Na garagem, um Ford Del Rey transformado em utilitário está com a caçamba cheia de garrafas vazias de refrigerante. Atrás dele, os degraus de uma escada estão decorados com esses vasilhames cheios de detergentes e desinfetantes, que a família da casa fabrica e revende pelo bairro. Nada disso leva a crer que estamos na entrada da mais recente experiência mística de São Paulo.
Mas, no corredor todo azulejado, a surpresa: uma fila de pessoas espera para entrar no quarto dos fundos. Lá, sobre a cama com colcha de dinossauros, uma imagem de Jesus Cristo está pendurada na parede, lambuzada e pingando. Embaixo dela, uma forma de bolo quase transborda de um líquido amarelado e viscoso. “É mel. É a doçura do coração de Jesus”, anuncia Doralice Carvalho, da porta da cozinha, com um adesivo “Eu Não Deixo a Dengue Entrar” colado na janela.
Para ela, quem entrou em sua casa foi o próprio Espírito Santo. “Todo mundo sai daqui muito espiritualizado. E quem não acredita não precisa nem vir”, decreta a dona da casa que virou santuário de peregrinação, com mais de 500 visitações desde a última quinta-feira, quando teria começado a manifestação divina, com uma nova imagem vertendo mel no mundo.
Estamos no Jardim Grimaldi, um emaranhado de ruas na Zona Leste paulistana. Tanto é assim que o maior desafio dos romeiros que vêm de outros bairros e cidades é encontrar a rua saindo da mais conhecida avenida Sapopemba. “Um senhor do Butantã que é cego, surdo e mudo conseguiu chegar aqui. Foi uma obra divina. Ele passou o mel nos olhos, orelhas e boca para tentar um milagre”, conta Anderson Freitas, o primeiro a ver o Cristo chorando mel.
Anderson está hospedado na casa desde 16 de janeiro. Desde 2005, ele diz ver aparições de Nossa Senhora de Lourdes. Coroinha em Pindobaçu, cidade do sertão baiano, ele passou os últimos cinco anos a peregrinar pelo Brasil para divulgar as profecias que teria ouvido da santa. “Ela me revelou que surgiria a gripe suína no México e que morreria muita gente nas enchentes de Santa Catarina [em 2008]”, afirma esse hóspede frequente de casas de sacristãos e fiéis. No ano passado, ele presenciou outra imagem que vertia mel em Sorocaba, interior paulista.
Freitas, 22, conta que descobriu a manifestação quando ia ao banheiro e viu no quarto um brilho maior na escultura na parede. Chamou a dona da casa, e ela experimentou o que tinha gosto de mel.
A igreja católica vê com muito cuidado o caso. Responsável pela paróquia, o padre Cláudio Silva esteve na casa na segunda-feira. Ouviu Doralice dizer que não queria levassem a imagem de 20 centímetros de diâmetro para uma perícia. Por outro lado, o religioso pediu para que não distribuir o mel para os visitantes.
“Temos que chamar um perito, algum professor universitário de química para analisar a imagem e o líquido. Só depois poderíamos descartar um fenômeno natural, como uma condensação, ou uma fraude”, diz padre Juarez de Castro, o secretário geral de comunicação da Arquidiocese de São Paulo.
Padre Juarez declarou ao UOL Notícias estar ainda mais desconfiado que em outras situações. “Na maioria dos casos não há nada de sobrenatural. O cuidado agora é maior porque quem descobriu o fenômeno é alguém que se auto-intitula missionário católico sem ser, já esteve envolvido em caso semelhante e diz receber profecias”, afirma o porta-voz da Igreja na cidade.
Um caso célebre aconteceu em 2002 em Ferraz de Vasconcelos, na Grande São Paulo. O vidro de uma casa apresentou uma mancha que logo foi interpretada como a silhueta de uma santa. Os peregrinos e os supostos milagres não demoraram a aparecer. Até a cantora Elba Ramalho foi para lá e o padre Oscar Quevedo decretou que coisas como aquela “no existem”. Um exame técnico verificou que um defeito de fabricação gerou a mancha.
Imagens vertendo sangue, azeite ou mel são uma constante na história recente do catolicismo, com exemplos na Itália, Coréia do Sul, Japão e México. No Brasil, a onda de estátuas “apicultoras” ressurgiu em 2007, quando apareceu uma Nossa Senhora de Fátima melíflua em Campo Grande (MS). A partir daí, pulularam santas com lágrimas doces em cidades interioranas.
A mania provocou uma série de sátiras. O programa “Pânico na TV” inventou até uma santa que vertia cachaça. Uma cena polêmica foi criada para a comédia norte-americana Curb Your Enthusiasm, veiculada pelo canal HBO, em que um respingo da privada em um retrato de Cristo virá um milagre no banheiro de uma casa (veja vídeo ao lado).
Desta vez, o mel sobrenatural do Jardim Grimaldi se espalhou em jornais, rádios e programas de TV populares. E gerou comoção. Só na quarta-feira, 200 pessoas entraram pela casa de Doralice. Jovens puxavam os celulares para fotografar e ligar para convencer novos visitantes. “Isso é santo, mano. Vem aí”, gritava um garoto ao telefone antes de rezar e chorar no local.
Iraci Luiz passou o líquido no braço e disse que passou uma dor insistente. “Foi um milagre. Pedi outros, mas ainda não aconteceram”, disse a dona de casa.
No portão, três garotas visitantes montam uma teoria. “Jesus está chorando mel para mostrar que as abelhas estão sumindo do planeta, o que é um prenúncio do fim do mundo”, filosofa a estudante Érica Barbosa. Já a gestante Marina Souza foi conferir a comoção, mas saiu sem muita fé: “A gente confia desconfiando. Pede um milagre aqui e outro lá para ver se ele acontece mesmo.”
Na frente da casa, um templo da Congregação Cristã no Brasil parece testemunhar a concorrência católica na vizinhança. Alguns de seus seguidores já foram fazer uma visitinha à outra fé. “Sou evangélica, mas quero ver todos os mistérios de Jesus. Eu acredito em tudo isso”, sentenciou a doméstica Maria do Carmo, com o neto no colo.
Fonte: UOL Notícias