Uma mulher, indignada, em frente à câmera de seu smartphone questiona “De onde foi que vocês tiraram isso que para poder servir a Jesus tem que votar em Bolsonaro? Que absurdo é esse? Que absurdo é esse, Igreja? Acorda!”. “Eu estou com vergonha de dizer que sou cristã para não ser confundida […] com uma pessoa que está sendo enganada por pastores”, desabafou. O relato – que já soma mais de 736 mil visualizações no TikTok – é de Paloma Gomes, 35.
A professora de Geografia, que agora trabalha com vendas em Mossoró (RN), frequentava a Igreja Universal do Reino de Deus há quase 15 anos, mas deixou de ir há cerca de um mês porque se cansou do que ela chamou de “sequestro da fé”.
Nas últimas vezes em que foi ao culto, Paloma lembra de ver no telão da igreja, diferentes leis, supostamente tramitando no Congresso Nacional, uma delas, lembrou afirmaram que igrejas seriam proibidas de atrair novos fiéis. Desconfiada, no próprio culto, ela usou seu celular para conferir no Google e viu que se tratava de uma informação falsa. A suposta lei das igrejas é do Rio de Janeiro e, na verdade, trata sobre assédio religioso em repartições públicas.
Influência pastoral
Na semana do primeiro turno, 57% dos eleitores evangélicos que votariam em Bolsonaro acreditavam que Lula fecharia igrejas, caso fosse eleito. O dado é de uma pesquisa da Genial/Quaest. Para Vinicius do Valle, cientista político e curador do Observatório Evangélico, essa aderência se deve à confiança que existe dentro da comunidade religiosa. “Quando você tem um membro que está espalhando esse tipo de coisa, há um acolhimento maior”, afirmou.
Outro fator relevante é a chamada “influência pastoral”. Essa influência é maior entre evangélicos, uma vez que eles frequentam mais as igrejas do que outros grupos religiosos: “O grau de influência pastoral entre os evangélicos é, portanto, ligeiramente mais elevado, o que não significa que os evangélicos se comportam como gado, como rebanho, mas existe uma confiança dentro dessa relação. Portanto, uma fake news ali dentro é mais fácil de ganhar aderência do que se fosse dita por um desconhecido, por outro canal que não tem a mesma confiança, a mesma relação”, sustentou.
Essas informações, porém, muitas vezes não surgem nas igrejas. Magali Cunha, doutora em Ciências da Comunicação e pesquisadora do Instituto de Estudos da Religião, detalhou como funcionam essas redes de desinformação que, muitas vezes, partem de lideranças e figuras no poder:
“Muito desse conteúdo falso mentiroso calunioso vem de lideranças religiosas, […] personagens com muito destaque, pastores midiáticos, personagens do mundo político, Ministros de Estado ligados à fé cristã”.
A partir daí, esses conteúdos se difundem por sites gospels e portais de notícias do mundo evangélico e passam a ser repercutidos mais amplamente.
A demonização do opositor
Nos últimos meses, Paloma viu aumentar o número de cultos em que versículos da Bíblia eram tirados de contexto com o objetivo de “demonizar” o voto em Lula e “santificar” o voto em Bolsonaro: “Tentam encontrar uma forma de colocar aquilo ali dentro da palavra de Deus”.
Em um telão, mais de uma vez, Paloma assistiu nos cultos a vídeos com informações falsas sobre aborto, fechamento de igrejas, banheiros unissex, tais quais os que têm circulado nas redes sociais. “Todas essas fake news, a Igreja também coloca lá dentro”, afirmou. “Pegaram um vídeo de Lula fora de contexto, Lula dizendo que o Deus de Bolsonaro não era o mesmo Deus dele e colocaram lá na Igreja”, contou ela, que passou a ver os conteúdos também nos grupos de evangelização no WhatsApp e nos perfis de pastores nas redes sociais.
Magali Cunha explicou ao Yahoo! Notícias que essa demonização de candidatos é utilizada, sobretudo, por mexer com as crenças e com a fé dos eleitores. “Isso tem um efeito muito profundo porque as pessoas, há muitos anos nas igrejas, em especial as evangélicas, assimilam muito conteúdo associado à cultura gospel do inimigo, das músicas que falam de guerra espiritual, de combate ao inimigo, e agora os inimigos ganham nome nas eleições, […] então vai ser um partido político, vai ser um candidato, tudo isso personificado nessas mentiras que circulam”, detalhou.
Paloma viu a situação ficar insustentável após perceber que a política não saía da pauta das celebrações, o que a fez se sentir “praticamente expulsa” de sua igreja. Mesmo frequentando hoje outra denominação onde não se fala sobre o assunto, ela sente saudades de como as coisas eram: “O que mais me dói mesmo é que eu sinto falta da igreja, de como era antes. Dos trabalhos sociais, dos momentos bons que eu passei lá dentro. Eu cheguei doente na igreja, fui curada. Eu me sinto desamparada hoje”, compartilhou. “Foram anos e anos naquele lugar e de repente você não tem mais. E não tem mais como, eu não tenho mais cara para ir. É muito difícil, é um sequestro da fé”, lamentou.
Da pressão ao afastamento
A irmã de Paloma, Maria Gomes, 37, há pouco mais de 15 dias deixou a Igreja Batista da Lagoinha, que já frequentava há dois anos em Mossoró (RN). Assim como sua irmã, Maria se sentiu constrangida com a pressão sobre o voto.
A Igreja Batista da Lagoinha tem unidades nos Estados Unidos e Canadá comandadas por André Valadão, que, na quarta-feira passada (19), publicou um vídeo mentindo sobre ter recebido uma intimação do TSE (Tribunal Superior Eleitoral), determinando que ele se retratasse a respeito de mentiras contadas sobre Lula.
Ao resgatar o período anterior às eleições, Maria contou que “era normal, não se falava de política”. Antes do primeiro turno, porém, os cultos passaram a falar sobre política. Segundo ela, “induzindo a gente a votar em Bolsonaro”.
Vinicius considera que esse aumento, especialmente quando comparado com outras campanhas eleitorais, se deve à maior relação de algumas lideranças das principais denominações pentecostais com Jair Bolsonaro. “O conjunto dessas coisas faz com que a gente tenha uma campanha com uma importante é muito forte dos temas religiosos e uma procura muito grande por esses evangélicos que vêm mostrando uma relação muito próxima com o bolsonarismo”, avaliou.
Certa vez um pastor usou o púlpito para falar sobre a suposta ideologia de gênero, contou Maria: “Disse que o PT tinha mais de 70 ideologias de gêneros”. Nesse momento, ela sentiu raiva e quis se levantar, mas acabou ficando até o final. No dia seguinte, Maria voltou à igreja, apenas para cuidar das crianças com as quais fazia atividades, e, então, parou de frequentar a denominação.
O Yahoo! Notícias solicitou esclarecimentos a Igreja Universal do Reino de Deus, que afirmou que “nenhum fato semelhante a esses” ocorreu em seus templos em Mossoró (RN). Já a Igreja Batista da Lagoinha, citada nesta reportagem, não retornou até a publicação desta matéria. O texto será atualizado caso algum posicionamento seja encaminhado.
Contra a instrumentalização da fé
“Em 2018, a gente percebeu claramente a força das fake news, mas não havia essa interferência direta no voto das pessoas”, observou Valéria Zacarias, coordenadora nacional da Frente de Evangélicos. Hoje, porém, “a gente percebe que pastores comprometidos com o Bolsonaro, não são todos os pastores, […] começaram a entrar em uma rota de colisão e de opressão”, completou.
Desde 2016, a Frente atua no campo da política e dos direitos humanos, contra a instrumentalização da igreja e da fé evangélica. Dentre as diversas frentes de atuação nas eleições, Valéria explicou que o grupo também atua no combate às fake news: “A gente tem um programa de rádio, que passa em quase 40 estações do país. Nesse programa, a gente tem um quadro para desmontar fake news”.
Magali defende que os conteúdos informativos devem trabalhar com uma linguagem específica dos grupos religiosos, assim como faz o Coletivo Bereia, o qual ela integra. Isso porque isso possibilita que o conteúdo atinja o público-alvo. Além disso, ela identifica como essencial trabalhar com um processo educativo, que alcance essas comunidades e que possa explicar o que são fake news.
Em outra linha de atuação, a Frente de Evangélicos também conta com um observatório de crimes eleitorais em igrejas, criado em parceria com o Pacto pela Democracia. O observatório recebe as denúncias de fiéis e, com o apoio de um escritório de advocacia, as encaminha para o TSE. Em igrejas, é proibido qualquer tipo de campanha eleitoral, conforme a Lei das Eleições, nº 9.504, de 1997.
Valéria afirmou que o grupo recebe casos de lideranças religiosas usando o púlpito para disseminar fake news, mas que há também pastores que denunciam a perseguição de suas denominações. O grupo também recebe e encaminha essas denúncias.
O Yahoo! Notícias questionou a assessoria de imprensa do TSE sobre as medidas que o Tribunal vem tomando para combater a disseminação de fake news em espaços religiosos, mas não obteve resposta até a publicação desta matéria.
Fake news a contragosto
No interior de São Paulo, João*, evangélico há mais de 20 anos, frequenta uma Igreja Batista onde não se fala sobre política. Para evitar problemas, o grupo de WhatsApp era bloqueado e apenas administradores poderiam enviar mensagens: “Ele era basicamente um grupo de avisos, […] justamente porque, no passado, a gente já teve problemas com o envio de muita mensagem muito duvidosa”.
Na pandemia, porém, o cenário mudou. O grupo de Whatsapp que era fechado, foi aberto para que as pessoas pudessem trocar apoio. O pastor da igreja de João – que também é servidor da Justiça Eleitoral – não entra em questões políticas e desincentiva os fiéis a tratarem sobre isso no grupo da igreja. Os pedidos reiterados, contudo, não evitaram situações de mal-estar: “Várias vezes durante este ano houve atos falhos, principalmente por parte dos mais idosos, que eu acho que, como eles fazem disparo de mensagens em massa, em grupos de transmissão, eles também acabam mandando para a igreja por engano”.
Além de vídeos com falsos argumentos sobre fraude nas urnas, João classificou alguns dos conteúdos enviados como “muito ofensivos”. Ele se recorda de um que dizia: “Ah, agora eu quero ver o que essa cambada de vagabundo vai fazer com os nossos votos”. Houve, até mesmo, mensagens falando sobre prender servidores da Justiça Eleitoral. “Isso gerava constrangimentos óbvios, porque o pastor dessas pessoas era um desses que eles estavam xingando”, constatou.
João acredita que mesmo em sua igreja, onde não há pressão política para votar em determinado candidato, “as pessoas estão, de alguma forma, enfiadas em bolhas cristãs bolsonaristas em geral”.
O fim do diálogo
Ana* compartilhou que há mais de 30 anos frequenta uma Igreja Batista em Paulo Afonso (BA). Embora nenhum pastor tenha abordado questões políticas diretamente, ela se incomoda com o comportamento de membros e obreiros. Diariamente, Ana recebe mensagens privadas em seu WhatsApp com conteúdos associando a esquerda ao satanismo, ao fechamento de igrejas e a banheiros unissex para crianças.
Nas últimas eleições, ela lembra de ter recebido fake news, “mas de forma moderada”. Em 2022, sente que, ao rebater qualquer informação, sua fé é questionada: “É colocar em xeque a sua fé, no que você crê. E te induzindo a mudar de voto, mudar o que você pensa”, queixou-se.
Para ela, qualquer mensagem deve ser conferida, independentemente de quem a envie: “pode ser do meu grupo de igreja, pode ser do meu marido, pode ser dos meus filhos, eu vou lá e pesquiso a fonte para ver se realmente isso acontece”. Esse senso crítico não a deixou se enganar pelas fake news que tem recebido de companheiros da igreja. Ao rebater as informações falsas, porém, ela passou a ser vista de maneira diferente.
Essa impossibilidade de se contrapor incomodou Ana. “Você não pode hoje mais dizer o que tá certo, o que tá errado. Você não pode ter voz. Você, muitas vezes, tem que silenciar para não arrumar confusão. Isso começou a me preocupar”.
Ela defende o diálogo e a democracia com base no que aprendeu em sua vida espiritual:
“Cristo é minha referência de amor […] quando ele esteve aqui, ele acolheu, ele pôde sentar, ouvir, dialogar, acolher as pessoas e deixar que as pessoas tomassem a decisão. Ele não forçou a nada, ele fez refletir”. “A gente tem que ir atrás desse espírito de comunhão, de democracia, de liberdade”, concluiu.
Como denunciar assédio e perseguição nas igrejas?
É possível relatar o assédio eleitoral diretamente ao TSE por meio do aplicativo Pardal disponível para em aparelhos Andoid ou IOS. As denúncias também podem ser acompanhadas online, sem a necessidade de baixar qualquer aplicativo.
Já a Frente de Evangélicos, recebe denúncias por meio de seu WhatsApp. Os contatos tanto para fiéis quanto para pastores são disponibilizados em suas redes sociais.
*Nomes alterados a pedido dos entrevistados
Fonte: Yahoo! Notícias – Camila Xavier