Avesso a controvérsias públicas, ele viveu conflito entre sua formação cristã e suas descobertas científicas. Darwin não era ateu. Fez, inclusive, faculdade para ser pastor anglicano. Em seu livro “A Origem das Espécies”, Darwin abandonou completamente a idéia de um Criador que interferia ativamente no mundo natural.

Charles Darwin era um homem cauteloso. Por 20 anos ele manteve sua teoria da evolução em segredo, conduzindo experimentos em seu jardim e estudando a literatura científica para, já de antemão, tentar responder todas as dúvidas e críticas que inevitavelmente seriam lançadas sobre ela.

Estava convicto de suas conclusões, mas tinha plena consciência do impacto avassalador que sua tese teria sobre o pensamento científico e religioso da época. E queria estar preparado.

Além disso, era um pensador reservado, avesso a enfrentamentos públicos e bate-bocas de qualquer natureza. Tanto que, ao fazer a redação final de A Origem das Espécies, retirou propositalmente sua conclusão mais polêmica: de que o homem não era uma criatura divina, criada por Deus à sua imagem e semelhança, mas um animal orgânico, puramente material, e de descendência comum com gorilas, orangotangos e chimpanzés. Uma espécie altamente evoluída de macaco, para ser bem sincero.

De fato, Darwin não menciona o ser humano em nenhum momento do livro. Mas foi pouco para acolchoar o impacto. Assim que chegou às livrarias de Londres, em novembro de 1859, A Origem das Espécies explodiu como uma bomba atômica sobre a sociedade vitoriana do século 19, espalhando nuvens incendiárias de polêmica por todo o planeta. E o parentesco de homens e primatas, de qualquer maneira, virou semente da discórdia.

Começava, assim, “o primeiro debate científico internacional da história”, segundo a historiadora inglesa Janet Browne, da Universidade Harvard. A ciência passou a fornecer respostas para perguntas que, até então, eram respondidas apenas pela fé – algo que não caiu muito bem com os religiosos. “O fato era que Darwin parecia expulsar por completo o divino do mundo ocidental, pondo em dúvida tudo que até então se acreditava sobre a alma humana e nosso sentido de moralidade”, escreve Browne em seu último livro, A Origem das Espécies de Darwin, lançado no Brasil esta semana.

Revolução

Charles Darwin não foi o primeiro a escrever sobre evolução. Mas foi o primeiro a propor, de maneira convincente, um mecanismo puramente biológico capaz de explicar a origem e a diversidade de todas as formas de vida. Nada de espíritos, projetos, propósitos ou intervenção divina: apenas variações aleatórias e seleção natural. Biologia pura.

A inferência de que o homem evoluíra dos macacos era apenas um detalhe. “Por mais surpreendente que pareça, houve pouca oposição ao livro de Darwin sob a alegação de que ele contestava diretamente o relato da criação feito no Gênesis”, observa Browne. “Desde o Iluminismo, os estudos bíblicos estimulavam os cristãos a ver essas antigas histórias como poderosas metáforas, não como narrativas literais. O fundamentalismo bíblico é um problema moderno, não vitoriano.”

Criacionismo

O renascimento do criacionismo e de outros movimentos antidarwinistas nos últimos anos é surpreendente. Principalmente nos Estados Unidos, onde quase metade da população não acredita na evolução, segundo uma pesquisa da revista Newsweek. Talvez nem Darwin pudesse prever que, 150 anos após a publicação de sua obra, o confronto entre criação e evolução continuaria a ferver nas manchetes, salas de aula e tribunais de Justiça.

A pauta do debate não mudou muito: se o homem não é nada mais mesmo do que um aglomerado de matéria orgânica, sem alma nem propósito, onde fica Deus? Como ficam os valores morais e as tradições familiares? Qual o propósito da vida? Como interpretar a Bíblia e outros textos sagrados? E hoje, que temos o conhecimento da biologia molecular e do genoma: será o ser humano nada mais do que um punhado de genes egoístas?

“As semelhanças são incríveis”, disse Browne, em entrevista exclusiva ao Estado do seu escritório no Centro de Ciências de Harvard. “As controvérsias são basicamente as mesmas.” Mas com uma diferença importante: a fé deixou de ser o único contraponto. Agora, mais do que nunca – talvez pela primeira vez -, criacionistas ortodoxos usam argumentos científicos para atacar o trabalho de Darwin, questionando metodologias e reinterpretando evidências na tentativa de apresentar a história da Bíblia como algo cientificamente comprovável.

“O mais interessante é que, agora, os críticos estão dizendo que a ciência está errada”, afirma Browne. “Quando Darwin publicou A Origem das Espécies, a maioria das pessoas aceitava que suas informações estavam, muito provavelmente, corretas. O que elas criticavam eram as conclusões que ele desenhou a partir dessas informações. A teoria era rejeitada em bases teológicas, não científicas.”

Criacionistas modernos defendem que a Terra tem apenas 6 mil anos de idade (em vez de 4,5 bilhões), que dinossauros conviveram com seres humanos, e que as técnicas de datação usadas na geologia e na paleontologia estão erradas. No Estado americano do Kentucky há até um sofisticado Museu da Criação, de US$ 27 milhões, com dinossauros robóticos, planetário, cinema e uma reconstrução da Arca de Noé. Fósseis de animais extintos são apresentados como vítimas do Dilúvio – aqueles que não conseguiram um lugar no barco.

“O método científico está sendo atacado nos seus princípios mais básicos”, observa Browne. “Isso é muito difícil para os cientistas aceitarem.”

Moralidade

O novo criacionismo, segundo a historiadora, parece ser alimentado por uma sensação de perda de valores e tradições morais. “A sociedade moderna está repleta de dificuldades, pobreza, desamparo, e é provável que as pessoas com espírito religioso relacionem isso a um secularismo, uma perda de fé”, afirma Browne. “O ataque à evolução é um ataque à secularização.”

O cenário no qual Darwin produziu seu livro – a Europa do século 19 – era um mundo repleto de certezas, explica Browne. E a maioria dessas certezas era expressa por meio de crenças religiosas, que proporcionavam às pessoas uma razão para sua existência. “Aí veio Darwin e produziu um livro dizendo que os seres humanos eram apenas produtos naturais, que tudo dentro de nós, tudo que pensamos e fazemos, é simplesmente um resultado da natureza, que não há nenhuma dádiva de um poder sobrenatural. Isso era muito desconcertante.”

Princípios

Darwin não era ateu. Fez, inclusive, faculdade para ser pastor anglicano – depois de abandonar a Escola de Medicina de Edimburgo, para onde seu pai o havia enviado aos 16 anos de idade. Não tinha estômago para o trabalho de médico, e a carreira eclesiástica era uma alternativa honrosa aos olhos da família e da sociedade. Entrou para o Christ’s College, de Cambridge, e talvez tivesse virado pastor mesmo, não fosse por um convite que apareceu no meio do caminho para se juntar a uma certa expedição.

A missão do navio HMS Beagle era cartográfica: prospectar e mapear águas da América do Sul. O capitão, Robert FitzRoy, porém, queria levar alguém que também pudesse coletar espécimes e fazer estudos científicos ao longo do caminho. Darwin (que sempre se dedicou a colecionar besouros e às cadeiras de história natural mais do que à teologia ou medicina) foi indicado ao posto por seu professor de botânica, John Henslow.

Em dezembro de 1831, o jovem naturalista embarcou para uma odisséia marítima de cinco anos que o carregaria ao redor do mundo, com passagens pelo Brasil e, é claro, pelas Ilhas Galápagos do Equador.

Conflito

Darwin nunca se acostumou ao balanço do mar e passou praticamente toda a viagem nauseado. O maior redemoinho de todos, porém, estava em sua cabeça. Quanto mais aprendia sobre o mundo natural, mais Darwin questionava sua própria fé.

“Não há dúvida de que ele viveu um conflito”, afirma Browne. Quando se juntou ao Beagle, Darwin era um jovem que acreditava na Bíblia. Ao longo da viagem, entretanto, a Bíblia gradativamente perdeu significado para ele. Quando retornou da expedição e começou a trabalhar em sua teoria, Darwin foi forçado a reavaliar profundamente suas crenças.

Por fim, se proclamaria um agnóstico: termo cunhado pelo amigo Thomas Huxley para descrever alguém que não vê provas de Deus, mas não descarta completamente sua existência. “Quando escreveu A Origem das Espécies, Darwin abandonou completamente a idéia de um Criador que interferia ativamente no mundo natural. Ele tinha, sim, a sensação de que algo supernatural existia, mas seja lá o que fosse, esse deus não tinha influência sobre o mundo natural”, explica Browne.

Demora

Vários dos amigos de Darwin também eram agnósticos, ou até religiosos, e ele tomava grande cuidado em seu texto para não ofendê-los. Essa foi uma das razões, também, para o parto demorado de A Origem das Espécies.

Ninguém sabe quanto tempo mais ele levaria para publicar o livro, não fosse pela intervenção de um outro naturalista inglês, Alfred Russel Wallace. Em junho de 1858, Darwin foi surpreendido por uma carta na qual o colega descrevia uma teoria da evolução idêntica à sua. Sem saber da obra secreta de Darwin, Wallace havia descoberto a seleção natural por si só, enquanto pesquisava nas florestas do sudeste asiático. Como não tinha influência dentro da comunidade científica, resolveu enviar sua teoria a Darwin, em vez de alguma revista especializada. Queria saber o que o colega achava da idéia.

Darwin entrou em pânico. Após duas décadas de cuidadosas pesquisas, o pioneirismo de sua teoria estava seriamente ameaçado. Ele consultou seus dois amigos mais próximos, Joseph Hooker e Charles Lyell. A decisão foi escrever um texto misto, assinado por Darwin e Wallace, para apresentação na prestigiosa Sociedade Lineana de Londres. O manuscrito foi lido no dia 1º de julho de 1858, e não causou lá muito alvoroço.

Wallace só ficou sabendo três meses depois – tempo que levava para o correio chegar até a Indonésia. Há quem acredite que Darwin se aproveitou da situação, e que poderia até ter roubado idéias de Wallace para sua teoria. O próprio Wallace, porém, jamais reclamou de alguma coisa. Pelo contrário: “Ele ficou extremamente entusiasmado e os dois viraram bons amigos”, garante o especialista Andrew Berry, professor de biologia evolutiva de Harvard e especialista na história de Wallace. “Nunca houve uma gota de ciúmes ou descontentamento.”

“Darwin escrevia tudo que pensava e nunca jogava nada fora. Há evidências mais do que suficientes de que sua teoria estava completa naquele momento. Portanto, não havia motivo para plágio”, diz Berry.

Legado

A Origem das Espécies foi finalmente publicado em novembro de 1859. Charles Darwin virou um ícone instantâneo. Wallace, no final das contas, caiu no esquecimento.

“Temos de dar crédito ao grande livro de Darwin: fabuloso, detalhado e muito bem pensado”, observa Browne. Para ela, a história de A Origem das Espécies é, em muitos aspectos, a história do mundo moderno. Como diria o geneticista Theodore Dobzhansky em 1964, “nada na biologia faz sentido a não ser sob a luz da evolução”.

Fora dos laboratórios, as idéias evolutivas de Darwin infiltraram todas as expressões do pensamento humano, para o bem e para o mal. A seleção natural é usada para explicar tanto o desenvolvimento de espécies quanto a sobrevivência de empresas no mercado globalizado. A “lei do mais forte” já foi usada como bandeira para justificar expansões imperiais, guerras e genocídios. E a evolução, quando mal interpretada, já motivou preconceitos raciais de todos os tipos.

Darwin carregou o fardo e as glórias de sua obra por 23 anos, até sua morte em 1882. Ironicamente, o homem que desafiou a autoridade da Igreja foi enterrado com honras na sagrada Abadia de Westminster, aclamado como um gênio à altura de Isaac Newton.

“Considerando a ferocidade com que fui atacado pelos ortodoxos, parece risível que eu tenha outrora pretendido ser pastor”, escreveria o gênio em sua autobiografia.

Fonte: Estadão

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