Na quarta-feira (17), o Canadá se tornou a primeira grande economia do mundo a legalizar o uso recreativo da maconha, dando início a um experimento nacional que mudará o tecido social, cultural e econômico do país, e apresentará à nação seu maior desafio em décadas, em termos de política pública.
Em todo o país, com a abertura de lojas de maconha do governo desde Newfoundland até a Columbia Britânica, canadenses esperaram exultantes durante horas na fila para comprar os primeiros baseados aprovados pelo Estado. Para muitos foi um momento seminal, semelhante ao fim da Lei Seca nos Estados Unidos nos anos 1930.
Foi também um unificador improvável, neste momento em que o Canadá tem sido atacado por agressivas negociações comerciais com os Estados Unidos e viu seu primeiro-ministro, Justin Trudeau, ser ridicularizado repetidas vezes pelo presidente americano Donald Trump. O Canadá é o segundo país do mundo, depois do Uruguai, a legalizar a maconha.
“Nunca me senti tão orgulhoso em ser canadense como agora”, disse o zelador Marco Beaulieu, 29, enquanto esperava junto com amigos do lado de fora de uma loja de cannabis do governo na região leste de Montreal. “O Canadá voltou a ser um líder global progressista. Temos direitos dos gays, feminismo, direito ao aborto, e agora podemos fumar maconha sem ter medo de sermos presos pela polícia”.
“É um polvo de muitos tentáculos, e há muitas incógnitas”, ele acrescentou. “Não acho que quando o governo federal decidiu legalizar a maconha ele tenha pensado bem em todas as consequências”.
Em um duro editorial publicado na segunda-feira, por exemplo, o Canadian Medical Association Journal, periódico da associação médica canadense, disse que o plano de legalização do governo era um “experimento sem controle no qual o lucro dos produtores de maconha e as arrecadações de impostos estão sendo colocados contra a saúde dos canadenses”.
O órgão pede que o governo prometa mudar a lei caso ela leve a um maior uso de maconha.
Pela nova lei federal do Canadá, adultos poderão portar e dividir com outros adultos até 30 gramas de cannabis seca, o suficiente para cerca de 60 cigarros. Eles também poderão cultivar um máximo de quatro pés de maconha por casa na maioria das províncias.
A maconha para fins medicinais já é legal no Canadá desde 2001, e cerca de 330 mil canadenses, incluindo pacientes de câncer, estão registrados para recebê-la de produtores autorizados.
Baseados prontos, flores frescas ou secas de maconha e óleo de cannabis são todos permitidos pela lei. Comestíveis de maconha, como balinhas de goma, manteiga de amendoim e café com infusão da cannabis, só serão legalizados daqui a um ano.
De acordo com a agência nacional de estatísticas do Canadá, 4,9 milhões de canadenses usaram cannabis no ano passado e consumiram mais de 20 gramas de maconha por pessoa, gastando um total de US$ 5,6 bilhões (mais de R$ 20 bilhões).
Na manhã de quarta-feira, o governo anunciou que introduziria uma legislação para facilitar o perdão a canadenses que tenham sido condenados por posse de pequenas quantidades de maconha.
Embora o governo não esteja oferecendo uma anistia geral, Ralph Goodale, ministro da Segurança Pública, disse em uma coletiva de imprensa em Ottawa que “por justiça básica”, o governo procuraria acabar com o período mínimo de espera de cinco anos para solicitar perdão, além de dispensar a taxa de 631 dólares canadenses.
O governo federal deixou que as 13 províncias e territórios do país executem a nova legislação e estabeleçam suas próprias regras, criando uma miscelânea de regulações. Entre as muitas dúvidas em aberto estão como a polícia testará os motoristas que possam estar alterados e como os empregadores lidarão com os funcionários que fumem antes do trabalho.
Bernard Le Foll, especialista em dependência no Centro de Dependência e Saúde Mental de Toronto, importante hospital-escola e organização de pesquisa, disse que embora o centro apoiasse a legalização, temia que a disseminação pública de informação sobre os riscos tenha sido insuficiente.
“A cannabis não é uma substância benigna”, disse Le Foll. “Existe um risco claro de dependência, e ela pode produzir problemas significativos de saúde mental caso seja usada pelo tipo errado de pessoa”.
Jean-Sébastien Fallu, professor associado de psicologia aplicada e especialista em dependência na Université de Montréal, disse que se preocupava particularmente com os efeitos sobre os jovens.
“Não queremos que os jovens se sintam estigmatizados, por exemplo, caso não usem maconha”, disse Fallu.
A legalização da maconha levou a uma chamada “corrida verde”, com produtores autorizados de cannabis pressionando para entrar nessa indústria que deverá representar US$ 5 bilhões (mais de R$ 18 bilhões) até 2020, reforçada pela chegada prevista de milhares de turistas vindos dos Estados Unidos atrás de maconha.
No primeiro dia de venda legal de maconha para uso recreativo no Canadá, muitos estabelecimentos autorizados viram seus estoques se esgotarem. Até mesmo lojas on-line ficaram sem produto diante da enorme demanda.
Clientes formaram filas enormes em frente das lojas na quarta-feira 17, o primeiro dia da legalização. Em alguns lugares, pessoas acamparam na frente dos estabelecimentos desde a noite anterior.
Pelo menos 111 lojas legalizadas devem ser inauguradas no país, mas nenhuma loja abrirá em Ontário, província que inclui Toronto. A região mais populosa do Canadá ainda está aprovando as regras para a venda e não espera lojas até a próxima primavera.
A legalização foi uma promessa de campanha do primeiro-ministro Justin Trudeau. As leis, aprovadas pelo Parlamento em junho, regulam a produção, a comercialização e o consumo da droga.
O argumento apresentado para a legalização da maconha foi domar um comércio ilegal calculado em 5,3 bilhões de dólares canadenses em 2017. Mas de Toronto até Winnipeg, passando por Vancouver, centenas de lojas ilegais já indicaram que não têm intenção nenhuma de fechar, e o mercado negro continua profundamente consolidado.
Advertência dos EUA
Enquanto isso, o Escritório de Alfândega e Proteção Fronteiriço dos Estados Unidos (CBP) advertiu que não vai admitir a entrada de canadenses que cheguem com a intenção de “ajudar a proliferação do negócio da maconha” na nação vizinha, e que a droga segue sendo ilegal segundo a lei federal, apesar do uso autorizado em alguns estados e localidades.
“Se um canadense está vindo aos Estados Unidos e não tem nada a ver com a indústria da maconha ou a proliferação desta indústria, essa pessoa geralmente será considerada admissível”, esclareceu o funcionário do CBP Christopher Perry em coletiva de imprensa em Detroit, Michigan (na fronteira canadense).
Fonte: The New York Times e Veja.com