A cruz de Bladensburg é um memorial destinado a homenagear os soldados da Primeira Guerra Mundial, situada em Bladensburg, Maryland. | (Foto: Instituto da Liberdade)
A cruz de Bladensburg é um memorial destinado a homenagear os soldados da Primeira Guerra Mundial, situada em Bladensburg, Maryland. | (Foto: Instituto da Liberdade)

João Ozorio de Melo
correspondente da revista Consultor Jurídico nos Estados Unidos

A “Cruz de Bladensburg”, vai ficar onde e como está: em uma área pública, mantida pelos cofres públicos. Um tribunal de recursos de Maryland, nos EUA, entendeu que isso é inconstitucional, porque representa o endosso do governo a uma religião específica — no caso, a cristã. Mas a Suprema Corte discordou, com voto vencido da ministra Ruth Ginsburg.

A cruz de 12,2 metros de altura foi construída em granito e concreto em Bladensburg, Maryland, em 1925, por 49 famílias enlutadas pelas mortes de seus filhos na Primeira Guerra Mundial. Quando as famílias ficaram sem dinheiro para mantê-la, a American Legion assumiu a manutenção do memorial. Em 1930, a responsabilidade passou para um órgão público estadual.

A American Humanist Association, uma organização ateísta, que vem movendo ações contra monumentos religiosos mantidos com dinheiro de todos os contribuintes país afora, moveu mais essa ação contra a Cruz de Bladensburg, alegando que o memorial deveria ser transferido para propriedade particular e mantido por recursos privados.

Um tribunal federal de primeira instância decidiu a favor dos cristãos. Afirmou que a cruz está lá há décadas, sem controvérsias e com proteção de precedentes da Suprema Corte. Para a corte, o memorial tem um propósito secular, no sentido de manter a neutralidade religiosa, sem entrelaçamento excessivo entre governo e religião.

Em decisão por 2 votos a 1, o tribunal de recursos entendeu o contrário: “A exposição engrandece a cruz latina de tal maneira que diz a qualquer observador razoável que o órgão público estadual coloca o cristianismo acima das outras religiões, vendo os cristãos e os americanos em geral como uma coisa só”.

Então veio a decisão da Suprema Corte, na quinta-feira (20/6). Por 7 votos a 2, a corte assumiu o entendimento de que a cruz se tornou secular, essencialmente. O ministro Samuel Alito, que escreveu o voto, afirmou que cruzes cristãs e estrelas de Davi ocupam fileiras e fileiras nos cemitérios onde foram enterrados os soldados que morreram nas guerras e que, na mente das pessoas, é uma maneira de homenagear os mortos. Alito escreveu:

“A cruz é indubitavelmente um símbolo cristão, mas esse fato não deve nos cegar para tudo o mais que a Cruz de Bladensburg veio a representar. Para alguns, o monumento é um lugar de descanso simbólico para os ancestrais que nunca voltaram para casa. Para outros, é um lugar onde a comunidade se reúne e homenageia todos os veteranos por seus sacrifícios pela nação. Ainda para outros, é um marco histórico. Para muitas dessas pessoas, destruir ou desfigurar a cruz, que permaneceu imperturbada por quase um século, não seria neutro e não iria promover os ideais de respeito e tolerância incorporados na Constituição”.

“A cruz se tornou um marco proeminente da comunidade e sua remoção ou alteração radical, nesse momento, seriam vistas por muitos como uma manifestação de hostilidade contra a religião, o que não tem lugar em nossas tradições da Cláusula do Estabelecimento [Establishment Clause — a cláusula da Constituição que proíbe o estabelecimento de uma religião pelo Congresso]”.

“Ao contrário das alegações dos demandados, não há prova de intenção discriminatória na seleção do design do memorial ou na decisão do órgão de Maryland de mantê-lo. A cláusula sobre a religião na Constituição objetiva promover a sociedade na qual as pessoas de todas as crenças vivem juntas em harmonia e a presença da Cruz de Bladensburg na terra onde ela está por muitos anos é totalmente consistente com esse objetivo”.

Em voto dissidente, a ministra Ruth Ginsburg afirmou que a decisão de manter um monumento na forma de cruz em terra pública corrompe o princípio constitucional que “demanda a neutralidade do governo”. Ela escreveu:

“Ao homenagear os soldados da Primeira Guerra Mundial com um memorial em forma de cruz, o estado de Maryland coloca o cristianismo acima das demais religiões e envia a mensagem às pessoas de outras crenças de que elas são excluídas”.

“Tornar a cruz latina um memorial da guerra não a torna secular. Muito ao contrário, a imagem da cruz torna o memorial da guerra sectário. A Cruz da Paz não é exceção. O propósito e o significado da cruz estiveram claros desde o começo — eram religiosos. Os americanos sabiam o que ela significava então e sabem o que ela significa agora”.

“Há décadas, esta corte reconheceu que a Cláusula do Estabelecimento da Constituição demanda a neutralidade do governo entre fés religiosas e entre religião e não religião. Inúmeras vezes, desde então, a corte reafirmou o compromisso constitucional com a neutralidade. Hoje, a corte corrompe o compromisso com a neutralidade, diminuindo precedente criado para preservar as liberdades individuais e a harmonia cívica em favor de uma presunção de constitucionalidade de monumentos, símbolos e práticas antigas”.

“A cruz latina é o principal símbolo da fé cristã, incorporando a reivindicação teológica central do cristianismo: de que o filho de Deus morreu na cruz, que ele ressurgiu dos mortos e que sua morte e ressurreição oferece a possibilidade da vida eterna. Precisamente porque a cruz simboliza essas crenças sectárias, é um marcador comum nos túmulos dos soldados mortos. Pela mesma razão, usar a cruz como memorial da guerra não a transforma em um símbolo secular, como o Tribunal de Recursos reconheceu uniformemente”.

A decisão terá ampla repercussão nos EUA, porque há muitas discussões sobre símbolos religiosos, como cruzes e placas dos dez mandamentos, em lugares e prédios públicos. Segundo a National Public Radio (NPR) e o jornal Washington Post, os símbolos religiosos já estabelecidos deverão permanecer onde estão, agora. Mas poderão ser contestados, se alguém desenvolver uma nova linha de argumentação, que mostre existir um propósito mais forte do que manter algo por seu valor histórico, apenas.

Fonte: Consultor Jurídico

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