Um ex-dependente químico procurou a Justiça do Trabalho para denunciar a exigência do trabalho semelhante à condição de escravo que ele teria sido obrigado a realizar no sítio onde funcionava a clínica de recuperação, na qual ficou internado. Conforme seus relatos, o trabalho braçal no sítio era realizado sem remuneração e sem direitos trabalhistas. Segundo a denúncia do autor, ele teria sido enganado pelas rés – uma igreja presbiteriana e a proprietária do sítio onde funcionava a clínica de recuperação de dependentes químicos. Isto porque, de acordo com a versão apresentada pelo reclamante, não houve nenhum tratamento para livrá-lo das drogas. Diante desse quadro, o juiz Alexandre Pimenta Batista Pereira, que julgou o caso na 2ª Vara do Trabalho de Coronel Fabriciano, se viu diante de uma intrincada questão: os fatos evidenciariam exploração de mão-de-obra ou simples terapia ocupacional?

O ex-dependente químico relatou que passou a frequentar uma igreja de Ipatinga, com o objetivo de buscar ajuda para se libertar das drogas. Após um período frequentando a igreja, um pastor ofereceu a ele um tratamento no sítio onde funcionava uma clínica de recuperação. Informou, assim, que, com o único intuito de se livrar de seu vício, aceitou a proposta do pastor da igreja presbiteriana, uma das rés no processo. Segundo narrou, havia um conjunto de regras que ele deveria observar: acordar às 7h, oração em conjunto, leitura diária da bíblia, atividades determinadas pelo líder, descanso, culto vespertino, culto noturno, jejum duas vezes por semana e ir à igreja em dias determinados pelo líder. Disse ainda que, após aceitar esses termos, foi encaminhado para a clínica de recuperação, onde passou a trabalhar diariamente como caseiro, realizando serviços braçais, por aproximadamente quatro meses, sem nenhuma remuneração ou submissão a qualquer tipo de tratamento contra o vício das drogas.

Em defesa, as rés negaram a existência da prestação de serviços noticiada na petição inicial. Relataram que, a pedido da irmã do ex-dependente químico, o pastor o encaminhou para a clínica de recuperação mantida pela igreja em um sítio. Afirmaram que, nos primeiros dias, o reclamante sujeitou-se ao regime de tratamento pré-estabelecido, mas, pouco tempo depois, começou a praticar atos de insubordinação, destruição de patrimônio e agressões, motivos pelos quais foi entregue novamente aos cuidados da sua família. Sustentaram as rés que o autor nunca exerceu trabalho, sendo, sim, responsável por algumas atividades de cunho terapêutico, que possuíam objetivo meramente ocupacional.

O juiz sentenciante apurou que o reclamante realmente apresentava um quadro de dependência química, já tendo sido internado antes em Centro de Tratamento Psicológico e Terapêutico, em razão do uso de crack, maconha, álcool e tabaco. Esse o motivo pelo qual passou a frequentar a igreja presbiteriana. No depoimento pessoal, o autor confirmou que aceitou a ajuda oferecida pelo pastor e declarou, ainda, que a sua irmã solicitou a sua ida ao centro de recuperação.

Para o magistrado, ficou claro que a igreja presbiteriana e o centro de internação, em atitude altruísta e solidária, ofereceram ao reclamante ajuda para se libertar do envolvimento com as drogas, na tentativa de resgatar a sua saúde física, psíquica e social. Nas palavras do julgador, as rés “buscaram ajudar o reclamante a se libertar com o envolvimento das drogas, com o simples propósito de uma ação altruísta, solidarizando-se com o quadro clínico desfavorável do autor, portador de um nítido problema de saúde e dilema social”. Conforme acentuou o magistrado, a situação não pode ser caracterizada como de trabalho semelhante à condição de escravo, “uma vez que a liberdade do autor em nenhum momento fez-se comprometida”.

Prosseguindo em sua análise do caso, o juiz percebeu que seria necessário refletir sobre outra questão essencial, relativa ao alegado vínculo de emprego. “Pergunta-se: Estaria o propósito inicial altruísta, de fornecer ajuda pela fé e libertação, maculado a partir de uma observância e constatação dos elementos do vínculo laboral?”, questionou o julgador, e, após examinar o conjunto de provas, ele trouxe a resposta: “As provas dos autos especificam, ao contrário, que, deveras, não houve prestação de labor”.

Na fase de produção de provas, o juiz destacou o depoimento da única testemunha indicada pelo autor, a qual trabalhou no sítio por apenas cinco dias realizando limpeza. Na avaliação do julgador, não é suficiente a declaração isolada de que, nesses dias, a testemunha viu o reclamante cuidando de porco, da horta e, às vezes, capinando. Mas, ainda que ele tivesse realizado, de fato, essas atividades, teriam sido feitas em benefício próprio e não da proprietária do sítio, pois o magistrado entende que a pessoa em tratamento não poderia permanecer ociosa na clínica durante todo o tempo.

Ou seja, segundo o juiz, nessa circunstância, o trabalho não funciona como atividade econômica e garantia do sustento, mas, sim, como terapia, medida essencial para a recuperação da saúde do dependente químico. “Com efeito, o relato uníssono das outras testemunhas do processo confirmam que o reclamante esteve no sítio, sim, para recuperar-se, não havendo propriamente prestação laboral”, concluiu. Fazendo uma analogia com a situação do presidiário, o magistrado enfatizou que o artigo 28 da Lei de Execução Penal (Lei 7210/84) permite o trabalho do condenado para fins educativos, retirando a efetivação do vínculo de emprego em tais situações.

Chamou a atenção do juiz a declaração do pastor no sentido de que a documentação do sítio não se encontra ainda regularizada como centro destinado à recuperação. Entretanto, de acordo com a conclusão do julgador, essa circunstância não altera a realidade dos fatos evidentes no processo, sendo certo que a relação estabelecida entre as partes revela-se, estritamente, de cunho religioso e espiritual, em benefício direto do próprio autor, não se delineando a existência de trabalho análogo ao de escravo, bem como as características da relação de emprego, nos moldes do artigo 3º da CLT.

Ao finalizar, o juiz sentenciante citou a lição de dois ilustres juristas. “A saudosa professora Alice Monteiro de Barros registra, em magistral e inesquecível lição, a tese de Carbonnier, segundo a qual”o direito não foi feito nem para os heróis, nem para os santos, mas para os homens medíocres que somos”(” Trabalho Voluntário e Trabalho Religioso “. Revista do TST, Brasília, vol. 66, nº 1, jan/mar 2000, p. 115), defendendo a exclusão do vínculo de emprego nas atividades missionárias, efetivadas pela finalidade de propagação de ideais filantrópicos e religiosos”. Nesse sentido foi a sua conclusão, ao julgar improcedentes os pedidos do autor.

Ao analisar o recurso do ex-dependente químico, a 4ª Turma do TRT de Minas acompanhou o voto da desembargadora Denise Alves Horta, que pontuou: “Não há vínculo de emprego entre o dependente químico e a clínica de recuperação que o abrigou para tratamento. Eventuais trabalhos ali realizados durante o internato, como cuidar de porcos, da horta e realizar capina esporádica, tiveram cunho terapêutico e ocupacional, em benefício da reabilitação da saúde do interno”. A sentença foi confirmada integralmente pelo TRT mineiro.

[b]Fonte: TRT 3ª Região[/b]

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