A novela do horário nobre da Rede Globo é um elogio à infidelidade e quer fazer crer que a sociedade endossa a traição. Nela a mola do dia a dia é trair. Amar é trair. O certo é trair. O que está em jogo na crítica ao festival de traições de “Viver a Vida” não são posições moralistas, mas, isso sim, o elogio à perversidade.

Está longe de ser a regra, mas pode acontecer de um médico apaixonar-se por uma paciente. Então, de duas, uma: ou ele se centra em sua condição de especialista e técnico, respeita a ética profissional e tira a moça da cabeça, ou a encaminha a algum colega para seguir com o tratamento. Esse é o procedimento recomendado pela Organização Mundial da Saúde e exigido pelo Conselho Federal de Medicina no País. Mais raro ainda é médico e paciente descobrirem sentimentos amorosos concomitantes e recíprocos, embora haja um ou outro caso que virou notícia, deu em casamento e o casal foi viver a vida – a vida real.

Mas há outro “Viver a Vida”, esse na televisão e no horário nobre, que está na novela da Rede Globo escrita por Manoel Carlos. Nela, a mola do dia a dia é trair. Amar é trair. O certo é trair. E o affair entre médico e paciente se torna mais esquisito e leviano porque alimenta não um triângulo amoroso próprio dos folhetins, mas, isso sim, um polígono de traições que o novelista, aos 77 anos, decidiu impor ao telespectador. Só há libido na trama se houver traição. Em “Viver a Vida”, o termômetro desse conturbado universo do desejo bate nos 40 graus do absurdo quando estão na tela a personagem Luciana, uma cadeirante interpretada por Alinne Moraes, e o personagem doutor Miguel, papel desempenhado pelo ator Mateus Solano – além do médico, ele também interpreta na novela o seu irmão gêmeo, o arquiteto Jorge.

Não bastasse a escorregada do doutor no campo da ética profissional, quis Manoel Carlos, ainda, que os dois personagens fossem comprometidos com outros parceiros. Ou seja: Miguel trai uma personagem que sofre de bulimia alcoólica e Luciana trai o próprio irmão de Miguel. Deu? Tem mais. Mais traição e mais medicina. A médica Ariane (interpretada por Christine Fernandes) está apaixonada pelo marido de uma paciente com câncer.

O que está em jogo na crítica ao festival de traições de “Viver a Vida” não são posições moralistas, mas, isso sim, o elogio à perversidade. Ainda que se force a barra e se reconheça na doente um sentimento de extremo altruísmo nos momentos em que ela incentiva o marido a se atirar nos braços da médica, tanto ela, médica, quanto ele, marido, portam-se de forma essencialmente egoísta – na verdade, os três vivem um perverso jogo de sentimentos ambíguos e projetados, característicos da traição. Fica claro, por exemplo, que os “pombinhos-corvinhos” estão somente à espera do falecimento da enferma para dividir a cama. A dela. Entre outros personagens, essa espera inexiste: o protagonista Marcos (José Mayer) está traindo Helena (Taís Araújo) com a própria amiga dela, Dora (Giovanna Antonelli), que é hóspede na casa dos dois. Dora, por sua vez, engana o namorado, Maradona – tanto que está grávida e não sabe quem é o pai. A ode à traição e confusão não para aí: Helena também trai o marido com o personagem Bruno (Thiago Lacerda). Mais uma vez, deu? Tem mais: o advogado Gustavo (Marcello Airoldi) passa para trás a sua mulher, Betina (Letícia Spiller), saindo com a prima dela, a jornalista Malu (Camila Morgado). Esses casos, somados a outros tantos de infidelidade, talvez deixassem envergonhados os dramaturgos William Shakespeare de “Hamlet” e Nelson Rodrigues de “Perdoa-me por me traíres”.

Há, porém, um oceano a separá-los de Maneco, carinhoso apelido dado ao novelista: eles jamais chegaram nem chegariam a tal ponto de banalidade. Na novela, trair e ser traído é o ato mais normal do mundo e ela pressupõe que a sociedade adote o adultério como padrão regular de comportamento. Com certeza, “Viver a Vida” traiu a si mesma: os índices do Ibope despencam. É a pior audiência do horário nos últimos dez anos (média de 34,7 pontos na Grande São Paulo). A professora de dramaturgia da Universidade de São Paulo Renata Pallottini acredita que o excesso de relações extraconjugais afaste mesmo o público: “Pode ser que uma boa parte da audiência esteja reagindo a essas manifestações de leviandade.” Manoel Carlos garante que “esse tipo de comportamento é bem mais comum do que pode parecer”.

Estudo da Universidade Federal do Rio de Janeiro mostra que 60% dos homens e 47% das mulheres se confessam infiéis. A julgar pela inconstância dos personagens de Maneco, no entanto, ele deve crer que esses índices são bem maiores: em pouco mais de 120 capítulos, o novelista pôs na tela 13 casos de infidelidade. Para a psicóloga carioca Ana Maria Fonseca Zampieri, a novela está “descortinando a questão da infidelidade e mexendo com a família porque traição é um tema tabu”. Ela adverte, no entanto, para o risco das generalizações: “Muitos homens e mulheres morrem fiéis.”

Em “Viver a Vida”, esses homens e mulheres leais são espécie em extinção. Na trama existe até uma defensora da prática do adultério: a personagem Alice (Maria Luisa Mendonça), que dá força ao romance de Helena e seduziu o namorado da filha de uma amiga. Taís Araújo, que faz Helena, defende a sua personagem: “Ela se encantou por Bruno porque esse homem representa tudo o que uma mulher pode perder em seu casamento: a liberdade e o direito de trabalhar.” Só que Helena não sabe que Bruno é filho de seu marido com outra mulher. Resta saber como reagirá quando descobrir isso. Traidoras e traidores gostam de trair, mas será que gostam igualmente de se verem traídos? Os gregos, sobretudo em “Medeia” (Eurípides, século V a.C.), trataram de forma genial – e definitiva – a dramaticidade dessa questão-limite e não achavam que viver a vida fosse ludibriar a confiança alheia.

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Por Antonio Carlos Prado

Fonte: Revista Isto É – Edição 2101

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