Originado nos cultos de candomblé, onde servia como uma oferenda a Iansã, rainha dos raios e dos ventos, o acarajé tem mais de 300 anos de existência. Os evangélicos chamam a iguaria de “bolinho de Jesus”, e alguns deles se recusam a vestir o traje de baiana.

Ao longo desse período, uma série de mudanças ocorreu: a receita já não leva apenas o tradicional bolinho de feijão; a vestimenta branca, a saia rodada e a bata que caracterizam a vestimenta da baiana foram substituídas por outras roupas; e a preparação do quitute – até então restrita às mulheres – passou também a ser feita por homens.

Além disso, o acarajé deixou de ser encontrado somente no tabuleiro da baiana e, hoje, pode ser comprado em delicatessens e restaurantes. Outra transformação, esta mais recente, é a venda da iguaria por pessoas de outras religiões, além do candomblé. Os evangélicos, por exemplo, chamam a iguaria de “bolinho de Jesus”, e alguns deles se recusam a vestir o traje de baiana. Essas mudanças fazem com que o acarajé perca a identidade?

O assunto é polêmico e divide opiniões, mas, para a antropóloga Gerlaine Martini, do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB), sim. O assunto fez parte da sua tese de doutorado defendida em julho de 2007. Intitulado Baianas do Acarajé – A uniformização do típico em uma tradição culinária afro-brasileira, a autora analisou as transformações sofridas por suas formas tradicionais de venda a partir do século XX.

Além da busca pela natureza e a importância da atividade da venda de acarajé em Salvador, o trabalho tem como cerne o surgimento do chamado “acarajé de Jesus”, prática bastante recente da venda de acarajé por baianas convertidas ao protestantismo, principalmente o neopentecostal, que almejava se desvincular totalmente da tradição.

Religião

“Percebemos uma forte mudança na tradição quando adeptas do candomblé se tornam protestantes. Mesmo professando uma nova crença, desejam manter sua fonte de renda. Para isso, decidem retirar todos os signos que liguem o quitute à religião africana, como a roupa branca, o turbante e as contas no pescoço. Desfiguram o ofício ao querer que o acarajé seja visto não como uma oferenda, mas apenas como uma refeição”, explica a antropóloga brasiliense.

Para realizar o trabalho, Gerlaine Martini residiu no terreiro Ilê Odô Ogê – Pilão de Prata, localizado na Boca do Rio, e permaneceu um período no Pelourinho, onde se encontra a sede da Associação das Baianas do Acarajé e Mingau (Abam). “Também procurei visitar diversos bairros, as festas de largo e busquei inclusive os tabuleiros dos considerados evangélicos. Observei o cotidiano de venda nos pontos, desde os de menores recursos até os mais consagrados pela opinião popular”, relata.

Na opinião da antropóloga, além da venda do acarajé por pessoas de diferentes religiões, outra mudança que descaracteriza o quitute é a venda do produto fora dos tabuleiros.
“A existência do tabuleiro e o fato de ser preparado na rua são tradições que devem ser respeitadas. Isso precisa ser preservado, e deixa de ser quando o acarajé passa a ser vendido em restaurantes e delicatessens”, diz.

Para a presidente da Abam, Maria Leda Marques, o crescimento indiscriminado da venda de acarajés em Salvador, seja por estabelecimentos ou por adeptos de outras religiões, é um dos fatores que podem levar a uma possível perda de identidade.

“Há pessoas vendendo o acarajé sem nenhum compromisso com a nossa história, com a cultura, e é preciso preservá-la independentemente da religião. É preciso saber conviver com as diferenças, mas respeitando o lado cultural”, afirma.

Maria Leda critica a postura adotada por algumas vendedoras de acarajé evangélicas que chamam a iguaria de “bolinho de Jesus” e se recusam a se trajar de baiana. “Eu desconheço que, em algum momento na história, Jesus Cristo tenha comido acarajé para que eles chamem de o bolinho de Jesus. O acarajé, até hoje, é uma oferenda a Iansã, pertence e sempre pertenceu aos orixás. Não podemos e nem queremos impedir quem quer que seja de vender acarajé. O que pedimos é que respeitem a história”, exige.

Segundo ela, mesmo ao ser vendido num contexto profano, o acarajé ainda é considerado pelas baianas tradicionais uma comida sagrada. “Apesar de todas essas mudanças, para as baianas legítimas, o bolinho de feijão-fradinho frito no azeite de dendê não pode ser dissociado do candomblé. Daí a importância de se manter a receita e lutar para que essa tradição seja passada de pais para filhos”.

Fonte: A Tarde Online

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