“Quando a vida começa?” A resposta para questão será debatida em audiência pública convocada pelo Supremo Tribunal Federal. Pela primeira vez em sua história, o STF realizará audiência pública para ouvir especialistas antes de julgar o mérito de uma ação.
O tema em foco é o uso de células-tronco de embriões humanos em pesquisas e terapias, dispositivo previsto na Lei de Biossegurança, aprovada em 2005.
A audiência está marcada para o dia 20 de abril e foi convocada pelo ministro Carlos Ayres Britto, relator da ação direta de inconstitucionalidade (Adin) movida pelo procurador-geral da República na época, Claudio Fonteles.
A Lei de Biossegurança foi aprovada no Congresso em 2005, após um debate entre setores da sociedade. Ela permite o uso de células-tronco de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro e não utilizados, desde que sejam inviáveis ou congelados há mais de três anos, com o consentimento dos genitores. O governo já liberou R$ 11 milhões para o financiamento de pesquisas feitas em instituições brasileiras.
No entanto, na Adin, o procurador argumenta que “o embrião é um ser humano na fase inicial de sua vida”, que começaria na fecundação. Desse modo, ele considera um crime o uso dessas células e cita o artigo 5º da Constituição, que garante a “inviolabilidade do direito à vida”. Fonteles é ligado à Igreja.
Carlos Ayres Britto afirmou que decidiu pela audiência pública porque a ação movida pela Procuradoria poderá ter repercussões em vários setores como bioética, medicina, filosofia e religião. “No fundo, a causa em si justifica a convocação da audiência. Homenageamos o pluralismo”, afirmou.
“Estou de espírito aberto. Na minha cabeça sempre há uma janela para o mundo circundante”, disse. Ele afirmou que vai preparar o julgamento da ação após a audiência. A expectativa nos meios jurídicos é a de que o STF manterá a permissão do uso das células-tronco para pesquisas e terapias. A avaliação é de que, nos últimos anos, com a mudança da composição do tribunal, o Supremo está menos conservador.
Sem absolutos
O ministro convocou um grupo de 17 especialistas (veja no quadro ao lado), entre pesquisadores, médicos e advogados que trabalham com células-tronco ou acompanham o debate ético e teórico sobre o tema. Além deles, serão ouvidos outros nove pesquisadores, autores de trabalhos nos quais Fonteles se baseou para redigir a Adin e contestar a lei.
“O que a comunidade científica pode fazer é informar sobre as pesquisas. Até porque acredito que boa parte da discussão ética foi feita há cerca de 20 anos, quando o Brasil permitiu a técnica da fertilização in vitro”, explica Luiz Eugênio Araújo de Moraes Mello, pró-reitor de graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e um dos convidados.
Sobre a discussão em torno do início da vida, proposta por Fonteles, Mello afirma que isso pode ser entendido sobre múltiplos aspectos, e que por isso é importante ter dados claros para o debate. “A sociedade quer buscar respostas absolutas, mas elas não existem no mundo. E enquanto você quiser colocar as coisas por esse prisma, ficará paralisado. A ciência não trabalha com o absoluto, trabalha com as possibilidades”, diz.
Estado laico
Stevens Kastrup Rehen, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento, defende o debate racional e científico. “A primeira coisa é lembrar que o Estado é laico. Mesmo no campo da religião, a postura contra a lei vem da visão católica. Na China, por exemplo, não há esse dilema. No judaísmo também não. No budismo também não. Então precisamos ter clareza de idéias e separarmos as coisas.”
A geneticista Mayana Zatz, pró-reitora de pesquisa da Universidade de São Paulo (USP), o importante é a convocação de especialistas renomados. “Todos trabalham com células-tronco e conhecem o tema”, diz.
“O que vai ser definido é um ordenamento jurídico sobre quando começa a vida e a partir de quando o embrião tem direitos constitucionais, o que não existe hoje e tem enorme repercussão, inclusive na polêmica sobre o aborto”, afirma a antropóloga Débora Diniz, especialista em bioética da Universidade de Brasília (UnB).
Os convocados
Mayana Zatz
Profissão: Geneticista
Atividades: É professora-titular da Universidade de São Paulo e presidente da Associação Brasileira de Distrofia Muscular. Atua com aconselhamento genético e estuda células-tronco
Ricardo Ribeiro dos Santos
Profissão: Médico
Atividades: Pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e coordenador científico do Hospital São Rafael (BA). Estuda terapia de células-tronco para doenças degenerativas
Patrícia Helena Lucas Pranke
Profissão: Farmacêutica
Atividades: É professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e da PUC-RS, além de presidente do Instituto de Pesquisa com Célula-Tronco
Moisés Goldbaum
Profissão: Médico
Atividades: É professor do departamento de Medicina Preventiva da USP. Atua na área de saúde coletiva, com ênfase em epidemiologia e desigualdades sociais
Rosália Mendez-Otero
Profissão: Médica pesquisadora
Atividades: É professora-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro; estuda a plasticidade do sistema nervoso e o uso de células-tronco para tratar derrames
Luiz Eugenio Araújo de Mello
Profissão: Médico
Atividades: É pró-reitor de Graduação da Unifesp, vice-presidente da Federação das Sociedades de Biologia Experimental. Atua com células-tronco e fisiologia
Antonio Carlos Carvalho
Profissão: Médico
Atividades: Doutorado em Ciências Biológicas pela UFRJ. Coordenador de pesquisa do Instituto Nacional de Cardiologia Laranjeiras e professor visitante do Albert Einstein College of Medicine, EUA
Débora Diniz
Profissão: Antropóloga
Atividades: É diretora-executiva da ONG Instituto de Bioética, Direitos Humanos e Gênero (Anis) e professora da Universidade de Brasília (UnB)
Lygia da Veiga Pereira
Profissão: Biofísica
Atividades: É professora associada da Universidade de São Paulo, com experiência em genética humana. Foi a primeira a trabalhar com células-tronco embrionárias no País, importadas dos EUA
Marco Antonio Zago
Profissão: Médico
Atividades: É diretor da Fundação Hemocentro de Ribeirão Preto, professor da USP e membro da Academia Brasileira de Ciências. Estuda células-tronco adultas
Tarcísio Eloy P. de Barros Filho
Profissão: Médico
Atividades: Chefe do Departamento de Ortopedia e Traumatologia da USP, é especialista em lesões na coluna e testa terapias com células-tronco
Oscar Vilhena Vieira
Profissão: Advogado especialista em direitos humanos
Atividades: É professor da Escola de Direito da FGV e da PUC-SP e diretor-executivo da Conectas Direitos Humanos
Milena Botelho Pereira Soares
Profissão: Bióloga
Atividades: Ligada à Universidade Estadual de Feira de Santana, à Fiocruz/BA e à Fundação Oswaldo Cruz. Atua com terapia com células-tronco e biotecnologia
Drauzio Varella
Profissão: Médico
Atividades: Dirige, ao longo do Rio Negro, um projeto de bioprospecção de plantas brasileiras para testar no combate a células tumorais malignas e a bactérias resistentes a antibióticos
Stevens Kastrup Rehen
Profissão: Neurocientista
Atividades: Presidente da Sociedade Brasileira de Neurociências e Comportamento e professor da UFRJ, cultivou as primeiras células-tronco embrionárias nacionais após a lei
Radovan Borojevic
Profissão: Biólogo
Atividades: É professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pesquisa regeneração de tecidos, terapia celular, biomateriais e bioengenharia
Esper Abrão Cavalheiro
Profissão: Pesquisador
Atividades: Ex-presidente do CNPq e da CTNBio, é professor-titular da Universidade Federal de São Paulo; com estudos sobre epilepsia e neurologia experimental
O que é vida
Fecundação: Algumas correntes de pensamento, como a
defendida pela Igreja Católica, entendem que a vida começa no momento da fecundação
Sistema nervoso: Baseando-se no conceito do fim da vida, aceito hoje como sendo a morte cerebral, pode-se entender que a vida começa no início da atividade cerebral
Órgãos vitais: Há também quem defenda que a vida começa quando já estão bem desenvolvidos alguns órgãos vitais do feto, o que acontece a partir da 12.ª semana
Fonte: Estadão