“FELIZ” – Uma Análise Psicanalítica do filme Coringa

Coringa - filme
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“Sorri quando a dor te torturar, e a saudade atormentar os teus dias
tristonhos vazios … Sorri vai mentindo a sua dor e ao notar que tu sorris todo mundo irá supor que és feliz”.

Trecho da canção Smile composta originalmente por Charles Chaplin (Carlitos) na versão Sorri em português interpretada por Djavan.

Nota: Este artigo contém spoilers.

Coringa, é um filme de suspense psicológico. Joaquin Phoenix como o Coringa assume o papel do adversário do Batman, o filme narra a origem do personagem Arthur Fleck, interpretado pelo ator.

Arthur é nomeado pela mãe como “Feliz”. Arthur ao nascer recebe a seguinte incumbência: “fazer rir e trazer alegria”. A primeira cena do filme mostra Arthur puxando a boca para forçar um sorriso, esse gesto é repetido em Bruce numa cena onde Arthur vai a mansão Wayne em busca do suposto pai ausente da relação.

Os pais despejam nos filhos aquilo que podemos denominar como “banho de linguagem” e assim antes de nascerem ou serem gerados os filhos já são nomeados, a eles são atribuídos rótulos e valores, são escolhidos modelos a serem seguidos, são idealizados lugares a serem ocupados, são geradas expectativas a serem correspondidas e assim antes de serem gerados e nascerem eles já têm que cumprir um papel na vida de seus pais, na família e na sociedade. Arthur ao ser nomeado por sua mãe como “Feliz” é designado para trazer risos e alegria. O “banho de linguagem” despejado pela mãe se processa através da atribuição de rótulos. Os rótulos funcionam como significantes (segundo Lacan), a criança adapta-se ao rótulo, assumindo assim esse papel designado pela mãe (o grande Outro primordial). Segundo Lacan “a fala só é fala na medida em que alguém nela crê”. Para Arthur ser “Feliz” é necessário estar alienado ao desejo da mãe?

A mãe costumava sempre enviar cartas ao candidato a prefeito e bilionário Thomas Wayne, usando Arthur como portador dessas cartas, até que um dia Arthur decide abrir uma delas para saber o que sua mãe escrevia, e para sua surpresa ele descobre com angústia que Thomas Wayne é o seu pai. Daí por diante Arthur inicia uma busca, do suposto pai. Ao encontrar-se com Thomas Wayne, suposto pai, nomeado pela mãe, este nega a sua paternidade, e diz que Penny Fleck é psicótica, esteve internada e que ela não é sua mãe biológica. A partir desta negação paterna, podemos inferir uma foraclusão do Nome do Pai, segundo Lacan.

Penny Fleck (mãe supostamente psicotizante) e o pai ausente (foracluído) de sua paternidade são cartas fundamentais na estruturação psicótica de Arthur.

Sem a inscrição do significante do Nome do Pai (foraclusão) define-se a estrutura psicótica.

Como Arthur não encontra o pai “imaginário”, ele continua sua busca pelo suposto pai no Wayne Hall onde tem que passar por uma multidão de pessoas protestando fantasiadas de palhaços, ele burla a segurança, se disfarça de funcionário e lá dentro assiste ao filme “Tempos Modernos”, onde Charles Chaplin (Carlitos – o palhaço triste) está patinando à beira do abismo com os olhos vendados, numa referência metafórica à situação de Arthur, que está de “olhos vendados” alienado ao desejo da mãe, à beira do surto psicótico.

O Coringa é um drama onde o personagem “Feliz” (Arthur)  vivencia um palhaço de aluguel objetivado como um dejeto, o que lhe traz muita angústia no seu desejo de ser comediante.

É nesse cenário ambivalente que o personagem “Feliz” vive a triste realidade de um ambiente sombrio e violento, marcado por desigualdade social e crise econômica. Em uma das cenas do filme uma pessoa levanta um cartaz dizendo: “Todos somos palhaços”. Assim inicia-se um processo identificatório com Arthur, o “Feliz”.

Em destaque está a saúde mental. Minha proposta é pôr à vista o funcionamento psíquico de Arthur.

“Feliz”, rotulado com um problema mental, que provoca incontroláveis ataques de risos, diagnóstico este inscrito num documento (cartão) que ele traz no seu bolso. Isso me lembra uma fala de Lacan: “o psicótico traz o seu “objeto a” dentro do bolso”. Aquilo que é nomeado como distúrbio neurológico pela medicina,  trata-se do Real Lacaniano que reaparece. Sendo Arthur psicotizado pela mãe, se torna objeto, alienado ao desejo dela, cujo gozo lhe é insuportável, lutando diariamente contra essa angústia devastadora, sufocado por esse gozo mortífero, afastando-se cada vez mais dessa realidade, ou seja da cena desse mundo real.

Então Arthur segue delirando. Os delírios dão sustentação a essa nova realidade reconstruída na fantasia.

Que ironia sua dança, seu nariz empinado sutilmente quando dança, como se denunciasse o Outro (mãe), sem lei, que goza dele mesmo.

Curinga, Joker, ou Melé é também conhecido como Coringa, é a carta do baralho que muda de valor dependendo do jogo e das combinações das cartas que o jogador tem em mãos. Em muitos jogos, outras cartas podem assumir o valor do curinga, assim como também muitas atividades são denominadas “curingas”, como uma peça de roupa ou uma pessoa que possa assumir o lugar de outra. A dinâmica desse jogo nos apresenta por metáfora, a transferência do sentido de uma palavra para outra. Metaforicamente falando, a carta cede lugar ao personagem. O Coringa como uma peça do baralho está em todo lugar, nas cenas da rebelião, nas ruas onde todos usam máscaras de palhaço, na onda de protestos violentos por Gotham City, no assassinato do casal Thomas e Martha Wayne por uma pessoa fantasiada de palhaço, onde sobrevive apenas Bruce Wayne (a criança, filho do casal), no trem cheio de palhaços fantasiados, na ambulância que após uma colisão com o carro da polícia onde alguns manifestantes libertam Arthur o qual é venerado pela multidão de palhaços, sendo assim o Coringa aparece e desaparece na multidão, o Coringa está em todos e em todo lugar, e ao mesmo tempo em lugar nenhum. Assim como no jogo onde outras cartas podem assumir o lugar de curinga.

Ele sempre foge e escapa, assim como o Real para Lacan. Nunca conseguimos alcançar o Real lacaniano, pois ele sempre foge, escapa num jogo de gato e rato. O Real lacaniano é aquilo que não vemos, não tocamos, não temos domínio sobre ele. Ele é o impossível, é enganador, aparece e desaparece. O Real para Lacan é aquilo que “não cessa de não se inscrever ou escrever”. O Real para Lacan é aquilo que não para, nunca para de não ser dito, falado, escrito …

Assim aguardem nessa mesma bat-hora, nesse mesmo bat-portal onde iremos falar sobre o sombrio submundo da psiquê humana.

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