Uso da peça, reprimido pelo governo, simboliza ascensão de valores religiosos. País é conhecido por ter leis e costumes avançados entre os islâmicos, mas cenário começa a mudar, sobretudo entre camadas mais pobres.

Tudo começou há um ou dois anos. Bandanas e bonés começaram a ser vistos nas cabeças de algumas estudantes nos anfiteatros das universidades. “Pouco a pouco foram dando lugar aos véus, apesar da proibição. Na administração da universidade, várias secretárias começaram a fazer o mesmo.

Quando lhes pergunto sobre suas motivações, elas dizem: “Sinto a necessidade disso'”, conta Samia, professora de direito na Universidade de Túnis. Dentro de sua própria família, de bom nível econômico, a professora observa uma série de mudanças “inquietantes”.

Uma sobrinha se recusou a ir a uma casa onde havia um cão, “porque ele é impuro e isso a impediria de fazer suas orações”. No dia seguinte, uma amiga recusou seu convite para jantar porque sabia que lhe seria oferecida bebida alcoólica.

Nos casamentos, cada vez mais mulheres chegam cobertas pelo hijab. Nas orações da sexta-feira, as mesquitas transbordam. E são cada vez mais freqüentes as noites de orações, em que dez ou 20 pessoas se reúnem na casa de um membro da família às quintas ou sextas.

Cinquenta anos depois de Habib Bourguiba, o “pai” da Tunísia independente, ter concedido às mulheres igualdade em relação aos homens, as tunisianas se vêem diante de um desafio: o recuo de identidade que hoje atinge o conjunto do mundo árabe-muçulmano.

O uso do véu, que vem aumentando -a peça é usada por uma mulher em cada quatro em Túnis e três em cada quatro nos locais mais distantes da capital-, é apenas um sintoma. Preocupadas em transmitir uma imagem calma de seu país, as autoridades tunisianas hesitam em admitir sua intranqüilidade diante do fenômeno.

Elas se contentam em repetir que o presidente Ben Ali “jamais irá revogar as conquistas das mulheres e o código do estatuto pessoal”, não importa as pressões a que seja submetido.

Promulgado em agosto de 1956, alguns meses após a independência do país, o código foi revolucionário para a época: a poligamia foi abolida, e foi instituído o divórcio legal. Foi fixada uma idade mínima para o casamento, para o qual passou a ser exigido o consentimento dos dois cônjuges. E a mulher ganhou direito ao voto.

Tudo isso foi acompanhado de um esforço considerável em matéria de educação para todos, e também de outra revolução, a do planejamento familiar. Sob alguns aspectos, a Tunísia ficou à frente da França -a partir de 1963, o aborto passou a ser autorizado para as mulheres com mais de cinco filhos, e, desde 1973, deixou de ser crime para todas.

Retrocesso

Hoje, em Kairouan, quarta mais importante cidade santa do islã, 200 quilômetros ao sul de Túnis, as mulheres não cogitariam sentar-se às mesas dos cafés, como na capital. Na classe de Zakhia, 30, divorciada, mais da metade das alunas usa o véu. A proporção é a mesma entre as professoras. “É o proibido que faz sucesso”, garante.

Nessa cidade conservadora e pobre, tradições continuam a pesar. A virgindade, por exemplo, ainda tem “importância extrema” para a quase totalidade dos homens, enquanto “estes não se envergonham em não ser virgens, sob o pretexto de que precisam ter experiência”, se indigna a estudante Meriem.

Muito mais que a questão das liberdades ou da paridade, as mulheres reclamam das dificuldades da vida. Desemprego, salários baixos, custo de vida, incerteza quanto ao futuro.

As queixas são muitas, e essa tensão se reflete nos casais. “Não existem mais homens na Tunísia”, ouve-se comentar por todos os lados. São raras as mulheres que explicam o que querem dizer, mas elas não hesitam em repetir que “o último homem” era o pai. Os outros “não assumem responsabilidades”, sobretudo familiares.

Em sua butique, Habiba oferece, além do tradicional caftan, vários tipos de roupas: véus coloridos e atraentes, quase sexies, capuzes austeros e djilbebs (a mais austera de todas as vestimentas religiosas). Ela observa que suas clientes são bastante versáteis. “Algumas decidem usar o djilbeb e depois, no ano seguinte, o abandonam. Os hábitos de vestuário ainda não estão realmente consolidados”, diz.

Diferentemente de muitas de suas colegas de Túnis, ela não reclama da polícia e suas revistas em lojas de roupas islâmicas. “Parem de vender esses trajes!”, ordenam aos comerciantes, antes de interpelar algumas mulheres de hijab, escolhidas aleatoriamente nas ruas, mandando que tirem o véu.

Nos dias seguintes a cada caso desse tipo, as mulheres se perguntam, assustadas: “A quem devemos obedecer? Aos policiais ou a Deus?” E depois a pressão afrouxa. O véu volta a ser tolerado, ao menos até “o próximo acesso de raiva” das autoridades, dizem as estudantes -normalmente no reinício das aulas ou no fim do ano.

Em sua batalha contra o que alguns qualificam como ascensão do islamismo, enquanto outros o descrevem como retorno às tradições, o poder tunisiano não tem estratégia. Ele segue adiante com sua política voluntarista em favor das mulheres, ao mesmo tempo em que opta por métodos coercivos, muito pouco produtivos.

“O governo se preocupa, mas se nega a admitir que não pode conduzir essa luta sozinho e que precisa apoiar-se em aliados como a esquerda laica”, diz uma médica que integra os altos escalões da administração.

“Seria preciso abrir debates reais sobre as questões da sociedade que nos preocupam. Dialogar é urgente. Ainda está em tempo. Mas quando o poder vai entender que é preciso?”

Legislação laica garante paridade dos sexos no país

Código de 1956 deu às mulheres direito ao voto, aboliu poligamia, instituiu o divórcio legal, fixou idade mínima para o casamento e impôs que este ocorresse sob o consentimento dos dois cônjuges.

Fonte: Folha de São Paulo

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