A Bíblia começou a ser escrita há mais de 3 000 anos, e desde seu início se revelou um livro sem rival no poder de moldar culturas e civilizações. Essa força permanece inesgotável: ler a Bíblia é essencial para entender o mundo do qual viemos e em que vivemos hoje.

“No sexto mês, o anjo Gabriel foi enviado por Deus a uma cidade da Galileia, chamada Nazaré, a uma virgem desposada com um varão chamado José, da casa de Davi; e o nome da virgem era Maria. Entrando onde ela estava, disse-lhe: ‘Alegra-te, cheia de graça, o Senhor está contigo!’. Ela ficou intrigada com essa palavra e pôs-se a pensar qual seria o significado da saudação. O Anjo, porém, acrescentou: ‘Não temas, Maria! Encontraste graça junto de Deus. Eis que conceberás no teu seio e darás à luz um filho, e tu o chamarás com o nome de Jesus. Ele será grande, será chamado o Filho do Altíssimo, e o Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, seu pai; ele reinará na casa de Jacó para sempre, e o seu reinado não terá fim’. Maria, porém, disse ao Anjo: ‘Como é que vai ser isso, se eu não conheço homem algum?’. O Anjo lhe respondeu: ‘O Espírito Santo virá sobre ti e o poder do Altíssimo vai te cobrir com a sua sombra; por isso o Santo que nascer será chamado Filho de Deus. Também Isabel, a tua parenta, concebeu um filho na velhice, e este é o sexto mês para aquela que chamavam de estéril. Para Deus, com efeito, nada é impossível’. Disse então Maria: ‘Eu sou a serva do Senhor; faça-se em mim segundo a tua palavra!’. E o Anjo a deixou.”

Extraída do Evangelho de São Lucas, a passagem acima é uma das mais belas e conhecidas daquele que é, por sua vez, o livro mais lido e célebre de todos os tempos – a Bíblia. Nela, é narrada a Anunciação, episódio seminal do Novo Testamento, a continuação cristã do livro sagrado dos judeus. Lucas nasceu no primeiro século de nossa era, em Antióquia, onde hoje é a Síria, e nunca chegou a conhecer Jesus: foi discípulo de Paulo, o grande disseminador da palavra de Cristo no mundo não judaico. Mas seu Evangelho é considerado uma obra de envergadura imensurável – e não só porque, ao lado dos Evangelhos de Mateus, Marcos e João, ele compõe o coração do Novo Testamento. Várias sumidades da história têm esse médico de origem grega na conta de um dos grandes de sua categoria – um historiador nato, ciente dos detalhes, afeito à precisão e surpreendentemente atento à necessidade de averiguar fatos. A história da qual Lucas faz a crônica está carregada de aspectos místicos: a de como Jesus nasceu de uma virgem, pregou uma mensagem transformadora, realizou milagres que comprovavam estar Ele imbuído do poder de Deus, e então foi perseguido, torturado e crucificado, para no terceiro dia após sua morte ressuscitar e ascender aos céus. Nas mãos desse autor, entretanto, fato e fé se fundem de maneira tão completa que, mesmo para um leitor ateu ou agnóstico, se torna um desafio separá-los.

O trecho em que o anjo Gabriel anuncia a concepção e o nascimento de Cristo é exemplar de seu estilo. Lucas narra o diálogo entre um anjo enviado por Deus – assunto de fé, portanto – e uma jovem. Mas provê data, lugar e circunstâncias, afere outro evento familiar (a gravidez de Isabel) e relata uma discussão sobre a viabilidade biológica da concepção por uma virgem. Só nessa pequena passagem, tem-se uma síntese de uma questão que está no centro da Bíblia. Como, afinal, esse livro escrito no decorrer de mais de 1.000 anos deve ser lido? Como uma transcrição direta da palavra de Deus, segundo creem tantos? Como a palavra divina inserida em um contexto terreno, o da relação com seu Deus de uma cultura que ia atravessando mudanças geográficas, políticas e sociais? Como um livro histórico, tão somente? Ou, conforme querem outros, como uma ferramenta que grupos diversos podem manejar na busca por poder e supremacia? Seria possível imaginar que, passadas tantas dezenas de séculos do advento desse livro, tais questões não mais teriam lugar no mundo moderno. Sucede exatamente o contrário. A religião nunca deixou de ser força motriz dos rumos da história do homem, tampouco fonte de tensão. E, na última década em especial, ela ressurgiu com efeito redobrado no centro do cenário político global. De onde ler a Bíblia – e entender como ler a Bíblia – não é nem de longe um conhecimento periférico na vida do século XXI.

Um nova-iorquino de origem judia, mas nascido em uma família sem nenhuma inclinação religiosa, deu uma contribuição interessante ao debate. Em 2005, o escritor e jornalista A.J. Jacobs decidiu que viveria o ano seguinte fazendo tal e qual a Bíblia manda – tanto o Velho como o Novo Testamentos. Jacobs, que já fizera fama como o autor de The Know-It-All, sobre os doze meses que passara lendo a Encyclopaedia Britannica de ponta a ponta, colecionou experiências estranhas em quantidade suficiente para escrever outro livro, The Year of Living Biblically (O Ano de Viver Biblicamente), lançado em 2007: suou frio para apedrejar um adúltero, como ordena o Velho Testamento, cultivou uma barba que teimava em guardar vestígios de suas últimas refeições e, uma vez que deixou de contar até mesmo aquelas mentirinhas sociais que tanto ajudam a civilização, passou por malcriado em mais de uma ocasião. O livro, claro, é parte troça e golpe publicitário. Mas é também um curioso experimento de, digamos, teologia aplicada: é possível viver, nos dias de hoje, como se viveu 3 200 anos atrás, o período em que se estima que a Bíblia começou a ser escrita?

Vários ramos religiosos, sobretudo entre os judeus e os evangélicos, acham que sim: pode-se e deve-se viver exatamente como a Bíblia prescreve. No entender dessas correntes, o texto sagrado foi recebido diretamente de Deus e tem, portanto, de ser aceito de forma literal, sem interpretações nem relativizações. Mas Jacobs, ainda que por vias tão mundanas, provou um ponto relevante. Demonstrou que mesmo aqueles que acreditam que nada se acrescenta nem se subtrai à Bíblia fazem escolhas sobre seus ensinamentos. Caso contrário, só para ficar no exemplo mais prosaico, o noticiário estaria cheio de episódios de apedrejamento de adúlteros e adúlteras. Não está, porque não há comunidade religiosa judaica ou cristã que endosse tal prática, hoje considerada bárbara (e isso significa, sim, relativizar e interpretar). Também não se sabe de mulheres que tenham tido uma mão cortada por agarrar as partes pudendas de um homem para defender o marido em uma briga – como está dito em um dos volumes do Velho Testamento, o Deuteronômio. Até porque, convenha-se, a manobra não deve ser das mais fáceis.

Exemplos como esses são extremos – e vulgares, claro. Servem apenas para ilustrar com cores berrantes um argumento sério: o de que ler a Bíblia ao pé da letra não significa apenas lidar com os descompassos provocados por tradições que mudaram, sumiram ou ofendem o conceito contemporâneo do que é ser justo e civilizado. O primeiro problema é outro: o que é o “pé da letra” na Bíblia? Em seu excelente livro A Arte da Narrativa Bíblica, o pesquisador americano Robert Alter, da Universidade da Califórnia em Berkeley, dedica-se a explicar que muito do que a Bíblia quer comentar está nas suas entrelinhas. Só para começar a conversa, Alter cita o estilo radicalmente contrastante de dois capítulos consecutivos do Gênese. No primeiro, o patriarca Jacó vê a túnica ensanguentada de seu filho José, presume que ele está morto e entrega-se a manifestações hiperbólicas de luto. O capítulo seguinte trata de uma situação similar, mas é de uma secura severa. Relata que outro patriarca, Judá, teve três filhos – Er, Onã e Selá. Sem mais firulas, informa que Er “desagradou a Deus”, e Ele lhe tirou a vida. O mesmo aconteceu com Onã, que, obrigado a tomar o lugar do irmão na cama da cunhada, a fim de gerar um filho, interrompia o coito e “derramava sua semente no chão” (daí o termo “onanismo” para a masturbação). Deus tomou a Judá dois filhos, mas o texto não traz menção a nenhuma emoção que o pai porventura tenha sentido. Jacó tão teatral, e Judá tão frio: para Robert Alter, só o fato de a Bíblia justapor duas reações assim diversas já é um juízo sobre esses dois personagens importantes das Escrituras. Mas esse juízo não está no “pé da letra”: está sugerido em um recurso estilístico sutil.

Muitos outros estudiosos se dedicam a mostrar como a forma, o estilo e a escolha de palavras são decisivos no que a Bíblia diz. E mais essencial ainda é o contexto em que ela diz o que diz. O judaísmo e seu descendente (e dissidente), o cristianismo, são fundamentalmente religiões narrativas – muito mais do que qualquer outra das grandes religiões, monoteístas ou não. Vem daí muito da força e da influência sem paralelo da Bíblia sobre o pensamento de uma parcela grande da humanidade, aquela abrangida no que se costuma chamar de civilização judaico-cristã: sem que se faça aqui nenhum julgamento, de natureza alguma, sobre o papel de cada uma das religiões na história dos homens, é um fato da ciência sociopolítica que o judaísmo e o cristianismo tiveram um impacto ilimitado nos rumos dessa história. Porque contam, entre todas as fés, com o mais extenso, detalhado, profundo e variegado plano jamais disposto para os seguidores de uma divindade, do surgimento do mundo ao seu fim, ou sua transmutação total no reino de Deus: a Bíblia, um conjunto vasto não apenas de ensinamentos, ditames e reflexões, mas de histórias arraigadas em nossa cultura. Para ateus e agnósticos, essa é uma razão para ler a Bíblia: para descobrir por que mesmo quem não crê compartilha a mesma herança que os que creem. É como se a Bíblia e a tradição que ela carrega fossem, enfim, o DNA da civilização ocidental: crer ou não crer corresponde àquela porcentagem infinitesimal de diferenças genéticas que nos separam – todo o resto, ou 99% dos genes, são comuns a todos nós.

Quase tudo na Bíblia é uma história, um “caso”, um relato, um testemunho. Mesmo naqueles livros do Velho Testamento que são, por assim dizer, manuais de instruções, como Levítico e Números, as injunções vêm na forma de historietas. Os Evangelhos são também isso: relatos sobre a passagem de Jesus sobre a Terra e sobre Sua missão. De imensa relevância ainda é o fato de que – ao contrário, digamos, do Corão – a Bíblia não tem um autor único nem foi escrita em um período de tempo delimitado. Bem longe disso: ela abrange algo como doze séculos de produção e vários idiomas (não bastasse isso, já foi traduzida para 2.400 línguas, entre as quais idiomas indígenas brasileiros). Combina uma miríade de formas narrativas distintas e envolve um sem-número de autores, muitos dos quais nunca virão a ser identificados, mas que se sabe provenientes das origens mais distintas, de profetas a funcionários de governo e pescadores. Com tantos cozinheiros na mesma cozinha, torna-se sobre-humana a tarefa de tentar decifrar a receita.

Há casos em que a Bíblia de fato se assume como a palavra recebida diretamente de Deus. Por exemplo, nas conclamações divinas ao povo eleito, muito comuns no Antigo Testamento, em que Ele exalta, pune, decide destinos e mostra aquilo que espera de seus seguidores ou o que não vai tolerar neles. Mas, em outros trechos essenciais, como nos Salmos, são já homens comuns (ou, vá lá, nem tanto, já que muitos dos Salmos são atribuídos ao rei Davi) que se dirigem a Deus. São frequentes também os simples registros de eventos, que podem ter certo teor mundano (muito espaço é dedicado a detalhar as linhas genealógicas, de grande relevância numa sociedade arcaica, ainda dividida em clãs) ou vir crivados de misticismo (como nos testemunhos dos milagres de Jesus). Outro caso: as belíssimas cartas do apóstolo Paulo, parte integrante do Novo Testamento, que delineiam os fundamentos da religião cristã na forma como é seguida até hoje, são comunicações de homens para homens. Há poemas de grande quilate, como o Cântico dos Cânticos, e o caso mais difícil de classificar – o delirante e perturbador Livro das Revelações, em que o apóstolo João descreve o apocalipse. Tudo o que a Bíblia contém trata em algum nível da relação do homem com Deus. Mas nem tudo nela pode ser descrito como a palavra direta de Deus.

Bíblia, enfim, é um mosaico intrincado no que toca às possibilidades de interpretação. Até porque, surpresa, ela não trata em miúdos de alguns dos temas em que é invocada com grande insistência. Hoje, é comum que as Bíblias evangélicas mais completas contenham um índice temático denominado “concordância.” Procura-se uma palavra – digamos, “graça”, ou “pobreza” – e o índice relaciona todas as ocasiões em que ela aparece em todo o imenso volume de texto. Isso porque, como já se disse, seguir a Bíblia à risca é fundamental para muitos dos ramos evangélicos, e a concordância ajuda-os a informar-se sobre o que a Bíblia tem a dizer a respeito de cada aspecto de sua vida e fé (os católicos, por contraste, apoiam-se mais na doutrina moral delineada pela Igreja). Tente-se procurar na concordância, entretanto, o termo “aborto”: ele não constará. A Bíblia não trata de forma explícita ou direta da interrupção deliberada da gestação em nenhum trecho de seus milhares de páginas. Há possíveis alusões, como no capítulo 30 do Deuteronômio, muito usado pelos grupos antiaborto: “Hoje tomo o céu e a terra como testemunhas contra vós; eu te propus a vida ou a morte, a bênção ou a maldição. Escolhe, pois, a vida, para que vivas tu e a tua descendência, amando ao Senhor teu Deus, obedecendo à sua voz e apegando-te a ele”. Mas alguns pesquisadores, inclusive evangélicos, contradizem essa leitura. Segundo eles, o trecho é na verdade uma exortação aos israelitas em fuga do Egito para que não se desviem do caminho do Senhor. Como decidir, então, quem está certo?

A única resposta segura é que não há como decidir. A Bíblia moldou e amalgamou civilizações e manteve-se um texto obrigatório porque é de fato inesgotável. É uma, mas pode ser infinitas – até no seu aspecto mais concreto, o do sem-número de recortes que o mercado editorial encontra nela. Numa incursão a uma livraria (se for na internet, então, nem se fala), podem-se achar não apenas as edições canônicas de cada uma das religiões que seguem o texto sagrado – judaicas, católicas, luteranas, evangélicas, anglicanas, ortodoxas e assim por diante –, como Bíblias talhadas para virtualmente qualquer gosto. Há Bíblias para quem não conhece a Bíblia, com títulos como Entendendo a Bíblia em 30 Dias e O Guia do Completo Idiota para a Bíblia. Há Bíblias para meninos e para meninas. Para mulheres e para quem quer só lições de vida. No estilo do mangá, o quadrinho japonês, ou na pena do quadrinista underground Robert Crumb. Em gíria cockney da zona leste de Londres (com o selo de aprovação da Igreja Anglicana) ou em linguagem simples, no vozeirão de Cid Moreira.

á uma Bíblia, inclusive, que desempenhou papel de imensa relevância no que viria a se tornar a língua franca do mundo moderno, o inglês. Trata-se da versão conhecida como Bíblia do Rei James, encomendada por James I a um grupo de estudiosos em 1604, meses após sua ascensão ao trono, e concluída em 1611. Conciliar as tensões de seu tempo e consolidar a Igreja Anglicana como a fé da nação eram os requisitos a que a tradução pedida a seus sábios deveria atender. Eles, contudo, foram além: produziram um dos mais consumados exemplos de prosa poética que se conhece – uma prosa que arrebata pela beleza, inspira pelo calor e se coloca à disposição de quem a ouve pela clareza (diz a lenda que William Shakespeare deu uma mãozinha ao colegiado de estudiosos). Lida dos púlpitos para os fiéis, ou em casa por quem aprendera a fazê-lo (pouca gente, naquele tempo), a Bíblia do Rei James fez toda uma nação tomar contato com a escrita bela e benfeita. Não admira, assim, que tenha a reputação de transparecer uma inspiração divina.

Não importa qual seja a versão, duas coisas são cristalinas e constantes na Bíblia. A primeira é que cada uma das partes desse texto sagrado, sejam elas as aceitas pelos cristãos ou pelos judeus, é como que um tijolo no edifício que se pode chamar de o plano de Deus para os homens. E a segunda é que cada um desses tijolos traz alguma marca, mais ou menos profunda, do tempo em que foi moldado: a Bíblia é singular entre os textos sagrados também por ser uma crônica extensa e detalhada da civilização à qual ia dando forma. É, em certo sentido, uma reportagem. Uma reportagem colorida pelas crenças típicas da época em que cada trecho foi escrito (como na ideia de que um patriarca como Matusalém possa ter chegado aos 969 anos de idade, como está dito no Gênese), ou moldada para inculcar esta ou aquela impressão no leitor. Mas até nesses ornamentos, por assim dizer, é uma crônica dos povos que a escreveram e da maneira como viviam e pensavam.

Um exemplo comezinho: o Velho Testamento diz que não se devem consumir a carne de porco ou os crustáceos, por serem impuros. Assim, os judeus ortodoxos mantêm deles a distância preconizada pelo texto. Vários estudiosos, entretanto, veem em interditos como esse uma tentativa de organizar o cotidiano das pessoas comuns. Dezenas de séculos atrás, quando as condições de obtenção e conservação das proteínas animais eram precaríssimas, carnes como a suína e a dos frutos do mar, que se deterioram com grande velocidade, constituíam um problema grave de saúde. Que maneira mais eficaz teriam os líderes de uma comunidade de evitar os envenenamentos alimentares, especulam esses estudiosos, do que proibi-los com um veto divino? Ou de, para instituir o hábito de um mínimo de higiene pessoal, ordenar em um texto sagrado que se realizem abluções antes de orar a Deus? Até um dos grandes cismas entre o judaísmo e o cristianismo – o sacramento do batismo, fundamental para os cristãos – teria uma origem socioeconômica clara. Para se purificar e honrar a Deus, os judeus tinham de peregrinar até o Templo de Jerusalém e ali oferecer sacrifícios de animais como pombas e cordeiros. Para uma população em geral muito pobre, como a da Palestina do século I a.C., o sacrifício começava, na verdade, com o esforço de juntar os meios materiais para a viagem e a compra dos animais. O batismo, que Jesus conheceu no seu encontro com São João Batista, que o mergulhou no Rio Jordão, não acarreta (ou não acarretava, quando ainda não era acompanhado de festinhas ou festanças, como hoje) custo nenhum: é um ato que pode ser realizado em qualquer lugar e requer apenas água, algumas gotas de óleo e um sacerdote para que se estabeleça a comunicação com Deus e se peça o ingresso em seu povo, renunciando-se ao mal por meio apenas de um testemunho oral. Simples e acessível – e não por acaso um sucesso entre várias parcelas da população que sentiam que a classe sacerdotal e os ritos se interpunham entre elas e Deus, em vez de aproximá-los.

Um exemplo comezinho: o Velho Testamento diz que não se devem consumir a carne de porco ou os crustáceos, por serem impuros. Assim, os judeus ortodoxos mantêm deles a distância preconizada pelo texto. Vários estudiosos, entretanto, veem em interditos como esse uma tentativa de organizar o cotidiano das pessoas comuns. Dezenas de séculos atrás, quando as condições de obtenção e conservação das proteínas animais eram precaríssimas, carnes como a suína e a dos frutos do mar, que se deterioram com grande velocidade, constituíam um problema grave de saúde. Que maneira mais eficaz teriam os líderes de uma comunidade de evitar os envenenamentos alimentares, especulam esses estudiosos, do que proibi-los com um veto divino? Ou de, para instituir o hábito de um mínimo de higiene pessoal, ordenar em um texto sagrado que se realizem abluções antes de orar a Deus? Até um dos grandes cismas entre o judaísmo e o cristianismo – o sacramento do batismo, fundamental para os cristãos – teria uma origem socioeconômica clara. Para se purificar e honrar a Deus, os judeus tinham de peregrinar até o Templo de Jerusalém e ali oferecer sacrifícios de animais como pombas e cordeiros. Para uma população em geral muito pobre, como a da Palestina do século I a.C., o sacrifício começava, na verdade, com o esforço de juntar os meios materiais para a viagem e a compra dos animais. O batismo, que Jesus conheceu no seu encontro com São João Batista, que o mergulhou no Rio Jordão, não acarreta (ou não acarretava, quando ainda não era acompanhado de festinhas ou festanças, como hoje) custo nenhum: é um ato que pode ser realizado em qualquer lugar e requer apenas água, algumas gotas de óleo e um sacerdote para que se estabeleça a comunicação com Deus e se peça o ingresso em seu povo, renunciando-se ao mal por meio apenas de um testemunho oral. Simples e acessível – e não por acaso um sucesso entre várias parcelas da população que sentiam que a classe sacerdotal e os ritos se interpunham entre elas e Deus, em vez de aproximá-los.

Fonte: Revista Veja – Edição 2144 / 23 de dezembro de 2009

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