O ambiente no Vaticano está apocalíptico. O papa Bento 16 parece cansado, e tanto incapaz quanto sem vontade de segurar as rédeas do comando em meio ao forte corpo a corpo e ao escândalo.
Enquanto ocorre uma disputa interna no Vaticano pelo poder e especula-se quem será seu sucessor, Joseph Ratzinger se recolheu para se focar no seu ainda ambicioso legado.
Finalmente, há clareza. A Santa Sé deixou as coisas claras e tornou o documento acessível a todos: uma nota para a imprensa na qual se verifica se as aparições da Virgem Maria são autênticas. Tudo será muito mais fácil de agora em diante. A Igreja Católica Romana deu um passo à frente.
Esta “notícia bombástica” da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF) revela os tipos de problemas com os quais o Vaticano está preocupado -e o tipo de mundo em que alguns lá vivem. É um mundo em que a investigação oficial da igreja sobre as visões da Virgem Maria é cuidadosamente regulada, enquanto os cardeais, na Cúria Romana, o aparato administrativo e judicial do Vaticano exercem o poder sem absolutamente nenhuma fiscalização, e a correspondência confidencial do papa aparece nas gavetas da mesa de um mordomo.
Uma aparição completamente diferente daquela da Virgem Maria lançou o Vaticano e a Igreja Católica em uma nova crise, cujo final e impacto podem apenas ser supostos: a aparição de uma fonte no coração da igreja, uma conspiração contra o papa e um espião de codinome “Maria”.
Desde o fim de maio, o ex-mordomo do papa, Paolo Gabriele, está detido no Vaticano num pequeno recinto de 35 metros quadrados, com uma janela, mas sem televisão. Usando o codinome “Maria”, ele supostamente contrabandeou faxes e cartas para fora da residência privada do papa. Ainda não se sabe, contudo, quem o orientava a fazer isso.
Mesmo com a prisão de Gabriele, o rombo ainda não foi tapado. Mais documentos foram liberados ao público nesta última semana, documentos cuja intenção inicial era prejudicar dois colaboradores muito próximos do papa Bento 16: seu secretário confidencial, Georg Gänswein, e o cardeal secretário de Estado, Tarcisio Bertone, o administrador superior do Vaticano. De acordo com um documento, “centenas” de outros documentos secretos seriam publicados se Gänswein e Bertone “não fossem postos para fora do Vaticano”. “Isso é chantagem”, diz o especialista em Vaticano Marco Politi. “É como uma ameaça de guerra total”.
[b]Uma casa bagunçada
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O medo está em toda parte na cúria, onde o humor raramente foi tão ruim. É como se alguém tivesse batido com uma vara numa colmeia. Os homens vestidos de roxo estão andando apressados de um lado para o outro, monitorando desesperadamente a correspondência. Ninguém confia mais em ninguém, e algumas pessoas hesitam até mesmo em se comunicar pelo telefone.
Tudo começou no amaldiçoado sétimo ano do papado de Bento 16, com semelhanças impressionantes com a última parte do papado de João Paulo 2º. As mesmas queixas acerca da liderança fraca e das divisões internas são expostas para além das paredes do Vaticano, enquanto o próprio papa parece exaurido e já não é mais capaz de exercer seu poder.
Joseph Ratzinger completou 85 anos em abril. Isto faz dele o papa mais velho em 109 anos, e um dos poucos papas que exerceram o que Bento chamou deste “gigantesco” cargo em uma idade tão avançada.
De fato, ele ainda tem uma forma física e mental invejável, especialmente se comparado a seu predecessor em seus últimos anos. Mas falar tornou-se inequivocamente mais difícil para Bento do que no começo de seu papado, e é difícil não perceber que seus movimentos tornaram-se mais limitados e cautelosos.
Ele disse recentemente a um visitante que seu velho piano quase não é mais usado. Tocá-lo requer prática, complementou, e ele não tem mais tempo para isso. Prefere continuar trabalhando na última parte de sua série sobre Jesus, que quer terminar antes de morrer.
[b]Um navio sem capitão
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Atualmente, não é difícil encontrar pessoas no Vaticano dispostas a falar, desde que suas identidades permaneçam anônimas.
Em noite recente, um monsenhor que trabalhou próximo a Ratzinger no CDF por anos, encontrou o caminho para o restaurante perto da Piazza Santa Maria, no bairro de Trastevere em Roma. Antes mesmo do garçom chegar com a água e o vinho, o monsenhor já havia dado seu veredito sobre o papado de Ratzinger: “O papa não exercita seu cargo em sua plenitude!” Em sua opinião, em vez de controlar as coisas, elas o controlam.
O papa não está interessado nos assuntos do dia a dia do Vaticano, diz o monsenhor. Isso, contudo, não é exatamente sem precedentes, pois seu predecessor negligenciou a cúria. Enquanto o papa polonês passava muito tempo viajando, seu sucessor alemão aparentemente fica mais feliz quando está lendo ou redigindo palestras. “Ele simplesmente não está assumindo as questões, segurando-as em suas mãos”, diz o monsenhor. Em essência, o papa enfrenta um poder diferente em Roma -que ele não comanda.
Apesar de o Vaticano ser católico, também é dois terços italiano. No final, diz o monsenhor, os funcionários e a administração do Vaticano não ligam para quem entre eles lidera a Igreja. Mesmo para alguém que mora aqui há décadas, o monsenhor diz: “O Vaticano é um novelo de lã que é quase impossível de desenrolar -até para um papa”.
Quando João Paulo 2º morreu, em abril de 2005, a cúria estava em péssimo estado. As decisões de pessoal e de eventos tinham sido adiadas em seus últimos anos, período em que esteve mais adoentado. Caberia ao novo papa, portanto, finalmente dar conta das tarefas e assim permitir à cúria um novo começo.
Mas, na maior parte, essas reformas não aconteceram. Os padres ainda detêm todas as posições importantes, inclusive no Conselho dos Leigos e no Conselho da Família. A única mulher em posição alta, Briton Lesley-Anne Knight, foi tirada do cargo de secretária-geral da agência de desenvolvimento católico, Caritas Internationalis, em 2011, por ter se oposto abertamente à hierarquia da Igreja dominada pelos homens.
[b]Fraturada e feroz
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“Reforma da cúria” é provavelmente uma contradição em termos. Seu modelo organizacional hierárquico, essencialmente medieval, é incompatível com a administração moderna. O Vaticano é um sistema anacrônico, apesar de surpreendentemente tenaz, no qual prevalecem a subordinação e um gosto absurdo pelo segredo e a intriga. “A única coisa importante é a proximidade ao monarca”, diz um membro da equipe de um cardeal. Roma funciona como uma corte absolutista, na qual as decisões são feitas por pessoas sussurrando coisas nos ouvidos das outras e não em comitês. “Há tantas pessoas vaidosas aqui, competindo fortemente umas com as outras”, acrescenta.
Quem falou com quem, e por quanto tempo? Do que conversaram? Quem frequenta a missa com quem, e quem convida quem para jantar? Quem está nas internas, e quem está de fora? Quem é do círculo interno, e quem está perdendo vantagens? “Esse ambiente promove sentimentos de exclusão, discriminação, inveja, vingança e ressentimento”, diz o monsenhor. E todas essas coisas agora apareceram nos documentos do Vatileaks.
O secretário papal, Gänswein, em particular, fez muitos inimigos. Como vigia da porta do papa, ele tem influência sobre quem é ou não recebido pelo pontífice, assim como quais eventos e questões podem atrair sua atenção. Esse poder pode gerar medo, ciúmes e escárnio nos corredores do Palácio Apostólico, a residência oficial do papa. Para Gänswein, foi quase um milagre ter podido passar uma noite inteira relaxando e conversando com clérigos alemães na embaixada do Vaticano em Berlim, em setembro último. Foi uma experiência que não poderia ter tido em Roma.
O Vaticano está se desintegrando em dezenas de grupos de interesse que competem entre si. No passado, eram os jesuítas, os beneditinos, os franciscanos e outras ordens que competiam por respeito e poder dentro da corte do Vaticano. Mas sua influência murchou, e eles foram substituídos primariamente pelas chamadas “novas comunidades clericais”, aquelas que trazem as grandes multidões para as missas celebradas pelo papa: a Neocatechumenate, os Legionários de Cristo e os tradicionalistas da Sociedade de São Pio X (SSPX) e a Fraternidade Sacerdotal de São Pedro -sem mencionar a mundial “santa máfia” da Opus Dei.
Todas têm agentes, declarados e clandestinos, em torno do Vaticano e todas têm imóveis, dirigem universidades, institutos e outras instalações educacionais em Roma. Vários cardeais e bispos defendem seus interesses no Vaticano, frequentemente sem um mandato oficial ou declarado. No Vaticano, todo mundo é contra todo mundo, e todo mundo acha que Deus está do seu lado.
Talvez Bento 16 simplesmente conheça o Vaticano bem demais para seriamente tentar reformá-lo. “Como papa, esse veterano da cúria no final não tem interesse algum em de fato dirigir a Cúria Romana”, escreve John L. Allen, biógrafo do papa.
[b]Perdedores na batalha pela reforma
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O atual escândalo ocorreu dentro desse cenário. As revelações sobre os documentos secretos do Vaticano -chamados de “Vatileaks” pelo próprio porta-voz papal, padre Federico Lombardi- emergiram há mais de quatro meses. Eles sugerem um Vaticano mergulhado em corrupção e em campanhas destrutivas, um complô que não parece limitado ao dito ato de roubo do mordomo.
A figura central é o arcebispo Carlo Maria Viganò, a quem o papa instruiu em julho de 2009 para limpar a administração do Vaticano. O advogado supercuidadoso impôs cortes em várias áreas, inclusive nos contratos de construção, imobiliários e de administração dos Jardins do Vaticano. Em uma carta a Bertone, ele escreveu que tornou o déficit do Vaticano de $ 7,8 milhões de euros (em torno de R$ 21 milhões) em um superávit de $ 34,5 milhões em um ano, colocando um fim às redes da velha guarda que “sempre concediam contratos às mesmas empresas”- pelo dobro do preço costumeiramente pago fora do Vaticano. Viganò se tornou impopular com sua luta contra o desperdício e o abuso do poder.
Em meio a manobras, ele foi retirado do cargo após apenas 27 meses e, desde outubro, tem sido embaixador do Vaticano nos EUA em Washington, longe do Vaticano. Ele entendeu sua transferência como punição. Em uma carta de protesto ao papa, ele fez um retrato franco da cúria: “O reino está fragmentado em pequenos estados feudais, todos lutando entre si”. As condições, ele escreveu, são “desastrosas” e, pior, são “bem conhecidas” de toda a cúria.
O escândalo do Vatileaks também trouxe à luz as razões por trás da demissão de outra alta autoridade. Ettore Gotti Tedeschi, diretor do banco do Vaticano, aparentemente foi colocado para fora pouco depois do Pentecostes porque estava tentando dar mais transparência à instituição atingida por escândalos. Sua meta era tornar o banco -onde os chefões da máfia depositavam seu dinheiro- apto para a “lista branca” da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (Ocde), de organizações supostamente limpas. Tedeschi queria que o Vaticano finalmente revelasse as transações que satisfizessem os padrões internacionais para o combate da lavagem de dinheiro. Ele fracassou.
Observadores acreditam que o caso do banqueiro é o verdadeiro centro do escândalo, ou seja, a luta pelo controle das finanças do Vaticano. Isso provavelmente explica por que Tedeschi foi demitido tão vigorosamente. O conselho de diretores do banco emitiu justificativas absurdas para sua expulsão, dizendo que Tedeschi, professor de ética empresarial, era imprevisível e tinha atraído atenção para si mesmo por suas ausências.
De qualquer forma, está claro que Tedeschi perdeu na luta contra Bertone. Aparentemente, novas diretrizes que pudessem cortar os bens do Vaticano desagradou o segundo no comando.
[b]Uma velha guarda ignorada
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Seria exageradamente simplista interpretar tudo isso como meramente um conflito entre reformistas e tradicionalistas. Na realidade, é sobre a esclerose da Igreja e um problema que tem um nome: Bento 16.
A velha guarda do Vaticano, composta de cardeais italianos e seus partidários, acreditava que tinha encontrado um papa de transição com Ratzinger. Mas agora a transição está em seu oitavo ano, e a cúria está praticamente onde estava perto do fim da vida do papa anterior: não há ninguém à vista para assumir o leme com firmeza.
Bento 16 se cercou de indivíduos que conhece há muito tempo e deu a eles considerável poder. Quando nomeou Bertone seu principal assessor, o papa desrespeitou a hierarquia comum das facções. Ele e Gänswein, conhecido em Roma como o “Adonis da Floresta Negra” por suas origens alemãs do Sul, tornaram-se poderosos e independentes demais para muitos cardeais na cúria. Bertone e Gänswein foram os principais alvos do ataque de codinome “Maria”.
Os cardeais das províncias da Itália notaram que seu acesso à Santa Sé está se dissipando. Apesar de Bertone ser italiano, ele preferiu seus colegas da ordem salesiana, elevando-os para posições chave e nomeando-os cardeais. Além disso, Bertone, 77, é visto como um fraco administrador e um diplomata sem jeito. No verão de 2009, uma delegação de cardeais teria pedido ao papa que o substituísse.
Mas o chefe da administração do Vaticano não pode ser o único alvo dos ataques de “Maria”. A razão para isso é que é altamente provável que ele tivesse permanecido no cargo por outros seis meses, de qualquer forma, para abrir a vaga para um sucessor. Não, “Maria” estava querendo atingir mais alto do que Bertone.
[b]Inconfortável no cargo
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A Igreja Católica tem um problema de liderança no centro de sua corte barroca. Os documentos vazados, por fim, prejudicam o próprio Bento, e o escândalo também é fundamentalmente nocivo para o próprio papado. Com cada dia de especulação sobre os verdadeiros mandantes por trás do complô, há uma impressão crescente de um papado difícil e de um papa enfraquecido, que não está mais dando as ordens.
Por um longo tempo, o próprio Ratzinger mal pôde acreditar que subitamente seria o líder de todos os católicos. Mais de um mês após sua eleição, no dia 24 de março de 2005, ele fez outra visita ao local no Vaticano onde muitas coisas tiveram começo para ele: o seminário do Campo Santo Teutônico, uma ilha verde em meio ao território construído, diretamente adjacente à sacristia da Basílica de São Pedro.
Ele morou ali durante o amplo esforço de modernização da igreja chamado de Vaticano 2º e, em 1982, ele voltou para Roma de Munique quando ficou, segundo ele, “em um quarto com o mínimo a minha volta para, eu fazer um novo recomeço”.
Ratzinger permaneceu leal à comunidade do seminário até ser eleito papa. Por décadas, ele celebrou a missa das 7h toda quinta-feira; frequentemente, ele comia com os estudantes no refeitório, tinha discussões com eles e frequentava a festa de Natal na sala da lareira. Era um lugar onde podia buscar refúgio de suas tarefas como diretor da CDF, era uma espécie de família.
Ele não esteve no seminário desde a última visita, no final de maio de 2005, que durou mais de uma hora. Ao partir, Ratzinger assinou o livro de convidados. Ele escreveu “Bento 16” e depois, deixando um pequeno espaço, rabiscou “papa”. A princípio escreveu com um “p” minúsculo, mas depois mudou para maiúsculo.
Nenhum de seus predecessores jamais assinou algo parecido -e o próprio Bento nunca o fez novamente. Foi quase como se tivesse que dizer a si mesmo: Meu Deus, eu sou o papa!
Ratzinger sentiu-se inconfortável com o poder que assumiu, que é uma razão para ter se recusado a reformar compreensivamente o sistema. Ele preferiu depositar sua confiança em seus subalternos.
[b]A necessidade de uma família
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Bento não precisa do Vaticano; ele precisa de uma pequena família. A família é sagrada para ele, e é algo que ele sempre procurou em sua vida. O único membro sobrevivente de sua família é seu irmão mais velho, Georg. Seu pai, Joseph, morreu em 1959, e sua mãe, Maria, em 1963. A irmã dele, Maria, administrou a casa dele por cerca de 30 anos, mesmo em Roma, até sua morte em 1991. Quando ela morreu, ele escreveu em suas memórias: “O mundo ficou um pouco mais vazio para mim”.
Para Ratzinger, todas essas questões continuam sem resolução. Na Reunião Mundial de Famílias, que ocorre em Milão todo mês de junho, ele respondeu a perguntas sobre a família de uma forma ad hoc e improvisada. “Oi, papa”, disse uma menina de sete anos. “Sou Cat Tien. Venho do Vietnã. Eu gostaria muito de saber algo sobre a sua família e sobre quando o senhor era pequeno como eu”. O papa de 85 anos replicou: “Para dizer a verdade, quando tento imaginar como é o paraíso, sempre penso no tempo da minha juventude, da minha infância. Naquele contexto de otimismo, alegria e amor, éramos felizes, e acho que o paraíso deve ser algo parecido com a minha juventude”.
Ratzinger repetidamente tentou fomentar um “ambiente de confiança”, mas foi repetidamente prejudicado. Quando Ratzinger mudou-se para os apartamentos papais em 2005, subitamente viu-se sem uma confidente antiga. Ingrid Stampa, a governanta que sucedeu sua irmã, não teve permissão para ficar junto a Ratzinger em seus novos aposentados. Ela tinha caído em desgraça no Vaticano por ter apontado para a praça São Pedro da janela do apartamento do papa e acenado para a multidão -uma gafe imperdoável.
Em vez disso, quatro irmãs laicas da associação Memores Domini -Loredana, Cristina, Manuela e Carmela- tornaram-se suas governantas. Elas cuidaram dele por cinco anos, participando de suas preces toda manhã, celebrando o Natal e os dias santos com ele e partilhando as refeições com ele.
Então, uma delas, Manuela Camagni, morreu em um acidente de trânsito em 2010. O papa ficou abalado. Ele ajoelhou-se diante do caixão, fez o discurso fúnebre e falou dos momentos inesquecíveis, “como uma família”, que teve com ela.
Com a traição de seu mordomo, que ficava ao seu lado 24 horas por dia, o pequeno mundo de Joseph Ratzinger novamente perdeu o prumo.
[b]O fugidio “efeito Bento”
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Quando comparados com as expectativas, os resultados dos sete anos de Bento 16 como papa foram bastante modestos. O papa alemão não vai ser muito lembrado por sua luta para preservar a unidade da Igreja. Em vez disso, ele vai ser lembrado como vítima das circunstâncias e de facções competitivas, como um pontífice afligido por escândalos, erros e gafes. Ele até reconstruiu muros que pareciam ter sido derrubados há muito. Seu papado consistiu de anos de apologias constantes e enganos, de fato ou não.
Ele irritou os protestantes, declarando que denominações diferentes da sua não são verdadeiras igrejas. Ele alienou os muçulmanos com um discurso inepto na cidade de Regensburg, na Baviera. E ele insultou os judeus ao reinserir uma prece para a conversão dos judeus na liturgia da Sexta-feira Santa.
Ele também esnobou a Igreja, fazendo favores para os tradicionalistas da Sociedade de São Pio 10º, que rejeita as reformas do Vaticano 2º. O atraso atual das reformas da Igreja, que já estava crescendo sob seu predecessor conservador, João Paulo 2º, continuou a aumentar com Bento. O Dia dos Católicos em maio na cidade de Mannheim, no sudeste alemão, com 80.000 participantes, foi um último grito por mudança na Igreja.
O fato do papa ser alemão não teve um efeito duradouro para alemães. Quando ele foi eleito, a mídia alemã falou de um “efeito Bento”, qual seja, de como um papa alemão ia influenciar positivamente a conversão e os índices de retenção na Alemanha. Mas esse efeito se dissipou rapidamente, se jamais existiu. Desde a eleição de Bento em 2005, o número de pessoas deixando a Igreja Católica da Alemanha mais do que dobrou e foi o mais alto recentemente na antiga Arquidiocese de Ratzinger, de Munique e Freising. Somente 30% dos alemães ainda são católicos hoje.
A alegação muitas vezes feita por católicos entusiasmados em programas de televisão alemães -que todo esse problema é alemão ou europeu e que a Igreja tem mais sucesso em outras partes- não é verdade nem na profundamente católica América Latina, aonde o número de católicos vem caindo profundamente. Cristãos evangélicos, por outro lado, estão se multiplicando como os pães e os peixes em Canaã.
[b]Frustrado por pessoas de dentro do Vaticano
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Ratzinger só conseguiu sobreviver a esses sete anos com pequenas escapadas. Além de suas tarefas diárias, ele escreveu livros e encíclicas sobre o amor cristão (“Deus Caritas Est”) e esperança (“Spe Salvi”).
Alguns de seus escritos se tornaram sucesso de vendas, mesmo na Alemanha, perdidamente secularizada. De fato, este papa conseguiu colocar o Vaticano de volta ao radar do mundo secular. Suas encíclicas, seus pensamentos sobre a razão e a fé, e suas críticas ao relativismo de todos os valores foram acompanhados de perto pela imprensa. Ele foi visto como papa que compreende o zeitgeist.
De fato, o fracasso do papa em atender certas expectativas muitas vezes beneficiou a Igreja. “O cristianismo, o catolicismo não é uma coleção de proibições; é uma opção positiva”, disse Bento antes de sua viagem para a Baviera em 2006. Apesar de defender o dogma e a doutrina pura, ele tenta não alienar todos, mesmo admitindo que nem sempre tenha tido sucesso. Agora, o papa parece tão cândido quanto a rainha da Inglaterra durante suas aparições. Ele sabe como cativar a multidão sem gestos espetaculares. Ele encontrou-se com sobreviventes do Holocausto em Auschwitz, vítimas de pedofilia nos EUA e pessoas com Aids em Camarões.
Bento compreendeu melhor do que outros qual é a verdadeira condição da Igreja -e como está distante de seu ideal. Seu obstáculo sempre foi a cúria. Talvez a lição dos últimos sete anos tenha sido o quão impotente pode ser um papa.
[b]Procura de um sucessor
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O papa só queria ser um “trabalhador simples e humilde nos vinhedos do Senhor”, “um servidor da verdade”. Agora ele está diante da realidade de sua própria mortalidade. Por algum tempo, ele foi tomado de períodos de “profunda tristeza”, diz uma fonte próxima a Bento, apesar de observar que não está claro se é meramente tristeza ou uma depressão genuína.
Ratzinger sobreviveu a dois derrames suaves no início dos anos 90. Tanto seu pai quanto sua irmã morreram de derrames. O papa toma aspirina como remédio preventivo. Ele é afligido por osteoartrite nos joelhos, especialmente o direito. Andar está ficando difícil para ele, que agora usa uma plataforma deslizante quando entra na Basílica de São Pedro ou quando está usando acessórios pesados.
Ele não sai de férias para as montanhas desde 2010. Algumas vezes, faz caminhadas curtas com seu secretário nos jardins do Vaticano, onde recita o rosário.
Na Cúria e nas salas internas dos palácios do Vaticano, já há esforços para se encontrar um sucessor. Os possíveis resultados de um conclave são analisados e os candidatos são discutidos, como ocorreu há sete anos. Alguns dizem que o próximo papa deve ser alguém como Pio 12, o papa entre 1939 e 1958, que era um agente previsível e engenhoso, de dentro do Vaticano. Ou alguém como Paulo 6, papa entre 1963 e 1978, que não dava atenção aos interesses da cúria. O nome do cardeal Angelo Scola, o arcebispo de Milão, foi mencionado, e o de Leonardo Sandri, cardeal argentino com raízes italianas. Outro possível candidato é o cardeal da Cúria Gianfranco Ravasi, presidente do Conselho Pontífice de Cultura e um dos poucos de dentro do Vaticano que está apto a lidar com a mídia, a política e o público.
Os italianos, com 30 votos, ainda formam o maior bloco do conclave. Alguns acreditam que, após mais de 33 anos de domínio estrangeiro -primeiro um polonês depois um alemão- é hora de eleger um papa italiano. Afinal, segundo os proponentes da ideia, um cardeal italiano conhece melhor a Cúria Romana. Mas as perspectivas dos italianos se estreitaram com o Vatileaks, diz o especialista em Vaticano Marco Politi. “Se o escândalo expôs uma coisa, foi a típica bagunça italiana. Os italianos não são mais papáveis. Eles perderam o crédito com sua luta pelo poder”.
[b]Últimos dias e legados
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O próprio Bento sabe que não tem muito tempo sobrando. “O último segmento da minha vida está começando”, disse aos convidados do aniversário em abril.
De fato, seu planejamento não passa de julho, quando vai participar do “Dia da Juventude Mundial” católico no Rio de Janeiro. Curar a cisão com o SSPX estará no topo da sua agenda nas próximas semanas, além de advertir os grupos em briga para exercitar respeito mútuo.
Com a briga que irrompeu em relação à avaliação das reformas do Vaticano 2º, que começou há 50 anos, o papa agora está vivenciando uma volta ao seu próprio passado. Será que o pastor que era liberal e hoje é conservador vai encontrar forças para promover uma reconciliação no final de sua vida? Para abrir um caminho entre a tradição e a modernidade dos 1,2 bilhões de católicos do mundo?
“Stalin estava certo em dizer que o papa não tem divisões e não pode emitir comandos”, disse Bento na entrevista de 2010 do tamanho de um livro “Luz do Mundo”. “Nem tem uma grande empresa, na qual todos os fiéis da Igreja são seus funcionários ou seus subordinados. Nesse respeito, o papa é, por um lado, um homem totalmente sem poder. Por outro, ele tem grande responsabilidade”.
Bento sempre se viu como um pontífice professor, mais do que governador. O papa professor da pequena aldeia de Marktl am Inn, na Baviera, sem dúvida não entrará para os anais da história da Igreja como Bento o Grande.
Mas ele será lembrado como o líder da Igreja com um rosto humano, como alguém que permaneceu verdadeiro a si mesmo como teólogo e como alguém que deu as costas ao poder dentro de suas próprias quatro paredes. Em outras palavras, como o papa com “p” minúsculo.
[b]Fonte: Der Spiegel[/b]