O momento é delicado para a Igreja Católica. Em menos de um mês, três grandes polêmicas reacenderam a sede por modernização nos dogmas católicos, ao mesmo tempo em que o papa Bento XVI (foto) sinaliza com cada vez mais força que não deve ceder às pressões.
Seja face à reintegração de um bispo que negara o Holocausto – atiçando a revolta dos judeus -, à excomunhão da mãe que autorizou a realização de aborto na filha de 9 anos, estuprada pelo próprio padrasto, ou reafirmando a proibição do uso de preservativos diante do problema epidêmico de aids na África, o Papa não dá qualquer indício de que pretenda, um dia, ouvir as vozes progressistas que clamam pela revisão dos conceitos católicos.
“Não sou nada otimista neste sentido. Bento XVI não segue de forma alguma no sentido de modernizar a Igreja e eu acho que ele não está lá para isso”, define Phillippe Portier, especialista em catolicismo contemporâneo e diretor de Estudos do Grupo Sociedades, Religiões e Laicidade da Escola Prática de Altos Estudos da Sorbonne, em Paris. O grupo é mais importante da França no estudo de religiões.
Na entrevista abaixo, Portier analisa o momento atual da Igreja Católica, as suas perspectivas e o que se pode esperar deste papa em termos de evolução do catolicismo.
Uma série de acontecimentos recentes coloca a Igreja Católica em uma situação delicada. Como melhorar a sua imagem neste momento?
É muito difícil. Me parece que existe uma espécie de divórcio, iniciado há bastante tempo, entre o catolicismo ocidental e a Igreja Católica na sua hierarquia. A hierarquia da Igreja Católica, desde João Paulo II e agora, ainda mais, nos tempos de Bento XVI, tem tendência a defender um catolicismo intransigente, fundado em uma crítica muito forte da modernidade.
Isso porque a modernidade é subjetiva e refuta as verdades da Igreja. Ao mesmo tempo, no catolicismo ocidental, os praticantes têm cada vez mais tendência a desenvolver uma ética liberal. Quando analisamos o comportamento dos católicos ocidentais, eles são todos extremamente marcados pelo princípio da subjetividade, próprio à modernidade, mesmo que se sintam católicos praticantes.
Então, o que vemos é que, quando o discurso do Papa fica tenso, as diferenças entre a cúpula e a base se mostram muito claras. Isso provoca resistência extremamente pesadas à palavra do Pontífice, sobretudo em países muito marcados pela ótica liberal como a Alemanha ou a França. Existe um conflito de civilizações morais. Através dos protestos que vemos na Alemanha e na França, percebe-se que existe um completo abismo entre a palavra do Papa e a ética comum do mundo católico de hoje.
É possível haver modernização da Igreja Católica sob o comando de Bento XVI?
É extremamente difícil. Não sou nada otimista neste sentido. Bento XVI não segue de forma alguma no sentido de modernizar a Igreja e eu acho que ele não está lá para isso. Ele foi escolhido papa justamente para reativar as origens católicas, e isso definitivamente não passa por uma maior liberalização dos dogmas.
À exceção da condenação do uso do preservativo, em plena África destruída pelo vírus da aids, os outros dois casos polêmicos atuais – a reintegração do padre negacionista e a excomunhão da mãe brasileira – causaram contestação na própria Igreja Católica. As vozes progressistas hoje têm mais liberdade de expressão na Igreja?
A resposta é, claramente, sim. Sim, e por duas razões: primeiro, por ordem jurídica, ordem canônica. O que foi decidido no Concílio do Vaticano II, em 1964, não foi jamais contestado. O texto dá autonomia relativa ao povo de Deus. Este é um primeiro ponto, mas que não é suficiente para explicar a liberdade de expressão dada aos católicos. O principal é que a Igreja não é mais um aparelho capaz de controlar da mesma maneira que nos anos 40 ou 50.
Ela não consegue mais conter as atitudes e as palavras de seus próprios membros. Vivemos naquilo que eu chamo de “paisagem mosaica”, marcada por múltiplas igrejas no interior da grande Igreja. Os bispos e o Papa tentam produzir uma unidade mas se chocam com a vontade de pluralidade desejada pelos próprios católicos. Os católicos hoje se organizam conforme suas próprias concepções de fé, independentemente de um aparelho que não consegue mais lhes controlar.
Qual é o futuro desta Igreja tão múltipla?
É um pouco delicado de se fazer previsões sobre isso. A idéia de João Paulo II e agora, ainda mais, de Bento XVI, é de sempre tentar reconstituir a unidade. Por isso a afirmação, muito forte, da necessidade de construção de uma nova identidade católica, de uma nova evangelização. Mas essa evangelização não deveria tocar somente aqueles que estão à margem da Igreja, mas também os que se encontram no seu interior. A idéia é de que é preciso lhes repatriar através da palavra romana, da palavra do Papa. A dificuldade é que essa mensagem de unidade não é verdadeiramente recebida pela população católica que vive sob o reino do liberalismo, que vive no século do subjetivismo.
É possível que um dia cheguemos ao fim da Igreja Católica, na ausência de modernização?
A sua questão anterior é, na verdade, uma camuflagem para essa, não? A Igreja Católica vai sobreviver ou não? Minha resposta é: sim, com certeza. Existe uma dimensão cultural muito forte na adesão à Igreja Católica. Num mundo como o nosso, hoje, você pode perfeitamente refutar a palavra do papa mas se reconhecer nas raízes católicas, em seu interior. Você pode enunciar mensagens críticas mas isso não vai levar-lhe a obrigatoriamente deixar a Igreja. A Igreja evoca ritos, memórias, sociabilidade. Nós podemos ter nossas críticas à Igreja sem fechar as portas para ela.
Existe, de fato, então, uma boa parte de praticantes que gostariam que Igreja se modernizasse?
Sim, e eles seguem o catolicismo no seu próprio ritmo, de acordo com suas próprias perspectivas e orientações. O fato de seguir a Igreja não os impede de criticar o que diz o Papa. Neste sentido, a Igreja soube acolher os espaços de liberdade e de relativa autonomia no seu interior. Algumas paróquias, por exemplo, são bem mais abertas do que outras, e os praticantes passam a seguir aqueles padres que melhor lhes convém às suas convicções próprias, sem pensar em deixar a Igreja. A Igreja lhes dá muito mais do que palavras dogmáticas, lhes permite de desenvolver uma melhor sociabilidade na família, lhes dá conforto interior. A Igreja perdeu tropas, mas não está morta.
Como a Igreja Católica vai reagir à perda cada vez mais intensa de fiéis face às crenças pentecostais, como as igrejas evangélicas?
A Igreja pode não estar chegando ao fim, mas que ela tem cada vez mais desertores, isso é bem verdade. Todos os anos a Igreja apresenta relatórios mostrando que a situação está extremamente difícil. Na Europa, como no Brasil, isso também está acontecendo. Na França, mesmo se o nível global de praticantes não baixou nos últimos 20 anos, mantendo-se estável em 8% de praticantes regulares que vão uma vez por mês à missa, os dados sobre declaração de crença na Igreja Católica estão baixando a cada ano.
Enquanto em 1970, 80% das pessoas se diziam católicas, hoje elas não são mais do que 55% a se afirmar enquanto tal. Esses dados podem ser bastante dúbios, no entanto. Pode parecer muito, se consideramos que vivemos em um mundo cada vez mais liberal. Neste sentido, podemos dizer “Realmente, ainda tem bastante adesão ao catolicismo”. Por outro lado, podemos interpretar o fato puro e simples de que a adesão diminui a cada ano. E isso acontece não porque as pessoas se transformaram em atéias, por mais que as gerações mais jovens tenham se mostrado mais atéias que do que as anteriores. Isso acontece porque eles aderem a outros cultos, como o protestantismo evangélico, ou então porque elas não se reconhecem mais em uma única religião.
Os “desertores”, como você chama, estariam em busca da sua própria fé, independente da Igreja?
Sim, hoje vemos um fenômeno muito claro de uma espécie de ‘religião à la carte’. As pessoas não se reconhecem mais em um Deus aclamado por uma igreja histórica, mas sim cada um tenta por si, de uma forma auto-crítica, construir sua própria fé.
No sentido de reunificar o pensamento católico, as atitudes tomadas pelo Papa são as mais adequadas?
Eu não saberia dizer se são a melhor coisa a ser feita, mas eu sei o que ele tem na cabeça ao condenar fortemente o aborto ou os preservativos, em pleno século XXI. Bento XVI acha que, se a Igreja perdeu tantos praticantes, é justamente porque estava aberta demais à modernidade. Ele acha que é reafirmando a identidade original católica que ele poderá reencontrar o vigor do passado. Mas muitas vozes na própria Igreja discordam, embora, na cúpula católica, o consenso em torno desta idéia esteja formado. E o consenso para os lideres é: precisamos reafirmar a identidade cristã.
Fonte: Terra