A salvação dos talentos e dos dons espirituais

Quando alguém é contratado para trabalhar numa fábrica de perfumes, dá-se a tal indivíduo, no início, a liberdade para testar todas as fragrâncias, pois pode ser que assim ele se torne apenas um profissional, e não mais um potencial ladrão do que mais ama: aromas.

O mesmo se faz com alguém contratado por uma fábrica de chocolate, e que vai trabalhar na linha de produção. É-lhe permitido comer de tudo o que quiser, até que perca a vontade.

Os dois exemplos bem ilustram qual é o caminho que uma pessoa cheia de desejos talentosos e talentos desejosos precisa percorrer na vida para que se veja livre de seus próprios inebriamentos pessoais, a fim de se tornar um homem do espírito, não da própria vaidade de fazer bem o que ama, e de amar muito o que faz bem.

Quando comecei a pregar o fazia não só por paixão, mas também pelo prazer de meu próprio talento na arte de comunicar. Então Deus me deu uma overdose do que eu mais gostava, e deixou-me livre para provar de tudo, até que eu mesmo fiquei insatisfeito.

Foi apenas 15 anos após começar a pregar com intensidade que fui percebendo que já não o fazia pela alegria de sentir também meu próprio talento em uso.

Dois anos na Califórnia no final da década de 80 me serviram como ponto divisor entre a paixão pela pregação e a alegria de meu próprio talento pessoal. Foi naquele período que a paixão do dom venceu o desejo do talento como expressão de arte.

Depois houve mais uma década. Nos anos 90 experimentei outra coisa: a própria paixão pela pregação deu lugar a um grande cansaço, e surgiu em mim uma profunda vontade de silenciar, se eu pudesse.

Catástrofes aconteceram. Fiquei três anos em silencio para fora, e cheio de gritos feitos de gemidos para dentro.

Era mais uma etapa no processo de criar desgosto até pela pregação a fim de que ela deixasse de ser também paixão, e se tornasse uma expressão apenas do espírito, não mais de minha alma.

Isto é assim como preparação para o dia em que você é posto de lado, pois sou apenas um instrumento, e como tal um dia serei substituído por outros ou forçado a aposentar-me pela fraqueza ou pela velhice ou pela morte.

E quando este dia chegar, fico feliz que já tenha ficado livre de qualquer gosto pela coisa-em-si antes mesmo que ela deixe de ser um fato para mim.

Por isto, a cada dia, menos paixão de alma preciso para abrir a Palavra, pois mais lucidez de espírito me acomete como resultado da libertação da pregação como desejo, paixão e talento humano.

A cada dia que passa minha liberdade na Palavra cresce, e cresce na mesma medida em que minha alma não depende das emulações que advinham de meu prazer na perfumaria da pregação e do gosto de chocolate da arte de comunicar.

Assim, livre de toda a tentação da própria pregação, sinto-me a cada dia mais livre no meu espírito para ser apenas da Palavra e do Vento.

A fim de fazer a vontade de Deus no espírito, e não conforme os desejos da alma—por mais nobres que sejam tais desejos—, você tem que saber que o servo inútil é aquele que faz apenas tudo.

A utilidade do servo começa quando ele sabe que fazer tudo da melhor forma, e com toda arte e beleza, ainda é coisa de quem faz para si mesmo.

Daí somente uma grande intoxicação de pregação salva o indivíduo da pregação como perfume, chocolate e paixão pessoal, e põe a pessoa no caminho no qual a pregação já não carrega auto-gratificação, mas consciência no espírito.

Nesse dia o pregador se torna apenas um mensageiro, e a pregação se torna vento, e o vento leva a Palavra como espírito, e o coração já nem sente que aquilo tem alguma coisa a ver com ele.

A salvação do talento de um mensageiro de Deus é transformar-se em espírito, ao invés de existir como pulsão de alma.

A alma quer gratificação. O espírito se compraz em ser-vir, sem pensar que o faz, e muito menos que é alguma coisa.

Caio

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