Quase metade dos brasileiros não sabe em quais situações o aborto é permitido pela legislação, ou seja, em caso de gravidez decorrente de estupro ou quando oferece risco de morte para a mãe – artigos previstos no Código Penal desde 1940. Os dados são de uma pesquisa realizada pelo Ibope, sob encomenda da organização não-governamental Católicas pelo Direito de Decidir (CDD).
Ao serem perguntados espontaneamente, 35% citaram a primeira hipótese, 17% mencionaram a segunda e 16% incluíram um terceiro item, que não está na lei, mas é permitido em alguns casos, por autorização judicial: quando o feto apresenta graves problemas. Houve ainda quem atribuísse a permissão a mães com aids (4%) ou à falta de recursos econômicos (3%).
Foram entrevistados em julho deste ano 2.002 homens e mulheres com mais de 16 anos, moradores de 143 municípios. O levantamento ainda vai ser publicado pela instituição.
“Tínhamos a suspeita de que a população não conhece a legislação e que parte do aborto legal está indo para as estatísticas do aborto inseguro. Por isso, encomendamos a pesquisa”, explica Rosângela Talib, coordenadora do trabalho, que, além do levantamento do Ibope, incluiu também uma pesquisa feita pelas próprias técnicas do CDD com hospitais credenciados para oferecer o serviço (leia na página ao lado). “A população tem de saber que ela tem esse direito, quais são os limites e possibilidades, inclusive para poder reivindicá-los justamente.”
Atualmente, por uma norma técnica do Ministério da Saúde, é permitido fazer o aborto nos dois casos previstos na lei até a 20ª semana de gestação. O prazo, no entanto, pode mudar de hospital para hospital. Em alguns, o limite é a 15ª e, em outros, a 12ª semana. Uma das explicações é a complexidade do procedimento, geralmente feito com menos complicações e riscos até os três meses.
As entrevistas mostraram ainda que, mesmo entre quem soube apontar pelo menos uma das situações, 95% não conseguiram dizer onde esse aborto legal pode ser feito. Outros 5% tentaram arriscar o nome de algum hospital de sua região – nem sempre corretamente.
“Essas respostas revelam um estar de olhos fechados para muitas informações que estão circulando por aí. O aborto é mitificado, tabu. Ninguém pode ser a favor, essa não é a questão. A questão é que devemos respeitar e garantir um direito da mulher que está na lei”, afirma a jurista Silvia Pimentel, professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e vice-presidente do Comitê da Convenção da ONU sobre Eliminação de todas as Formas de Discriminação contra a Mulher.
“Existe um grande desconhecimento, mas também um avanço. A lei é de 1940, mas ficou esquecida e somente no fim dos anos 80, e mais intensamente nos anos 90, foi trazida para a área da saúde”, explica Jefferson Drezzet, coordenador do Serviço de Atenção Integral à Mulher Vítima de Violência Sexual do Hospital Estadual Pérola Byington, um dos centros de referência ao atendimento à saúde da mulher no País.
De acordo com o médico, ainda há muitas dúvidas dos próprios profissionais de saúde. “Não é algo que fez parte da formação deles, e o tema desperta reações muito apaixonadas e, às vezes, irracionais, que não têm nada a ver com o ordenamento jurídico que prevê esse atendimento”, diz.
Uma pesquisa feita no ano passado pela Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia (Febrasgo) com todos os profissionais credenciados mostrou, por exemplo, que 66% deles pensam que é necessário autorização judicial para fazer o aborto nos dois casos previstos no Código Penal. Além disso, 31% deles disseram acreditar que o aborto no caso de má-formação congênita grave, como anencefalia, estava incluído na lei.
Drezzet afirma que o desconhecimento pode ser responsável também pelos números oficiais: desde 1989, ano em que foi inaugurado o primeiro serviço de aborto legal, no Hospital Jabaquara, em São Paulo, 1.606 mulheres foram atendidas no Brasil. No Pérola, um dos centros que mais atende esses casos, no ano passado foram recebidas 110 mulheres. Dessas, 69 fizeram aborto.
Isso porque, ao chegar ao hospital, a mulher é atendida por uma equipe multidisciplinar. Primeiro, faz uma entrevista com a assistente social, depois com a psicóloga. Por fim, vai para a consulta médica.
Cinco estados não fazem aborto previsto em lei
Ao consultar a lista dos 62 hospitais credenciados no Ministério da Saúde para fazer aborto legal e telefonar para cada um, o grupo Católicas pelo Direito de Decidir (CDD) descobriu que somente 40 ofereciam o atendimento de fato. Além disso, em cinco Estados – Roraima, Amapá, Tocantins, Piauí e Mato Grosso do Sul – não foi localizado um único hospital que confirmasse fazer o procedimento.
É possível que alguma instituição faça o aborto legal nessas regiões, mas não consta da lista oficial. Ou seja, dificilmente será localizado. “Teve uma telefonista que falou: ‘Cruz credo, aqui a gente não faz isso’. Isso faz com que não possamos conhecer totalmente a realidade. Outros disseram que só fazem o atendimento de emergência para violência sexual e encaminham para aborto em outro local”, diz Rosângela Talib, da CDD. “Se falaram isso para a gente, imagina como recebem uma mulher que chega procurando o atendimento.”
Os dados completam outra pesquisa, inédita, feita pela Febrasgo em parceria com a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e financiada pelo Ministério da Saúde. Em uma amostragem que incluiu todos os municípios com mais de 100 mil habitantes, foram encontrados 80 serviços – a diferença entre os levantamentos ocorre porque nem todos os hospitais que oferecem aborto legal estão credenciados.
“Encontramos um abismo entre hospitais que dizem que fazem e os que realmente fazem. De cada 5 que dizem fazer, apenas 1 faz mesmo. Eles têm medo da reação da sociedade local, de manchar sua reputação”, afirma Aníbal Faundes, professor da Unicamp e um dos responsáveis pela pesquisa. “Outros dizem que ninguém vai pedir, mas ninguém pede porque eles não querem que ninguém saiba. Teve um que pediu para a gente não divulgar que fazia.”
Mesmo assim, ele ressalta que houve um avanço. “Temos de pensar historicamente e lembrar que, em 1996, havia apenas 4 hospitais que faziam aborto legal, dois em São Paulo, um em Campinas e um no Rio.”
Com isso, há uma migração para os locais tidos como referência. “No mês passado, atendemos uma mulher que viajou de ônibus do Piauí. Era um estupro por um familiar. Ela não encontrou onde fazer lá e ficou sabendo que aqui tinha”, diz Irotilde Pereira, do Hospital Jabaquara, que recebe cerca de um caso do tipo por mês.
Desencontro
Além da dificuldade de informação, em 30% dos hospitais ainda é exigido o boletim de ocorrência – medida que não é mais necessária segundo portaria publicada pelo ministério, apesar de existir uma recomendação do Conselho Federal de Medicina (CFM) em favor de manter o pedido, para a segurança do próprio médico.
É o caso de Goiás, onde há três hospitais que exigem o boletim de ocorrência. “Os médicos têm medo do processo criminal”, afirmou o promotor público estadual Isaac Benchimol. Outra razão para a exigência é a resistência do Estado, segundo o promotor Maurício Nardini. “A exigência de um B.O. é absurda. O Estado já deveria ter-se enquadrado à lei”, disse.
No Mato Grosso do Sul, a informação é que, sem autorização da Justiça, não existe atendimento para mulheres com gravidez indesejada. O governo do Estado não colocou em prática nenhum programa do gênero e as vítimas de estupros, por exemplo, precisam passar por vários órgãos públicos para conseguir o atendimento.
Segundo a diretora de Assistência à Saúde do Tocantins, Margareth Vicentini, um único centro em Palmas é preparado para atender os casos, o Hospital Maternidade Dona Regina. Não há, contudo, nenhum registro até agora. Margareth acredita que isso reflete a religiosidade da população. “Se a mulher é estuprada, acho que ela fica com o filho, mesmo que depois dê para adoção.”
Representantes das secretarias de Saúde do Amapá, de Roraima e do Piauí foram procurados pelo Estado até as 20 horas de ontem mas não responderam. O Ministério da Saúde também informou que a responsável pela Área Técnica de Saúde da Mulher, indicada para comentar os dados da pesquisa, estava fora do País.
Fonte: Estadão