Embora historicamente contrários aos jogos de azar, os evangélicos no Brasil mostram comportamentos similares ao restante da sociedade quando se trata de apostas digitais, como bets e cassinos virtuais. Uma pesquisa do Datafolha revela que, enquanto modalidades tradicionais, como loterias e jogo do bicho, têm menor adesão entre os crentes, as versões contemporâneas de apostas apresentam índices comparáveis aos de outros grupos religiosos.
Segundo o levantamento, 19% dos evangélicos jogam em loterias da Caixa, como a Mega-Sena, enquanto 9% tentam a sorte na Loteria Federal e 4% recorrem ao jogo do bicho. Entre os católicos, essas taxas são consideravelmente mais altas: 36%, 15% e 10%, respectivamente.
No entanto, quando o foco são as apostas esportivas online e cassinos digitais, a diferença entre os dois grupos cristãos diminui. O índice de católicos que já se engajaram em bets ou no “jogo do tigrinho” é de 19%, enquanto entre evangélicos a taxa chega a 23%, número dentro da margem de erro da pesquisa.
Impacto financeiro e social
Apesar do apelo, a rejeição ainda predomina. O Datafolha indica que 66% dos evangélicos e 63% dos católicos são favoráveis à proibição de apostas esportivas online. Cassinos digitais têm ainda menos aprovação, com oito em cada dez entrevistados, de ambos os grupos, apoiando seu banimento.
Os dados também mostram diferenças nos hábitos financeiros. Entre os evangélicos que apostam, o gasto médio mensal em bets é de R$ 186, contra R$ 290 dos católicos. Já nos cassinos digitais, os valores sobem para R$ 337 e R$ 517, respectivamente.
A pesquisa também revelou que evangélicos são mais suscetíveis à propaganda de jogos online em redes sociais: 36% desse grupo têm contato com apostas por meio dessas plataformas, em comparação com 26% dos católicos.
Mudança de comportamento
Para o pastor e teólogo Victor Fontana, da Comunidade Presbiteriana da Vila, essa maior adesão às apostas digitais entre evangélicos pode ser explicada por fatores como o formato acessível e discreto dessas modalidades. “Diferente de ir a uma lotérica ou enfrentar o constrangimento social de ser visto jogando, o ambiente digital permite que a pessoa jogue de forma mais privada”, aponta Fontana.
Ele também relaciona essa prática à Teologia da Prosperidade. “Frases como ‘profetiza que agora é sua vez’ acabam dialogando com a crença de bênçãos imediatas, especialmente se pensarmos em histórias bíblicas como o milagre de Jesus, que incentivou pescadores a lançar suas redes novamente”, avalia.
A pesquisadora Marília de Camargo Cesar, autora de Feridos em Nome de Deus (clique aqui para comprar na Amazon), reforça que slogans de apostas, como “Profetizou, jogou, sacou”, aproveitam uma linguagem familiar ao público evangélico, que associa o verbo “profetizar” a manifestações positivas no mundo espiritual. “É uma jogada de marketing inteligente, que cativa especialmente os crentes”, diz.
O dilema das apostas e a fé
Pastores estão preocupados com o aumento de dependência em jogos entre os fiéis. Reportagens apontam que a “facilidade do celular” contribui para essa realidade. Segundo Vinicius do Valle, cientista político do Observatório Evangélico, a barreira logística de apostar em loterias ou jogos tradicionais ainda funciona como um desestímulo. “Ir a uma lotérica exige enfrentar uma fila e ser observado, algo que muitos evitam por considerar pecado. O digital remove esses obstáculos”, explica.
Para Valle, o ambiente digital das bets dissocia a prática do conceito de pecado. “Entrar numa lotérica ou cassino é moralmente mais marcante; apostar pelo celular parece menos transgressor. Isso facilita que a prática se insira de forma mais sutil, mesmo em comunidades historicamente avessas ao jogo”, conclui.
“Mordomia total“
O teólogo Lourenço Stelio Rega considera que, ainda que os apostadores sejam evangélicos, o cenário religioso atual produz uma visão mais de busca de um Deus que seja um solucionador, um tipo de ‘garçom’, para atender as demandas da pessoa. “As bets seguem esse tipo de atendimento, e a pessoa, seja evangélica ou não, deseja conquistar mais recursos, além de ser um tipo de entretenimento.”
Rega acredita que a igreja precisa oferecer aos membros o ensino bíblico da “mordomia total” na gestão da vida. “Infelizmente o termo ‘mordomia’ acabou ficando como sinônimo de dízimo e contribuição para a igreja, mas o ensino bíblico desse tema alcança toda a vida da pessoa”, pontua Lourenço. Ele avalia que é preciso recuperar o sentido bíblico da “mordomia total” em que tudo é de Deus. “Somos apenas administradores de nosso tempo, bens, nome, corpo e tudo o mais (Rm 12.1; Gl 2.20; Lc 9.23).”
Segundo o teólogo, no passado, havia a Teologia da Prosperidade, atualmente a prosperidade é oferecida pelas bets. “A pessoa, mesmo evangélica, em vez de buscar a Deus e os ideais bíblicos, procura prosperar pelos jogos virtuais”, conclui Rega.
Prosperidade rápida
A partir dessa mesma perspectiva, o teólogo Magno Paganelli aponta para a visão de uma prosperidade rápida, sem esforço, trabalho e investimento. “Esses sites de apostas são vistos por essa parcela de evangélicos como um meio pelo qual Deus pode abençoá-los. Afinal de contas, eles pensam que o gasto é pouco diante da possibilidade de um ganho alto.” Os apostadores não percebem que nunca ficarão em uma única aposta. Desse modo, “gastam muito e não obtém o retorno desejado”.
Paganelli acredita que essa mentalidade é impulsionada entre os evangélicos pela Teologia da Prosperidade, que foca na bênção, na profecia, na determinação, inclusive, com uma leitura enviesada de certas promessas do Antigo Testamento direcionadas a Israel que não deveriam ser aplicadas à igreja. “Não é toda prosperidade que é bem vista aos olhos de Deus e nem provém dEle”, comenta, acrescentando ser importante que a igreja aborde a prática dos jogos online para levar os fiéis ao entendimento de que estão cometendo pecado. “Em muitas igrejas o que menos se prega é sobre o pecado.”
Retorno ao Evangelho
Na visão da pastora Eristelia Bernardo, o número de evangélicos que realizam apostas online é o reflexo daquilo que está sendo ou não pregado em cima dos púlpitos. “Há muita distorção da Palavra, além da Teologia da Prosperidade, fazendo com que cristãos tenham uma vida desregrada, longe dos princípios bíblicos.”
Como reflexo, diz a pastora, os crentes estão materialistas e sem conhecimento dos ensinamentos das Escrituras. “A Palavra do Senhor nunca orienta a sermos carnais numa busca desenfreada por prosperidade”. Sendo assim, Eristelia observa que a maneira bíblica para prosperar é planejar bem e trabalhar com dedicação (Provérbios 21.5).
Além disso, os jogos de azar são contrários aos ensinamentos bíblicos, prega Eristelia, que lidera Igreja Casa do Pai, em Governador Valadares (MG). “Portanto, aqueles que buscam retorno financeiro a partir de tal prática estão afastados da fé.” Ela lembra que muitos ficam iludidos com lucros obtidos, mas esquecem que os prejuízos com certeza chegarão.
Ela compartilha que, recentemente, atendeu uma pessoa que está endividada, justamente devido às apostas online. “Na verdade, ela começou a jogar para sanar dívidas e acabou ficando não resolvendo o problema e contraindo ainda mais dívidas.”
Para finalizar, a pastora Eristelia salienta que parece que as bets compreenderam que os cristãos vivem, hoje, um Evangelho raso. Isto porque elas misturam o profano com o sagrado ao utilizar o slogan “Profetizou, jogou, sacou”. Isso só “reforça a necessidade urgente de retornar à genuína Palavra de Deus.”
Fonte: Folha de S. Paulo e Comunhão