O brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO
O brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO

Embora a fome tenha se mantido em patamar relativamente baixo no Brasil desde o começo da década de 2010, a ameaça de crescimento do número de pessoas severamente subalimentadas é real no país. Muito por causa do desemprego e do subemprego elevados, com queda abrupta da renda das famílias, como também da estagnação econômica –após dois anos de recessão, o país voltou a crescer economicamente em 2017, mas apenas 1%.

Segundo o brasileiro José Graziano da Silva, diretor-geral da FAO, sigla em inglês do órgão da ONU (Organização das Nações Unidas) responsável pelo estímulo ao combate à fome no mundo, esse quadro poderá levar o Brasil de volta ao grupo de países em que a fome é alarmante, o chamado Mapa da Fome, do qual saiu em 2014.

“O principal fator que põe em risco a volta da fome no Brasil é o baixo crescimento econômico”, diz Graziano, em entrevista ao UOL, de Roma, onde fica a sede mundial da FAO. “O país não voltou ao Mapa da Fome em 2017, mas é incerto o que pode acontecer no futuro.”

Um agravante hoje para a fome no Brasil e no mundo, segundo o diretor do órgão da ONU, é o avanço de setores mais conservadores sobre o conjunto da sociedade. “Não aceitam o direito à alimentação como um valor absoluto, reconhecido no mesmo nível do direito à vida e que está inscrito na Constituição brasileira.”

No Dia Mundial da Alimentação, celebrado internacionalmente neste dia 16 de outubro, o chefe da FAO, cujo segundo mandato se encerra em 2019, chama a atenção também para a outra extremidade do problema alimentar global: a obesidade.

São 670 milhões de obesos hoje no mundo, incluindo crianças, para 821 milhões de famintos. Para Graziano, não se pode responsabilizar mães e pais pelo problema de obesidade dos filhos, mas, sim, a oferta descontrolada de alimentos ricos em gorduras, sal e açúcar.

Nas duas extremidades, na falta e no excesso, muito precisa ser feito, defende. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.

UOL – Qual é a situação hoje do Brasil, do ponto de vista da alimentação e da fome, segundo a FAO? Existe risco de o país voltar ao Mapa da Fome, após ter saído dele em 2014?

José Graziano da Silva – A FAO elabora os índices de pessoas com fome e outros indicadores de subnutrição uma vez ao ano, a partir de informações fornecidas pelos países. É importante ressaltar isso: nós não produzimos as informações básicas, nos fiamos nos números mandados pelos países. No caso do Brasil, é o IBGE, um dos institutos de pesquisa e estatísticas mais respeitados em todo o mundo.

O mais importante deles é a evolução do emprego. Infelizmente, como sabemos, o aumento no número de pessoas desempregadas e também daquelas com empregos temporários e precários, fazendo bicos, são dois indicadores diretamente relacionados à insegurança alimentar, porque ou significa a ausência de remuneração de trabalho ou significa rendimento instável e muito baixo.

Outro indicador é o número de pessoas sem nenhuma forma de rendimento e que não se beneficiam de nenhum dos programas públicos de transferência de renda, como o Bolsa Família e a aposentadoria rural. De acordo com esses dados oficiais, são mais de 7 milhões que estão nessa situação. Se não passam fome, essas pessoas só estão provavelmente conseguindo sobreviver seja por meio de doações de instituições de caridade ou religiosas, seja por transferências internas geralmente de familiares próximos.

O principal fator que põe em risco a volta da fome no Brasil é o baixo crescimento econômico. A persistência desse baixo nível de crescimento do Brasil, em função da crise econômica que se instalou no país após 2015, é alarmante e vem sendo objeto de um grande debate. Em resumo: o país não voltou ao Mapa da Fome em 2017, mas é incerto o que pode acontecer no futuro.

O que o próximo presidente deve fazer para tirar o Brasil de um quadro de agravamento da fome?

Primeiro, sem dúvida, uma ação emergencial. Ou seja, pelo menos manter e, na medida do possível, procurar ampliar a cobertura dos programas de transferência de renda, como o Bolsa Família e a aposentadoria rural. Essa é a situação de acudir aquelas pessoas que estão na iminência de passar fome ou que já passam fome por falta de renda. Mas, a médio e longo prazo, é a retomada do crescimento sustentável, com geração de empregos de qualidade. Isso não será fácil de fazer no caso do Brasil.

Qual é hoje a cara da fome no Brasil? Em quem precisamos prestar mais atenção?

Acho que a atenção maior no Brasil hoje tem de ser também dirigida às crianças, porque a má nutrição até os 5 anos de idade compromete o desenvolvimento motor e intelectual no futuro. Estamos na verdade comprometendo a nossa próxima geração e o futuro do país.

Minha avó costumava dizer que, se não tomássemos leite até os 5 anos de idade, depois poderíamos ganhar uma vaca de presente que nem teríamos condição de pastoreá-la. É fundamental a boa alimentação, a boa nutrição nos primeiros anos de vida. E mais: nos mil primeiros dias de vida, é fundamental o aleitamento materno, para o qual não há substituto. E, para uma mulher conseguir amamentar uma criança adequadamente, ela precisa ser bem nutrida. Essa deve ser a prioridade do novo presidente: a mulher e a criança.

O senhor acredita em programas de renda mínima, para dar suporte à população de forma continuada?

Acredito. Acho que hoje os programas de renda mínima têm de ser vistos dentro de uma nova perspectiva. Em 2003, o Fome Zero [programa contra a fome no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que Graziano ajudou a elaborar e depois dirigiu como ministro da Segurança Alimentar e Combate à Fome] foi percursor desse conceito, expandindo programas-piloto que haviam sido instalados experimentalmente, por exemplo, em Campinas (SP), que é a minha cidade natal, com muito bom resultado.

Nós expandimos isso em nível nacional através do Cartão Fome Zero, que transferia inicialmente R$ 50 às pessoas desempregadas e que não tinham nenhuma outra fonte fixa de renda, como aposentadoria. Era um “quebra-galho” para os mais pobres poderem esperar o crescimento econômico com mais empregos de qualidade, que veio a seguir.

Hoje, vai ganhando força em nível mundial uma nova concepção dos programas de renda mínima para que sejam permanentes, porque não se acredita mais na possibilidade de gerar empregos dada à evolução tecnológica trazida pela quarta revolução industrial. O Fome Zero destinava-se às pessoas que receberiam o benefício durante o período em que estivessem desempregadas. No momento em que as pessoas restabelecessem a sua fonte de renda, elas devolveriam o cartão.

Tanto que chegávamos a celebrar devoluções de cartões, principalmente de agricultores e pequenos produtores que se recuperavam em um ano bom de safra. Eles corriam ao banco e devolviam o cartão. Era um gesto de dignidade dos brasileiros que não querem depender de uma transferência de renda.

No entanto, hoje, devido à crise do trabalho –no sentido de que não há condições de gerar empregos de qualidade para todos, em que as pessoas possam ter uma renda estável–, começa-se a pensar nos programas de renda mínima como um patamar de renda garantido pelo Estado a todos os seus cidadãos.

Na opinião do senhor, o Brasil possui um sistema democrático consolidado? São 30 anos da Constituição de 1988, a “Constituição Cidadã”. Como vai a nossa democracia?

Vejo um grande progresso democrático no Brasil nas últimas décadas. Vivi os anos de chumbo da ditadura militar [1964-85]. Em 1968, eu estava na universidade e era vice-presidente de um dos poucos centros acadêmicos livres na época. E sofri na carne a perseguição política junto com meus companheiros e professores. Hoje há um respeito maior às universidades, há um respeito às organizações sociais, aos sindicatos, às associações estudantis.

Espero que isso continue. Nossa luta é para preservar essas conquistas cidadãs e não permitir nenhum retrocesso.

Militares têm aumentado a presença na política e na vida pública do país. Qual é o lugar das Forças Armadas brasileiras no combate à fome, à pobreza, a preservação do meio ambiente e da água?

Os militares participaram também do Fome Zero. Seja garantindo a distribuição de cestas básicas de alimentos nas regiões onde houve problemas de catástrofes naturais, como a seca ou inundações, seja participando ativamente do programa Um Milhão de Cisternas. O Fome Zero fez um acordo com o Exército, que ajudou a melhorar a distribuição de água através dos caminhões-pipa. No auge da seca, eles colaboraram com pesquisas através de GPS, na identificação de pontos para a instalação de cisternas. Foi um programa-piloto muito bem-sucedido que identificava onde estavam as famílias necessitadas. As Forças Armadas sempre tiveram papel ativo nas crises alimentares brasileiras.

Como o senhor tem observado a movimentação política no Brasil antes e agora durante as eleições? A escalada da violência, da divergência, do discurso de ódio… Como fomos chegar aonde chegamos?

Acho que esse discurso do ódio, de que vai resolver o problema da segurança na bala, facilitando o acesso às armas para defesa pessoal, não vai funcionar. Mais violência não resolverá o problema da segurança. Mais armas só vão incentivar mais violência. Aqui na Itália, país que registra um dos menores índices de homicídios por ano no mundo, é um dos lugares mais difíceis de se adquirir legalmente o porte de arma pessoal.

O que o Brasil precisa é de uma polícia mais bem remunerada e treinada, com mais ações de inteligência no sentido de se tornar preventiva, e não uma polícia conflitiva e repressiva. A questão é como passamos do que temos hoje para esse modelo que vigora no mundo desenvolvido. Mas já se sabe que esse caminho não passa por facilitar o porte de armas.

A primeira eleição presidencial de um candidato petista teve como mote principal o combate à pobreza e à fome. Na agenda eleitoral de hoje, a segurança pública e o combate à crise econômica predominam nos debates, junto com o antipetismo e o antibolsonarismo. Como o senhor observa a campanha presidencial no Brasil do ponto de vista da garantia da dignidade alimentar?

De fato, a questão do combate à fome se reduziu nessas eleições. E não vejo isso como um mau sinal. Entendo que isso significa que a fome perdeu a importância que tinha em 2002, na eleição do presidente Lula. Nós estávamos à época tratando de um tema que atingia 40 milhões de pessoas.

Além disso, era de uma importância fundamental para um país que queria exportar alimentos para o mundo e ser uma referência mundial na questão de alimentos. Hoje, o Brasil conseguiu ser essa referência mundial na exportação de alimentos, com uma produção doméstica capaz de garantir alimentação adequada a todos. O problema é ter acesso a esses alimentos. Não que eles sejam caros, são os salários pagos que são baixos –-para não falar do desemprego e do subemprego.

Há ainda muitas pessoas que não têm renda porque não têm emprego, ou porque não têm um benefício dos programas sociais do governo. Então, mudou o quadro. Em 2002, não tínhamos um programa do tamanho do Bolsa Família para garantir acesso, nem o número de aposentados rurais que temos hoje.

A FAO defende uma reforma agrária no Brasil? Se sim, de que tipo? O que ainda freia o desenvolvimento das populações rurais, de quem tira o sustento da terra?

Pessoalmente, vejo que a reforma agrária no Brasil é basicamente o conflito dos interesses existentes entre milhares de trabalhadores sem terra e uma oligarquia agrária muito forte, que controla importantes partes do Congresso Nacional e do Poder Executivo. E não permite o avanço de propostas que possam, de fato, alterar a estrutura de posse e propriedade da terra no país.

Houve uma modernização muito forte da agricultura brasileira nos anos 1960 e 1970, que alterou muito a questão agrária do país. O argumento fundamental de uma reforma agrária contra o latifúndio, contra as terras improdutivas, perdeu muita força já no final dos anos 1970. Na medida em que houve uma modernização da agropecuária brasileira, restaram apenas aquelas grandes propriedades extensivas, basicamente de pecuária extensiva, explorando pastagens naturais do Centro-Oeste e do Norte do país. Foi onde se procurou concentrar o processo de desapropriação a partir dos anos 1980 e 1990, também com pouco sucesso dado os múltiplos entraves jurídicos que se teve que enfrentar e que acabou transformando o processo de reforma agrária num “caso a caso”, e não em algo massivo como se demandava na época.

Acho que, hoje, a reforma agrária tem como prioridade a geração de oportunidade de trabalho. Terra sem ser utilizada e pessoas ociosas dão uma boa combinação. Os assentamentos são um exemplo disso. Obviamente não basta só juntar gente sem terra e terra sem gente, é preciso apoio de infraestrutura, assistência técnica, crédito etc. –-e isso fica caro.

Não se trata apenas de dar terra ou de fazer uma reforma fundiária para aumentar a produção de alimentos, mas também de dar moradia e trabalho aos membros das famílias extensas, especialmente aos mais velhos.

Como a FAO avalia o nível de combate à seca em regiões áridas e semiáridas do Brasil? É possível identificar algum tipo de melhoria advinda de programas?

O Nordeste enfrentou nos últimos anos uma seca prolongada e terrível, como poucas vezes já visto –talvez desde o final dos anos 1990 não se via uma sequência de anos de pouca chuva como se viu desta vez na região. Foram praticamente cinco anos consecutivos, e não vimos nenhuma migração massiva das zonas rurais para as cidades, ou do sertão para a zona da mata, muito menos assistimos a uma migração massiva do Nordeste para o Sul/Sudeste.

Isso porque os programas de transferência de renda garantiram as condições de sobrevivência mínima dessa população, mesmo na falta de uma produção agrícola importante na região. Melhorou também o acesso à água potável nas áreas rurais: o sucesso do programa Um Milhão de Cisternas é um fato; as famílias têm acesso a água potável durante os momentos mais duros da seca sem dependerem dos favorecimentos políticos dos carros-pipa.

Acho que também melhoraram muito as condições de financiamento e o acesso às tecnologias da agricultura familiar: a irrigação de gotejamento, por exemplo, já é uma prática adotada em muitos projetos na região

Com relação ao mundo, como está a situação da fome, hoje?

No passado, a existência da fome era ligada à escassez de alimentos. Com a “Revolução Verde” dos anos 1960, a produtividade conheceu um “boom” exponencial, com alto emprego de fertilizantes e pesticidas. Assim, chegamos à condição de que produzimos quantidade mais do que suficiente para alimentar a todos.

Isso se deve a três fatores. O primeiro são os conflitos internos. Segundo nossos dados mais recentes, 60% das pessoas sofrendo de fome vivem em regiões de conflito, especialmente no continente africano.

O segundo são os impactos da mudança do clima, como maior intensidade de secas prolongadas e inundações, que atingem diretamente as pessoas que vivem no campo. Isso tem atingido a África em cheio, mas também o Oriente Médio e a América Central. Esses agricultores familiares, pescadores artesanais e extrativistas estão tendo seus meios de subsistência comprometidos.

O terceiro fator do aumento da fome é ainda a pobreza extrema, ou a miséria, como prefiro chamar. É aquela que provoca uma drástica redução na renda das famílias a ponto de impedir que elas continuem a manter uma alimentação adequada.

Esse fator ainda é agravado, em alguns países, pela descontinuidade de programas consistentes de segurança alimentar que se baseiam na transferência de renda. Na ausência de um crescimento econômico sustentável, cria-se um ambiente extremamente favorável para a volta da fome.

O que há de novo, em termos de tecnologia e criatividade, no combate à fome no mundo? O que tem dado certo em produção e distribuição democrática de alimentos? Alguma experiência em particular a ser seguida?

A grande inovação no combate à fome é não distribuir alimentos, exceto em situações extremas. Descobrimos, a partir da crise da Somália em 2011/2012, que, mesmo nas situações mais carentes, os mercados locais funcionam se forem ativados. E não há nada melhor para ativar um mercado no sistema capitalista do que injetar dinheiro.

No caso da Somália, uma região árida: entramos com a distribuição de dinheiro através do programa “Cash for Work” [Dinheiro por Trabalho, em tradução livre], que é basicamente um programa que paga as pessoas para que trabalhem reconstruindo bens públicos, como estradas e canais de irrigação. Ou seja, injetando dinheiro nas comunidades locais, consequentemente, estávamos reavivando os mercados.

Fonte: UOL – Guilherme Azevedo
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