O teólogo inglês David Tombs, 57, defende a tese de que Jesus Cristo foi vítima de abuso sexual antes de ser crucificado. Relacionando os maus-tratos a prisioneiros da era romana e práticas de ditaduras latino-americanas, ele estuda a dimensão sexual da tortura e propõe nova postura das igrejas cristãs, de acordo com matéria da Folha de S. Paulo.
Radicado na Nova Zelândia, o teólogo Tombs lida há 23 anos com duas perguntas: o que significam os três momentos em que Jesus Cristo é publicamente despido, antes da crucificação? E por que isso importa?
Por séculos, as artes plásticas traduziram o desnudamento antes da execução como um aspecto lateral, que Jesus encarou serenamente ao subir à cruz que marcou o pensamento do Ocidente. Mesmo no violentíssimo “A Paixão de Cristo” (2004), de Mel Gibson, esse episódio é neutralizado. É preciso voltar ao Evangelho de Marcos para captar os horrores da Via-Crúcis.
“Então Pilatos, querendo satisfazer a multidão, soltou-lhe Barrabás e, açoitado Jesus, o entregou para ser crucificado. E os soldados o levaram dentro à sala, que é a da audiência, e convocaram toda a coorte [unidade militar romana com 500 soldados]. E vestiram-no de púrpura, e tecendo uma coroa de espinhos, lha puseram na cabeça. E começaram a saudá-lo, dizendo: Salve, Rei dos Judeus! E feriram-no na cabeça com uma cana, e cuspiram nele e, postos de joelhos, o adoraram. E, havendo-o escarnecido, despiram-lhe a púrpura, e o vestiram com as suas próprias vestes; e o levaram para fora a fim de o crucificarem” (Marcos 15:15-20, versão Almeida).
Para Tombs, tudo isso retrata que Cristo foi vítima de um abuso sexual: exposto em sua nudez, espancado e humilhado enquanto nu, em uma recreação sádica que contou com 500 soldados, entre participações diretas e olhares curiosos.
Professor de teologia e questões públicas na Universidade de Otago, em Dunedin, na Nova Zelândia, o anglicano Tombs publicou em 1999 seu primeiro artigo sobre o tema, intitulado “Crucificação, terrorismo de Estado e abuso sexual”. Hoje, não está mais sozinho: outros teólogos já abordam o aspecto sexualizado do martírio de Cristo.
Em 2021, Tombs editou um compêndio de artigos de teólogos ao lado das professoras Jayme Reaves e Rocío Figueroa, “When Did We See You Naked?” (quando foi que te vimos nu?, SCM Press, inédito no Brasil). Neste ano, o teólogo deve lançar um novo livro, em que consolida todo o seu pensamento.
“São dois aspectos: o primeiro é o que o texto realmente fala. Vejo a nudez forçada de Cristo como uma forma de violência sexual, o que justifica chamá-lo de vítima de abuso sexual. Embora muitas pessoas tenham dificuldade de chamar a nudez forçada de violência sexual, tendo a crer que elas estão sendo desnecessariamente resistentes ao que o texto afirma”, diz Tombs, por videochamada.
Sobre o que ocorreu depois do desnudamento, Tombs diz: “Não sabemos ao certo, mas podemos levantar uma questão que não é meramente especulativa nem leviana, porque temos evidências de maus-tratos a prisioneiros da era romana e também perspectivas trazidas pelo contexto de outras torturas modernas, na documentação das ditaduras em El Salvador, Brasil, Argentina, Chile, Sri Lanka e Abu Ghraib (prisão do Exército americano no Iraque), por exemplo.”
Teologicamente, o professor reconhece que a hipótese do abuso sexual do corpo de Cristo eleva a tensão sobre o papel de Deus em seu sofrimento. Em muitas interpretações cristãs, Deus é o agente que permite que todo o martírio de Cristo ocorra.
Tombs, no entanto, prefere focar outro aspecto. “É possível perceber que algumas pessoas rejeitam essa leitura por acharem que tal sofrimento diminui Cristo, o que é parte do estigma que os sobreviventes do abuso sexual vivem. Às vezes, o que se percebe é que algumas pessoas dizem amar Cristo, mas não querem realmente saber do que ele sofreu. Adultos que dizem amar Cristo deveriam ter vontade de conhecer o que ele sofreu. Além disso, há também o aspecto de que Deus compartilha do sofrimento humano até nas suas piores instâncias. Recebi mensagens de sobreviventes de abuso sexual que admitiam sentir uma distância de Deus, como se Deus não entendesse a dor deles. Ao tomarem conhecimento dessa interpretação, essas pessoas me dizem que encontraram um advogado em Jesus.”
Fonte: Folha de S. Paulo