A decisão do papa Francisco de submeter a todos os fiéis um questionário sobre os pontos mais espinhosos da doutrina católica em matéria de moral familiar e sexual irritou alguns prelados.
A pesquisa irritou alguns prelados, como certo bispo francês que ralhou: “Não se reforma a Igreja através de pesquisas de opinião”. No final, ela também poderá decepcionar algumas pessoas, caso as respostas do Vaticano não estejam à altura das expectativas levantadas pelo questionário.
Na quinta e sexta-feira (20 e 21), 185 dos 218 cardeais da Igreja se reunirão em Roma, em preparação para o sínodo sobre a família convocado pelo papa para o mês de outubro. Eles terão à disposição uma primeira síntese das respostas recolhidas em todo o mundo sobre esses temas, muitas vezes fontes de tensão entre a Igreja Católica e as sociedades modernas. Entre elas consta a síntese francesa, que os bispos da França não pretendiam publicar.
Dependendo da diocese, o questionário suscitou de dezenas a centenas de contribuições. Longo (38 perguntas) e com termos complexos – a noção de “lei natural” que opõe a Igreja a possíveis evoluções doutrinárias é amplamente incompreendida – , ele foi trabalhado sobretudo por grupos de fiéis já constituídos em torno dessas questões.
Uma enquete junto a várias dioceses levou à conclusão de duas constatações principais: a incompreensão, ou até a rejeição, domina diante das regras em vigor na Igreja sobre a moral sexual; e surge uma demanda global para que a instituição seja “mais aberta, mais tolerante, mais respeitosa” em relação às pessoas que, segundo os termos romanos, estejam “em situação irregular”, como os divorciados (casados novamente ou não), os homossexuais, as pessoas que vivem em concubinato, os não-praticantes ou os não-crentes que pedem o casamento ou o batismo para seus filhos.
Como já era esperado, é em matéria de moral sexual que os fiéis estão menos de acordo com a Igreja. Os fiéis foram interrogados sobre o Humanae vitae, o texto oficial que estipula desde 1968 a proibição da “contracepção artificial”, e confirmou-se que eles “não o levam em conta”, afirma Thérèse Loison, que realizou a síntese de aproximadamente 200 respostas para a diocese de Poitiers. “Eles acreditam que a Igreja não deve impor uma única proposição, mas que o casal deve decidir sobre a melhor forma de contracepção”, diz Elisabeth Benichou, encarregada de redigir a contribuição da diocese de Annecy. “Sabemos que a Igreja não reescreve seus textos antigos, mas bastaria uma palavra do papa para dizer que, nessas questões, a instituição confia nos casais.”
“Na França, se a prática não corresponde à lei, muda-se a lei. A Igreja age de outra forma,” confirmou no “La Croix” de 31 de janeiro Dom Pierre-Marie Carré, arcebispo de Montpellier encarregado da síntese nacional. “Ela leva em consideração a lei e a situação do casal e sua possibilidade de cumprir um itinerário”.
Segundo Dom Eric de Moulins-Beaufort, bispo auxiliar de Paris e autor da síntese parisiense, a maior parte das respostas mostram que “a doutrina é um ideal que cada um adota do jeito que pode ou quer. É o caso sobretudo do Humanae vitae. Alguns fiéis o consideram uma indicação estimulante; é preciso conseguir explicá-lo melhor, para que cada um se aproprie dele do seu jeito, mas não me parece urgente reformá-lo”, afirma o bispo.
De fato, nada indica que o papa queira atualizar esse texto. No questionário, aliás, fala-se em “aprofundamento” e “promoção da natalidade”, ponto de vista adotado por Dom Dominique Rey, bispo de Toulon, que defende “uma melhor formação dos jovens no plano ético e antropológico, uma formação sobre o amor e sexualidade.”
Claramente identificadas como movimentos progressistas dentro da Igreja, as Réseaux du Parvis [rede de associações cristãs francesas] se mostram bem mais críticas: o Humanae vitae é um “profundo erro de consequências devastadoras que a cúpula católica não deveria mais assumir, ele não é compreendido, muito poucos se adequam a ele e poucos padres e bispos ousam apresentá-lo”, explica um texto que resume as contribuições de seus membros. Da mesma forma, a Conferência dos Batizados, que reúne na França alguns milhares de pessoas e afirma ter recebido 400 contribuições, pede para que a Igreja “pare no limiar do leito conjugal” e “deixe de lado seu papel de fiscal e tabelião do sexo […]. O povo de Deus está em desacordo completo com o magistério sobre essas questões, e há cinquenta anos ele vem o rejeitando, ignorando ou abandonando.”
Em compensação, todos ou quase todos concordam que a Igreja deve ter mais compreensão em relação às novas situações familiares ou conjugais. “As pessoas estão pedindo para serem ouvidas, mais do que uma abordagem jurídica, pois cada situação é diferente”, diz Benichou, aparentemente alinhada com o discurso oficial do papa Francisco. “Nota-se o desejo de que a Igreja não repita simplesmente as regras, mas sim defenda um discurso mais positivo, que ela acompanhe as pessoas em dificuldades e não as trate como pestilentas”, confirma Dom de Moulins-Beaufort.
Essa forma de abordagem, caso a caso, poderia não agradar a todos. “É verdade que deve ser dada uma atenção para cada um, independentemente de sua situação, mas sem que isso coloque em xeque os fundamentos de nossa fé comum”, alerta Dom Rey.
O exemplo dos divorciados que voltam a se casar é emblemático desse delicado equilíbrio. Como voltar atrás na regra que proíbe esses crentes de comunhão e de um novo casamento religioso sem prejudicar a indissolubilidade do casamento, regra intangível da Igreja católica? “Existe uma forte demanda para que a lei mude para os divorciados”, afirma Benichou, “pois a situação atual resulta em situações inaceitáveis.”
Já os progressistas rejeitam por antecipação uma das soluções defendidas por Roma, que quer ampliar os “pedidos de anulação” para os primeiros casamentos. Outros ainda enfatizam a necessidade de uma melhor “preparação para o casamento”, para levar os casais a aprofundarem o sentido de seu compromisso na esperança de diminuir o número de divórcios. Na França, o índice de divórcios nos meios praticantes é quase idêntico ao dos outros casais.
O lugar dos homossexuais e de seus filhos pode suscitar polêmica. Dom de Moulins-Beaufort explica as propostas de seus fiéis para o acolhimento dos homossexuais, “por muito tempo estigmatizados”: “Alguns deles acreditam que é preciso acolhê-los como casais, outros, que é preciso convidá-los a viverem uma amizade casta”. Em Annecy, mostrou-se a vontade de “integrar plenamente os homossexuais às atividades da Igreja para derrubar o constrangimento e os preconceitos.”
Toda a arte do papa residirá então em sua maneira de dizer as coisas sem mexer nos textos e na doutrina. Isso porque, para além do uso inédito desse método participativo sobre temas que muitas vezes são tabus, a iniciativa também visa trazer soluções para que fiéis mais bem formados entendam melhor os ensinamentos da Igreja e atenham-se mais a eles.
[b]Fonte: Le Monde
Tradutor: UOL[/b]