Os autores das proibições são traficantes de drogas, convertidos a denominações evangélicas. Ministério Público vai investigar o crime de intolerância religiosa.
Há pelo menos meia década, não foram banidos “apenas” os terreiros do candomblé, mas toda a simbologia associada a religiões afro-brasileiras. Nem de branco, cor sagrada para muitos, às sextas-feiras, é permitido andar. Uma filha de santo deixou suas vestes de celebração à mostra no varal e se viu coagida a deixar a comunidade.
Essa e outras histórias foram contadas pelo repórter Rafael Soares, como se lê abaixo. Os autores das proibições são alguns traficantes de drogas, convertidos a denominações religiosas evangélicas que perseguem o povo de santo.
Hoje o jornal “Extra” informa que o Ministério Público vai investigar o crime de intolerância religiosa.
[b]Crime e preconceito: mães e filhos de santo são expulsos de favelas por traficantes evangélicos[/b]
A roupa branca no varal era o único indício da religião da filha de santo, que, até 2010, morava no Morro do Amor, no Complexo do Lins. Iniciada no candomblé em 2005, ela logo soube que deveria esconder sua fé: os traficantes da favela, frequentadores de igrejas evangélicas, não toleravam a “macumba”. Terreiros, roupas brancas e adereços que denunciassem a crença já haviam sido proibidos, há pelo menos cinco anos, em todo o morro. Por isso, ela saía da favela rumo a seu terreiro, na Zona Oeste, sempre com roupas comuns. O vestido branco ia na bolsa. Um dia, por descuido, deixou a “roupa de santo” no varal. Na semana seguinte, saía da favela, expulsa pelos bandidos, para não mais voltar.
– Não dava mais para suportar as ameaças. Lá, ser do candomblé é proibido. Não existem mais terreiros e quem pratica a religião, o faz de modo clandestino – conta a filha de santo, que se mudou para a Zona Oeste.
A situação da mulher não é um ponto fora da curva: já há registros na Associação de Proteção dos Amigos e Adeptos do Culto Afro Brasileiro e Espírita de pelo menos 40 pais e mães de santo expulsos de favelas da Zona Norte pelo tráfico. Em alguns locais, como no Lins e na Serrinha, em Madureira, além do fechamento dos terreiros também foi determinada a proibição do uso de colares afro e roupas brancas. De acordo com quatro pais de santo ouvidos pelo EXTRA, que passaram pela situação, o motivo das expulsões é o mesmo: a conversão dos chefes do tráfico a denominações evangélicas.
[b]Atabaques proibidos na Pavuna[/b]
A intolerância religiosa não é exclusividade de uma facção criminosa. Distante 13km do Lins e ocupada por um grupo rival, o Parque Colúmbia, na Pavuna, convive com a mesma realidade: a expulsão dos terreiros, acompanhados de perto pelo crescimento de igrejas evangélicas. Desinformada sobre as “regras locais”, uma mãe de santo tentou fundar, ali, seu terreiro. Logo, recebeu a visita do presidente da associação de moradores que a alertou: atabaques e despachos eram proibidos ali.
-Tive que sair fugida, porque tentei permanecer, só com consultas. Eles não gostaram — afirma.
A situação já é do conhecimento de pelo menos um órgão do governo: o Conselho Estadual de Direitos do Negro (Cedine), empossado pelo próprio governador. O presidente do órgão, Roberto dos Santos, admite que já foram encaminhadas denúncias ao Cedine:
– Já temos informações desse tipo. Mas a intolerância armada só pode ser vencida com a chegada do estado a esses locais, com as UPPs.
O deputado estadual Átila Nunes (PSL) fez um pedido formal, na última sexta-feira, para que a Secretaria de Segurança investigue os casos.
– Não se trata de disputa religiosa mas, sim, econômica. Líderes evangélicos não querem perder parte de seus rebanhos para outras religiões, e fazem a cabeça dos bandidos — afirma.
[b]Nas favelas, os ‘guerreiros de Deus’[/b]
Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu, chefe do tráfico no Morro do Dendê, ostenta, no antebraço direito, a tatuagem com o nome de Jesus Cristo. Pela casa, Bíblias por todos os lados. Já em seus domínios, reina o preconceito: enquanto os muros da favela foram preenchidos por dizeres bíblicos, os dez terreiros que funcionavam no local deixaram de existir.
Guarabu passou a frequentar a Assembleia de Deus Ministério Monte Sinai em 2006 e se converteu. A partir daí, quem andasse de branco pela favela era “convidado a sair”. Os pais de santo que ainda vivem no local não praticam mais a religião.
A situação se repete na Serrinha, ocupada pela mesma facção. No último dia 22, bandidos passaram a madrugada cobrindo imagens de santos nos muros da favela. Sobre a tinta fresca, agora lê-se: “Só Jesus salva”.
O babalaô Ivanir dos Santos, representante da Comissão de Combate à Intolerância Religiosa (CCIR), criada justamente após casos de intolerância contra religiões afro-brasileiras em 2006, afirma que os casos serão discutido pelo grupo, que vai pressionar o governo e o Ministério Público para que a segurança do locais seja garantida e os responsáveis pelo ato sejam punidos. “Essas pessoas são criminosas e devem ser punidas. Cercear a fé é crime”, diz o pai de santo.
[b]Lei mais severa[/b]
Desde novembro de 2008, a Polícia Civil considera como crimes inafiançáveis invasões a templos e agressões a religiosos de qualquer credo a Lei Caó. A partir de então, passou a vigorar no sistema das delegacias do estado a Lei 7.716/89, que determina que crimes de intolerância religiosa passem a ser respondidos em Varas Criminais e não mais nos Juizados Especiais. Atualmente, o crime não prescreve e a pena vai de um a três anos de detenção.
Filha de santo, que foi expulsa do Lins: ‘Não suportava mais fingir ser o que não era’.
– Me iniciei no candomblé em 2005. A partir de minha iniciação, comecei a ter problemas com os traficantes do Complexo do Lins. Quando cheguei à favela de cabeça raspada, por conta da iniciação, eles viravam o rosto quando eu passava. Com o tempo, as demostrações de intolerância aumentaram. Quando saía da favela vestida de branco, para ir ao terreiro que frequento, eles reclamavam. Um dia, um deles veio até a minha casa e disse que eu estava proibida de circular pela favela com aquelas “roupas do demônio”. As ameaças chegaram ao ponto de proibirem que eu pendurasse as roupas brancas no varal. Se eu desrespeitasse, seria expulsa de lá. No fim de 2010, dei um basta nisso. Não suportava mais fingir ser o que eu não era e saí de lá.
Mãe de santo há 30 anos, expulsa da Pavuna: ‘Disseram que quem mandava ali era o ‘Exército de Jesus”.
– Comprei, em 2009, um terreno no Parque Colúmbia, na Pavuna. No local, não havia nada. Mas eu queria fundar um terreiro ali e comecei a construir. No início, só fazia consulta, jogava búzios e recebia pessoas. Não fazia festas nem sessões. Não andava de branco pelas ruas nem tocava atabaque, para não chamar a atenção. Um dia, o presidente da associação de moradores foi até o local e disse que o tráfico havia ordenado que eu parasse com a “macumba”. Ali, quem mandava na época era a facção de Acari. Já era mais de santo há 30 anos e não acreditei naquilo. Fui até a boca de fumo tentar argumentar. Dei de cara com vários bandidos com fuzis, que disseram que ali quem mandava era o “Exército de Jesus”. Disse que tinha acabado de comprar o terreno e que não iria incomodar ninguém. Dias depois, cheguei ao terreiro e vi uma placa escrito “Vende-se” na porta — eles tomaram o terreno e o puseram a venda. Não podia fazer nada. Vendi o terreno o mais rapidamente possível por R$ 2 mil e fui arrumar outro lugar.
[b]Ministério Público vai instaurar inquérito para investigar expulsões de pais de santo por traficantes[/b]
Ministério Público (MP) vai instaurar um inquérito civil para investigar a origem dos casos de intolerância religiosa nas favelas da Zona Norte do Rio. A decisão foi tomada após o EXTRA revelar, ontem, a história de pais e filhos de santo que estão sendo expulsos de comunidades por traficantes evangélicos. Hoje, o procurador Márcio Mothé, coordenador de Direitos Humanos do MP, se reunirá com promotores para dividir os casos por áreas. Em cada local, serão ouvidos representantes das duas religiões para que se chegue a uma conciliação.
— É inadmissível que, num determinado bairro, uma religião venha a ser perseguida por outra. Se isso ocorre, vamos identificar a autoria, a origem do problema. Ninguém pode ser privado de direitos por motivo de crença religiosa — disse o procurador.
O MP, segundo Mothé, pretende chamar as duas partes — líderes locais evangélicos e de religiões de matriz afrobrasileira — e propor Termos de Ajustamento de Conduta (TACs), com pena de multa em caso de desobediência. Se houver descumprimento, ou seja, novas denúncias, a instituição religiosa será obrigada a pagar o valor combinado.
— Se o problema não for resolvido na esfera administrativa, o MP pode recorrer ao Judiciário, propondo uma ação civil pública e postulando medidas mais radicais — disse.
[b]Discussões até na Alerj[/b]
Também está marcada para hoje uma reunião extraordinária da Comissão de Combate às Discriminações e Preconceitos de Raça, Cor, Etnia, Religião e Procedência Nacional, da Assembleia Legislativa do Rio (Alerj). Na pauta de discussões, está a proposta de uma audiência pública com a participação do secretário de Segurança Pública, José Mariano Beltrame, a fim de tratar exclusivamente da denúncia.
— É fundamental que pressionemos o governo do estado para pensarmos em possíveis soluções. Intolerância é crime e deve ser punida. Mas temos que atacar o problema na origem. Queremos chamar segmentos evangélicos para o diálogo também — afirmou o deputado estadual Átila Nunes (PSL).
[b]Fonte: UOL e Jornal Extra[/b]