“Eu vim aqui mais para ouvir do que falar”, disse o então pré-candidato à presidência Jair Bolsonaro diante de uma multidão de evangélicos na 26ª Marcha para Jesus, em maio, em São Paulo. Os organizadores calcularam em dois milhões de pessoas a quantidade de participantes do evento anual —a Polícia Militar não divulgou estimativa. “Hoje é dia de consagração. Que o Senhor abençoe e proteja as nossas famílias. Nós amamos Israel”, discursou brevemente, na ocasião, o hoje presidente eleito do Brasil, finalizando a curta intervenção com seu lema de campanha: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Meses depois, assim que teve sua eleição confirmada, Bolsonaro fez questão de, em sua primeira aparição pública, passar uma mensagem religiosa. Junto a seus apoiadores, inclusive, rezou, em uma imagem transmitida em rede nacional. Meio católico, meio evangélico, ele assumirá a Presidência da República no dia 1º de janeiro de 2019 com um apoio massivo do segundo grupo, que vem ampliando sua presença na política nacional eleição após eleição desde a década de 1980.
Um católico que frequenta a Igreja Batista há décadas, como ele mesmo se define, o presidente eleito neste domingo carrega para o Palácio do Planalto uma agenda religiosa que ainda não tinha encontrado tanta legitimidade no Executivo. É de se esperar, portanto, que os evangélicos deixem a posição de veto que ocuparam durante o Governo Dilma Rousseff para a de protagonistas, com a promoção de pautas. Isso não garante, contudo, apoio incondicional ao futuro Governo, ponderam estudiosos da relação entre política e religião no Brasil ouvidos pelo EL PAÍS. “O processo de politização da religião envolve ricos muito altos. Não se trata de uma força da religião na política apenas, mas de uma força da política na religião”, analisa o sociólogo Roberto Dutra, professor da Universidade Estadual do norte Fluminense Darcy Ribeiro (Uenf).
Durante a campanha, Bolsonaro recebeu o apoio público das maiores lideranças evangélicas do país. “De todos os candidatos, o único que fala o idioma do evangélico é Bolsonaro”, disse no início de outubro o pastor José Wellington Bezerra, presidente emérito da Assembleia de Deus, a maior congregação evangélica do Brasil. Responsável por celebrar o último casamento de Bolsonaro, com Michelle Firmo, em 2013, o pastor Silas Malafaia, da Assembleia de Deus Vitória em Cristo, esqueceu críticas antigas sobre o radicalismo do presidente eleito para embarcar na candidatura do PSL à Presidência. Já o bispo Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus, não se limitou a dizer que votaria em Bolsonaro. Sua emissora de televisão reservou 30 minutos exclusivos para o candidato enquanto seus adversários se enfrentavam em debate na Rede Globo.
A lista de apoiadores evangélicos conta ainda com o bispo Robson Rodovalho, criador da Sara Nossa Terra, e tem como grande unificador a bandeira de combate à “ideologia de gênero” e em favor da família tradicional, segundo a pesquisadora norte-americana Amy Erica Smith. Autora do livro Religion and Brazilian Democracy: Mobilizing the People of God (Religião e democracia no Brasil: mobilizando o povo de Deus), a ser lançado em abril próximo, Smith veio ao Brasil estudar organizações comunitárias, e descobriu nas igrejas os grupos mais organizados.
A pesquisadora lembra que o ativismo político dos evangélicos data da década de 1980, durante a Constituinte, e faz parte de uma estratégia para ampliar o poder de evangelização. “Os evangélicos achavam que as políticas públicas do Estado brasileiro estavam prejudicando sua capacidade para evangelizar. Queriam chegar ao poder para obter coisas como licenças para rádio”. A mobilização rendeu, nesta eleição, uma ampliação da bancada evangélica do Congresso Nacional de 78 para 91 parlamentares na próxima legislatura, de acordo com as contas do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap). Segundo Roberto Dutra, é uma bancada muito renovada, mais nova e com perfil de atuação mais agressiva nas redes sociais. Amy Smith lembra, por outro lado, que os evangélicos ainda estão sub-representados no Congresso, porque eles já compõem cerca de 30% da população brasileira, mas passarão a representar apenas 15% do parlamento.
Protagonismo
“Tanto para Bolsonaro quanto para os parlamentares, é muito interessante que o debate fique restrito à questão da agenda de comportamento: o que eles chamam de ideologia de gênero, pauta gay, questões sobre cotas —para o que a esquerda contribui muito com essa linguagem da política identitária”, diz o sociólogo. “Se o debate ficar preso nisso, a tendência é que essa bancada evangélica tenha um protagonismo muito grande e consiga vitórias expressivas em relação à redução da maioridade penal ou eliminação de qualquer terminologia e conceituação sobre gênero na educação. Mas a pauta não vai ser só essa”.
Dutra diz que, embora Bolsonaro fuja do debate sobre economia e políticas sociais, essas questões serão, junto com a segurança pública, as mais importantes de seu Governo. “Quando a política social, o crescimento econômico e a segurança pública, para que ele não tem solução nenhuma, naufragarem, a bancada evangélica vai virar vidraça”, prevê, acrescentando que, com uma agenda econômica liberal radicalizada, “não haverá fé que segure o apoio dos evangélicos”. Amy Smith chama atenção especialmente para a questão da violência. “Se o governo for muito sangrento, e pode ser, talvez ele perca um pouco da popularidade dentro das comunidades evangélicas. Há um movimento evangélico minoritário, mas forte, que acredita que a repressão de bandidos não é algo cristão. A violência retórica o prejudica. Se enfocar na repressão da comunidade gay, mas não na violência, pode ser que tenha mais apoio”, analisa.
Outro risco para Bolsonaro é tentar se escorar demais na comunidade evangélica, que impulsionou parte de sua campanha mobilizada contra o material escolar anti-homofobia popularmente conhecido como “kit gay”. “Esse uso da religião como meio para a política pode levar ao desgaste da imagem entre os evangélicos. O uso do púlpito não é bem visto”, diz Dutra, para quem problemas no Governo Bolsonaro podem contribuir para fomentar lideranças progressistas de esquerda entre os evangélicos. “[Marcelo] Crivella faz um Governo muito mal avaliado no Rio [de Janeiro]. Só não repercutiu muito fortemente na eleição do Estado porque o debate foi nacionalizado. Logo, logo, todo mundo vai lembrar que a prefeitura do Rio esta muito mal administrada”, diz.
De qualquer forma, a influência evangélica na política brasileira deve aumentar, aposta Amy Smith, tanto pela busca de espaço político das igrejas quanto pelo crescimento da comunidade religiosa. Esses movimentos podem até culminar na eleição de um presidente evangélico de fato, mas isso dependeria do estabelecimento de uma unidade que não existe. “Tem uma expressão que se diz entre os evangélicos: ‘irmão vota em irmão”. Mas isso não acontece”, diz Smith. “No período Lula [2003-2010], os evangélicos aderiram ao Governo pela política social. Eles têm afinidade e uma relação muito grande com a educação. Aproveitaram oportunidades. São pobres, não são só evangélicos. São identidades múltiplas, de classes populares”, resume Dutra.
Fonte: El País