, como por exemplo a confissão frequente, a oração cotidiana e os ritos anuais, não foram atendidas. Determinante foi também neste período a tendência, até da parte de sacerdotes e religiosos, para adotar modos de pensamento e de juízo das realidades seculares sem referência suficiente ao Evangelho. O programa de renovação proposto pelo Concílio Vaticano 2º por vezes foi mal compreendido e na realidade, à luz das profundas mudanças sociais que se estavam a verificar, não era fácil avaliar o modo melhor de o realizar. Em particular, houve uma tendência, ditada por reta intenção, mas errada, a evitar abordagens penais em relação a situações canônicas irregulares. É neste contexto geral que devemos procurar compreender o desconcertante problema do abuso sexual dos jovens, que contribuiu em grande medida para o enfraquecimento da fé e para a perda do respeito pela igreja e pelos seus ensinamentos.
Só examinando com atenção os numerosos elementos que deram origem à crise atual é possível empreender uma diagnose clara das suas causas e encontrar remédios eficazes. Certamente, entre os fatores que para ela contribuíram podemos enumerar: procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa; insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados; uma tendência na sociedade a favorecer o clero e outras figuras com autoridade e uma preocupação inoportuna pelo bom nome da igreja e para evitar os escândalos, que levaram como resultado à malograda aplicação das penas canônicas em vigor e à falta da tutela da dignidade de cada pessoa. É preciso agir com urgência para enfrentar estes fatores, que tiveram consequências tão trágicas para as vidas das vítimas e das suas famílias e obscureceram a luz do Evangelho a tal ponto, ao qual nem sequer séculos de perseguição não tinham chegado.
Em diversas ocasiões desde a minha eleição para a Sé de Pedro, encontrei vítimas de abusos sexuais, assim como estou disponível a fazê-lo no futuro. Detive-me com elas, ouvi as suas vicissitudes, tomei nota do seu sofrimento, rezei com e por elas. Precedentemente no meu pontificado, na preocupação por enfrentar este tema, pedi aos bispos da Irlanda, por ocasião da visita ad limina de 2006, que “estabelecessem a verdade de quanto aconteceu no passado, tomassem todas as medidas adequadas para evitar que se repita no futuro, garantissem que os princípios de justiça sejam plenamente respeitados e, sobretudo, curassem as vítimas e quantos são atingidos por estes crimes abnormes” (Discurso aos Bispos da Irlanda, 28 de Outubro de 2006).
Com esta carta, pretendo exortar todos vós, como povo de Deus na Irlanda, a refletir sobre as feridas infligidas ao corpo de Cristo, sobre os remédios, por vezes dolorosos, necessários para as atar e curar, e sobre a necessidade de unidade, de caridade e de ajuda recíproca no longo processo de restabelecimento e de renovação eclesial. Dirijo-me agora a vós com palavras que me vêm do coração, e desejo falar a cada um de vós individualmente e a todos como irmãos e irmãs no Senhor.
Às vítimas de abuso e às suas famílias
Sofrestes tremendamente e por isto sinto profundo desgosto. Sei que nada pode cancelar o mal que suportastes. Foi traída a vossa confiança e violada a vossa dignidade. Muitos de vós experimentastes que, quando éreis suficientemente corajosos para falar de quanto tinha acontecido, ninguém vos ouvia. Quantos de vós sofrestes abusos nos colégios deveis ter compreendido que não havia modo de evitar os vossos sofrimentos. É comprensível que vos seja difícil perdoar ou reconciliar-vos com a Igreja. Em seu nome expresso abertamente a vergonha e o remorso que todos sentimos. Ao mesmo tempo peço-vos que não percais a esperança. É na comunhão da Igreja que encontramos a pessoa de Jesus Cristo, ele mesmo vítima de injustiça e de pecado. Como vós, ele ainda tem as feridas do seu injusto padecer. Ele compreende a profundeza dos vossos padecimentos e o persistir do seu efeito nas vossas vidas e nos relacionamentos com os outros, incluídas as vossas relações com a Igreja. Sei que alguns de vós têm dificuldade até de entrar numa igreja depois do que aconteceu. Contudo, as mesmas feridas de Cristo, transformadas pelos seus sofrimentos redentores, são os instrumentos graças aos quais o poder do mal é infrangido e nós renascemos para a vida e para a esperança. Creio firmemente no poder restabelecedor do seu amor sacrificial –também nas situações mais obscuras e sem esperança– que traz a libertação e a promessa de um novo início.
Dirigindo-me a vós como pastor, preocupado pelo bem de todos os filhos de Deus, peço-vos com humildade que reflitais sobre quanto vos disse. Rezo a fim de que, aproximando-vos de Cristo e participando na vida da sua igreja –uma igreja purificada pela penitência e renovada na caridade pastoral– possais redescobrir o amor infinito de Cristo por todos vós. Tenho confiança em que deste modo sereis capazes de encontrar reconciliação, profunda cura interior e paz.
Aos sacerdotes e aos religiosos que abusaram dos jovens
Traístes a confiança que os jovens inocentes e os seus pais tinham em vós. Por isto deveis responder diante de Deus onipotente, assim como diante de tribunais devidamente constituídos. Perdestes a estima do povo da Irlanda e lançastes vergonha e desonra sobre os vossos irmãos. Quantos de vós sacerdotes violastes a santidade do sacramento da Ordem Sagrada, no qual Cristo se torna presente em nós e nas nossas ações. Juntamente com o enorme dano causado às vítimas, foi perpetrado um grande dano à igreja e à percepção pública do sacerdócio e da vida religiosa.
Exorto-vos a examinar a vossa consciência, a assumir a vossa responsabilidade dos pecados que cometestes e a expressar com humildade o vosso pesar. O arrependimento sincero abre a porta ao perdão de Deus e à graça do verdadeiro emendamento. Oferecendo orações e penitências por quantos ofendestes, deveis procurar reparar pessoalmente as vossas ações. O sacrifício redentor de Cristo tem o poder de perdoar até o pecado mais grave e de obter o bem até do mais terrível dos males. Ao mesmo tempo, a justiça de Deus exige que prestemos contas das nossas ações sem nada esconder. Reconhecei abertamente a vossa culpa, submetei-vos às exigências da justiça, mas não desespereis da misericórdia de Deus.
Aos pais
Ficastes profundamente transtornados ao tomar conhecimento das coisas terríveis que tiveram lugar naquele que deveria ter sido o ambiente mais seguro para todos. No mundo de hoje, não é fácil construir um lar doméstico e educar os filhos. Eles merecem crescer num ambiente seguro, amados e queridos, com um forte sentido da sua identidade e do seu valor. Têm direito a ser educados nos valores morais autênticos, radicados na dignidade da pessoa humana, a serem inspirados pela verdade da nossa fé católica e a aprender modos de comportamento e de ação que os levem a uma sadia estima de si e à felicidade duradoura. Esta tarefa nobre e exigente está confiada em primeiro lugar a vós, seus pais. Exorto-vos a fazer a vossa parte para garantir a melhor cura possível dos jovens, quer em casa, quer na sociedade em geral, enquanto que a igreja, por seu lado, continua a pôr em prática as medidas adotadas nos últimos anos para tutelar os jovens nos ambientes paroquiais e educativos. Enquanto dais continuidade às vossas importantes responsabilidades, certifico-vos de que estou próximo de vós e que vos dou o apoio da minha oração.
Aos meninos e aos jovens da Irlanda
Desejo oferecer-vos uma particular palavra de encorajamento. A vossa experiência de Igreja é muito diversa da que fizeram os vossos pais e avós. O mundo mudou muito desde quando eles tinham a vossa idade. Não obstante, todos, em cada geração, estão chamados a percorrer o mesmo caminho da vida, sejam quais forem as circunstâncias. Todos estamos escandalizados com os pecados e as falências de alguns membros da igreja, sobretudo de quantos foram escolhidos de modo especial para guiar e servir os jovens. Mas é na Igreja que encontrareis Jesus Cristo que é o mesmo ontem, hoje e sempre (cf. Hb 13, 8). Ele ama-vos e ofereceu-se a si próprio na Cruz por vós. Procurai uma relação pessoal com ele na comunhão da sua Igreja, porque ele nunca trairá a vossa confiança! Só ele pode satisfazer as vossas expectativas mais profundas e conferir às vossas vidas o seu significado mais pleno orientando-as para o serviço ao próximo. Mantende o olhar fixo em Jesus e na sua bondade e protegei no vosso coração a chama da fé. Juntamente com os vossos irmãos católicos na Irlanda, olho para vós a fim de que sejais discípulos fiéis do nosso Deus e contribuais com o vosso entusiasmo e com o vosso idealismo tão necessários para a reconstrução e para o renovamento da nossa amada Igreja.
Aos sacerdotes e aos religiosos da Irlanda
Todos nós estamos a sofrer como consequência dos pecados dos nossos irmãos que traíram uma ordem sagrada ou não enfrentaram de modo justo e responsável as acusações de abuso. Perante o ultraje e a indignação que isto causou, não só entre os leigos mas também entre vós e as vossas comunidades religiosas, muitos de vós sentis-vos pessoalmente desanimados e também abandonados. Além disso, estou consciente de que aos olhos de alguns sois culpados por associação, e considerados como que de certo modo responsáveis pelos delitos de outros. Neste tempo de sofrimento, desejo reconhecer-vos a dedicação da vossa vida de sacerdotes e de religiosos e dos vossos apostolados, e convido-vos a reafirmar a vossa fé em Cristo, o vosso amor à sua igreja e a vossa confiança na promessa de redenção, de perdão e de renovação interior do Evangelho. Deste modo, demonstrareis a todos que onde abunda o pecado, superabunda a graça (cf. Rm 5, 20).
Sei que muitos de vós estais desiludidos, transtornados e encolerizados pelo modo como estas questões foram tratadas por alguns dos vossos superiores. Não obstante, é essencial que colaboreis de perto com quantos têm a autoridade e que vos comprometais para fazer com que as medidas adotadas para responder à crise sejam verdadeiramente evangélicas, justas e eficazes. Sobretudo, exorto-vos a tornar-vos cada vez mais claramente homens e mulheres de oração, seguindo com coragem o caminho da conversão, da purificação e da reconciliação. Deste modo, a Igreja na Irlanda haurirá nova vida e vitalidade do vosso testemunho ao poder redentor do Senhor tornado visível na vossa vida.
Aos meus irmãos bispos
Não se pode negar que alguns de vós e dos vossos predecessores falhastes, por vezes gravemente, na aplicação das normas do direito canônico codificado há muito tempo sobre os crimes de abusos de jovens. Foram cometidos sérios erros no tratamento das acusações. Compreendo como era difícil lançar mão da extensão e da complexidade do problema, obter informações fiáveis e tomar decisões justas à luz de conselhos divergentes de peritos. Contudo, deve-se admitir que foram cometidos graves erros de juízo e que se verificaram faltas de governo. Tudo isto minou seriamente a vossa credibilidade e eficiência. Aprecio os esforços que fizestes para remediar os erros do passado e para garantir que não se repitam. Além de pôr plenamente em prática as normas do direito canônico ao enfrentar os casos de abuso de jovens, continuai a cooperar com as autoridades civis no âmbito da sua competência. Claramente, os superiores religiosos devem fazer o mesmo. Também eles participaram em recentes encontros aqui em Roma destinados a estabelecer uma abordagem clara e coerente destas questões. É obrigatório que as normas da Igreja na Irlanda para a tutela dos jovens sejam constantemente revistas e atualizadas e que sejam aplicadas de modo total e imparcial em conformidade com o direito canônico.
Só uma ação decidida levada em frente com total honestidade e transparência poderá restabelecer o respeito e a benquerença dos Irlandeses em relação à Igreja à qual consagramos a nossa vida. Isto deve brotar, antes de tudo, do exame de vós próprios, da purificação interior e da renovação espiritual. O povo da Irlanda espera justamente que sejais homens de Deus, que sejais santos, que vivais com simplicidade, que procureis todos os dias a conversão pessoal. Para ele, segundo a expressão de Santo Agostinho, sois bispos; contudo estais chamados a ser com eles seguidores de Cristo (cf. Discurso 340, 1). Exorto-vos portanto a renovar o vosso sentido de responsabilidade diante de Deus, a crescer em solidariedade com o vosso povo e a aprofundar a vossa solicitude pastoral por todos os membros da vossa grei. Em particular, sede sensíveis à vida espiritual e moral de cada um dos vossos sacerdotes. Sede um exemplo com as vossas próprias vidas, estai-lhes próximos, ouvi as suas preocupações, oferecei-lhes encorajamento neste tempo de dificuldades e alimentai a chama do seu amor a Cristo e o seu compromisso no serviço dos seus irmãos e irmãs.
Também os leigos devem ser encorajados a fazer a sua parte na vida da Igreja. Fazei com que sejam formados de modo que possam dizer a razão, de maneira articulada e convincente, do Evangelho na sociedade moderna (cf. 1 Pd 3, 15), e cooperem mais plenamente na vida e na missão da Igreja. Isto, por sua vez, ajudar-vos-á a ser de novo guias e testemunhas credíveis da verdade redentora de Cristo.
A todos os fiéis da Irlanda
A experiência que um jovem faz da Igreja deveria dar sempre fruto num encontro pessoal e vivificante com Jesus Cristo numa comunidade que ama e que oferece alimento. Neste ambiente, os jovens devem ser encorajados a crescer até à sua plena estatura humana e espiritual, a aspirar por ideais nobres de santidade, de caridade e de verdade e a inspirar-se nas riquezas de uma grande tradição religiosa e cultural. Na nossa sociedade cada vez mais secularizada, na qual também nós cristãos muitas vezes temos dificuldade em falar da dimensão transcendente da nossa existência, precisamos de encontrar novos caminhos para transmitir aos jovens a beleza e a riqueza da amizade com Jesus Cristo na comunhão da sua Igreja. Ao enfrentar a presente crise, as medidas para se ocupar de modo justo de cada um dos crimes são essenciais, mas sozinhas não são suficientes: há necessidade de uma nova visão para inspirar a geração atual e as futuras a fazer tesouro do dom da nossa fé comum. Caminhando pela via indicada pelo Evangelho, observando os mandamentos e conformando a nossa vida de maneira cada vez mais próxima com a pessoa de Jesus Cristo, fareis a experiência da renovação profunda da qual hoje há uma urgente necessidade. Convido-vos a todos a perseverar neste caminho.
Amados irmãos e irmãs em Cristo, é com profunda preocupação por todos vós neste tempo de sofrimento, no qual a fragilidade da condição humana foi tão claramente revelada, que desejei oferecer-vos estas palavras de encorajamento e de apoio. Espero que as acolhais como um sinal da minha proximidade espiritual e da minha confiança na vossa capacidade de responder aos desafios do momento atual tirando renovada inspiração e força das nobres tradições da Irlanda de fidelidade ao Evangelho, de perseverança na fé e de firmeza na consecução da santidade. Juntamente com todos vós, rezo com insistência para que, com a graça de Deus, as feridas que atingiram muitas pessoas e famílias possam ser curadas e que a Igreja na Irlanda possa conhecer uma época de renascimento e de renovação espiritual.
Desejo propor-vos algumas iniciativas concretas para enfrentar a situação. No final do meu encontro com os Bispos da Irlanda, pedi que a Quaresma deste ano fosse considerada como tempo de oração para uma efusão da misericórdia de Deus e dos dons de santidade e de força do Espírito Santo sobre a Igreja no vosso país. Agora convido todos vós a dedicar as vossas penitências da sexta-feira, durante todo o ano, de agora até à Páscoa de 2011, por esta finalidade. Peço-vos que ofereçais o vosso jejum, a vossa oração, a vossa leitura da Sagrada Escritura e as vossas obras de misericórdia para obter a graça da cura e da renovação para a Igreja na Irlanda. Encorajo-vos a redescobrir o sacramento da Reconciliação e a valer-vos com mais frequência da força transformadora da sua graça.
Deve ser dedicada também particular atenção à adoração eucarística, e em cada diocese deverão haver igrejas ou capelas reservadas especificamente para esta finalidade. Peço que as paróquias, os seminários, as casas religiosas e os mosteiros organizem tempos para a adoração eucarística, de modo que todos tenham a possibilidade de participar deles. Com oração fervorosa diante da presença real do Senhor, podeis fazer a reparação pelos pecados de abuso que causaram tantos danos, e ao mesmo tempo implorar a graça de uma renovada força e de um sentido da missão mais profundo por parte de todos os bispos, sacerdotes, religiosos e fiéis.
Tenho esperança em que este programa levará a um renascimento da Igreja na Irlanda na plenitude da própria verdade de Deus, porque é a verdade que nos torna livres (cf. Jo 8, 32).
Além disso, depois de me ter consultado e rezado sobre a questão, tenciono anunciar uma Visita Apostólica a algumas dioceses da Irlanda, assim como a seminários e congregações religiosas. A Visita propõe-se ajudar a Igreja local no seu caminho de renovação e será estabelecida em cooperação com as repartições competentes da Cúria Romana e com a Conferência Episcopal Irlandesa. Os pormenores serão anunciados no devido momento.
Além disso proponho que se realize uma Missão a nível nacional para todos os bispos, sacerdotes e religiosos. Alimento a esperança de que, haurindo da competência de peritos pregadores e organizadores de retiros quer da Irlanda como de outras partes, e reexaminando os documentos conciliares, os ritos litúrgicos da ordenação e da profissão e os recentes ensinamentos pontifícios, alcanceis um apreço mais profundo das vossas respectivas vocações, de modo a redescobrir as raízes da vossa fé em Jesus Cristo e a beber abundantemente nas fontes da água viva que ele vos oferece através da sua Igreja.
Neste Ano dedicado aos Sacerdotes, recomendo-vos de modo muito particular a figura de São João Maria Vianney, que teve uma compreensão tão rica do mistério do sacerdócio. O sacerdote, escreveu, possui a chave dos tesouros do céu: é ele quem abre a porta, é ele o dispensador do bom Deus, o administrador dos seus bens. O cura d’Ars compreendeu bem como é grandemente abençoada uma comunidade quando é servida por um sacerdote bom e santo. Um bom pastor, um pastor segundo o coração de Deus, é o tesouro maior que o bom Deus pode dar a uma paróquia e um dos dons mais preciosos da misericórdia divina. Por intercessão de São João Maria Vianney possa o sacerdócio na Irlanda retomar vida e a inteira Igreja na Irlanda crescer na estima do grande dom do ministério sacerdotal.
Aproveito esta ocasião para agradecer desde já a quantos se comprometerem no empenho de organizar a Visita Apostólica e a Missão, assim como os tantos homens e mulheres que em toda a Irlanda já se comprometeram pela tutela dos jovens nos ambientes eclesiásticos. Desde quando a gravidade e a extensão do problema dos abusos sexuais dos jovens em instituições católicas começou a ser plenamente compreendido, a Igreja desempenhou uma grande quantidade de trabalho em muitas partes do mundo, a fim de o enfrentar e remediar. Enquanto não se deve poupar esforço algum para melhorar e atualizar procedimentos já existentes, encoraja-me o facto de que as práticas de tutela em vigor, adotadas pelas Igrejas locais, são consideradas, nalgumas partes do mundo, um modelo que deve ser seguido por outras instituições.
Desejo concluir esta carta com uma especial oração pela Igreja na Irlanda, que vos envio com o cuidado que um pai tem pelos seus filhos e com o afeto de um cristão como vós, escandalizado e ferido por quanto aconteceu na nossa amada Igreja. Ao utilizardes esta oração nas vossas famílias, paróquias e comunidades, que a Bem-Aventurada Virgem Maria vos proteja e vos guie pelo caminho que conduz a uma união mais estreita com o seu Filho, crucificado e ressuscitado. Com grande afeto e firme confiança nas promessas de Deus, concedo de coração a todos vós a minha Bênção Apostólica em penhor de força e paz no Senhor.
Vaticano, 19 de Março de 2010, Solenidade de São José
Fonte: Ansa e Folha Online