Quem costuma ouvir rádio já se deu conta: das trezes emissoras em frequência modulada que operam em Sorocaba, sete, ou seja, praticamente a metade, difundem programação gospel, de motivação religiosa.

Os números tomam por base consulta feita em aparelhos receptores, por meio do dial. No site da Associação das Emissoras do Estado de São Paulo (Aesp), as informações, defasadas, dão conta da existência de sete emissoras FM. Todas com outorga do Ministério das Comunicações.

Também procurado, o Sindicato Estadual dos Radialistas explicou que não há como exercer um controle estatístico mais efetivo, uma vez que, a cada dia, surgem novas retransmissoras e outras são substituídas.

Foram sintonizadas as rádios NT Gospel; Gospel; Gospel Regional Sorocaba; Gospel FM; Gospel FM; Rádio Atividade e Deus é Amor. De qualquer forma, os dados reforçam uma tendência (observada não apenas aqui), curiosa. O problema, convém registrar, nada tem a ver com a doutrina professada pelas denominações às quais as FMs estão vinculadas.

Até constitucionalmente a liberdade de crença é assegurada. O risco, adverte o jornalista Marcelo de Oliveira Volpato, autor de uma dissertação que discute o fenômeno, fica por conta do uso indevido das concessões.

Volpato, cujo trabalho focou a realidade da região de Bauru, de onde é natural, abordando o caráter comunitário do serviço, diz que o proselitismo do discurso e da linguagem trabalhados gera uma distorção do serviço que é público.

A pesquisa, desenvolvida para a Universidade Metodista de São Paulo, envolveu 23 emissoras daquela região e detectou casos de finalidade distorcida da radiodifusão. “Essas emissoras ficam sob o poder de igrejas, geralmente evangélicas, que detêm o monopólio de uma atividade que deveria primar pela pluralidade cultural”, explica.

“São instituições que se apropriam do serviço de radiodifusão para difundir mensagens com fins proselitista, ou seja, possuem interesse em angariar fiéis. Isso também é um fenômeno dos tempos atuais, uma distorção do real sentido das rádios”, comenta.

Por lei, continua o estudioso, as rádios devem ter finalidade educativa, artística, cultural e informativa: “É proibida a discriminação de raça, religião, sexo, opção sexual, cultural, ideológica, e, também, o proselitismo de qualquer natureza. Isso vale, inclusive, no que se refere à questão religiosa”.

“Emissoras que estão sob a gestão de uma única igreja não dão visibilidade à diversidade cultural da população, pois estão preocupadas em aumentar o número de seguidores”, alerta.

A Constituição diz que o Estado é laico, ou seja, não segue determinada religião. Logo, usar da rádio para divulgar doutrina religiosa seria ilegal? Volpato responde que “os grupos políticos sempre arrumam uma forma de legalizar seus interesses. O que preocupa é que essas rádios dão visibilidade a apenas uma doutrina em detrimento a outras”.

Para o professor de Sociologia Paulo Celso da Silva é preciso considerar, antes, que a proliferação das rádios de estilo gospel deve ser interpretada como um reflexo do próprio aumento de seguidores das seitas evangélicas. “É evidente que as pessoas buscam nos diferentes meios de comunicação conteúdos com os quais se identificam. A diversidade de rádios procura atender às diferentes correntes existentes, contemplando, assim, às mais variadas vertentes religiosas”.

Para Silva, “rádios de cunho religioso, bem como aquelas voltadas ao sertanejo, ao erudito e a tantos quantos mais estilos existirem, comprovam a diversidade cultural, social e religiosa do país. A heterogenia, seja religiosa, sexual, ideológica ou de qualquer ordem, pressupõe tolerância, respeito e aceitação”.

Modelo

O professor lembra que o problema está, mais, associado ao modelo de concessão dos meios de radiodifusão praticado no país. No ano passado, lembrou, o assunto foi discutido dentro da Conferência Nacional de Comunicação sem que, no entanto, fosse encaminhada solução concreta.

“Uma cartilha que pautou a participação no encontro dos movimentos sociais, editada por central sindical, dava um exemplo bastante elucidativo: se a água que consumimos não é de boa qualidade, reclamamos ao serviço competente, que resolve. Agora, se aquilo que assistimos na televisão ou ouvimos no rádio nos incomoda, o que fazer?”

Na prática, continua o estudioso, quando autorizasse a instalação de um canal ou emissora de rádio, o governo deveria usar de outros critérios, envolver a sociedade no debate e evitar que o meio de difusão fosse utilizado indevidamente. “É uma questão mais complexa”, aponta.

Enquanto isso não acontece, arremata Paulo Celso, a alternativa é recorrer à mobilização. “Já foram feitas campanhas contra a chamada baixaria na tevê. A sociedade pode e deve cobrar mudanças, sempre que se sentir incomodada”.

A divulgação permanente de mensagens de cunho religioso, seria prejudicial? Silva diz que este sempre é um perigo a ser considerado. “Tanto quanto faz mal não se abrir à diversidade cultural, ser massacrado por doutrinas e conceitos de denominações é, sim, preocupante”.

Fonte: Jornal Cruzeiro do Sul

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