Dois mil anos se passaram e os crentes do século 21 têm um visual totalmente diferente dos patriarcas da fé. Com piercings e roupas heterodoxas, criatividade e amor pelas almas, crentes de perfil alternativo organizam trabalhos que falam de Jesus de maneira despojada.

Muros grafitados, uma grande sala escura com pouca iluminação, mesas e cadeiras de bar. Em um pequeno palco, uma banda de rock se apresenta, enquanto telões com imagens e designers modernos ilustram a projeção das letras das músicas cantadas. Há muitos jovens, animação e, claro, som barulhento. Em outros tempos, um ambiente com esta descrição poderia ser tudo, menos uma igreja – mas hoje, espaços assim, chamados de alternativos, são cada vez mais comuns no segmento evangélico.

No caso, é o Projeto 242, uma comunidade cristã que há dez anos recebe um público que pode ser caracterizado como underground. Ela é, na verdade, uma congregação da Igreja do Evangelho Quadrangular, uma das maiores denominações evangélicas do país, plantada na Vila Mariana, um dos bairros mais conhecidos da cidade de São Paulo. Projeto 242, o nome “fantasia”, é inspirado na passagem de Atos 2.42 (“E perseveravam na doutrina dos apóstolos, e na comunhão, e no partir do pão, e nas orações”), uma referência ao modo de vida da Igreja primitiva.

Dois mil anos se passaram e os crentes do século 21 têm um visual totalmente diferente dos patriarcas da fé. No Projeto 242, os freqüentadores e membros ostentam tatuagens, exibem piercings afixados em diversas parte do corpo e usam roupas bem heterodoxas, sem qualquer receio de serem julgados ou reprimidos por isso. Segundo Sandro Baggio, pastor da comunidade, o objetivo da igreja era exatamente esse. “Decidimos quebrar alguns paradigmas do que é ser igreja – essas coisas de formato de reunião e liturgia. Resolvemos alcançar pessoas que têm dificuldade de se enquadrar nos tipos mais convencionais de congregação”, explica o líder.

A idéia de ser uma alternativa às tradicionais comunidades cristãs parece ter dado certo. Hoje o Projeto 242 recebe, aproximadamente, 150 pessoas nos fins de semana e conta com 120 membros fiéis, gente que se identifica com o modelo alternativo adotado ali. O pastor acompanha a moçada no estilo moderno, e não apenas no visual. Ao invés de proferir sermões detrás de um púlpito, ele prefere sentar-se em um banquinho e fazer da pregação da Palavra uma forma de conversa entre amigos. O louvor também é diferente e faz lembrar um show pop, em que o público pula e dança – a diferença é que as mensagens passadas pelas músicas exaltam o nome de Cristo e enfatizam a necessidade de mudança de vida pela fé. Outra curiosidade é a reunião semanal que acontece às terças-feiras. Numa metáfora da Santa Ceia, o grupo parte uma pizza, em vez de pão, e estudam a Bíblia com o mesmo entusiasmo com que discute um filme ou algum tema atual.

“Queremos ser mais uma alternativa, sem desprezar ninguém nem ter a pretensão de sermos melhores do que qualquer outra igreja. A igreja é essa multiforme sabedoria de Deus; então, ela tem várias formas e é feita para várias pessoas”, recita Baggio. Mas, querendo ou não, há muitas diferenças entre o grupo e as igrejas convencionais. Uma delas é a discrição em relação ao dinheiro. Segundo o pastor, é possível que uma pessoa freqüente as reuniões durante meses sem que ouça qualquer menção a ofertas e dízimos. “As pessoas com as quais estamos tentando nos relacionar muitas vezes dizem que não vão à igreja porque acham que elas só estão interessadas em dinheiro”, explica. Por ser uma iniciativa que recebe um público que não se encaixa nas tradições evangélicas, o Projeto 242 também é bastante versátil. Seu templo, se é que podemos chamar assim, está sempre aberto à apresentação de outras bandas, inclusive de fora do segmento evangélico. Outra ação evangelística é o projeto missionário O Toque, realizado junto a crianças de rua, travestis e prostitutas da Cracolânda, uma região barra-pesada de São Paulo.

Roda de amigos

Já na Celva, o que vale é a espontaneidade e uma maneira para lá de despojada de viver a fé. A Celva (assim mesmo, com “C”) é um grupo de jovens, ligados a diversas igrejas, que reúnem-se toda semana em busca de comunhão e edificação, fora das paredes do templo. Daí vem o nome da comunidade, que significa Comunhão, Edificação e Louvor entre Verdadeiros Amigos. As reuniões acontecem toda sexta-feira em locais diferentes – geralmente, nas casas dos integrantes – e têm música, orações e mensagens. Nada ali faz lembrar os cultos evangélicos mais formais. Em toda reunião, há também uma espécie de sorteio de “amigo secreto”: cada participante retira um nome de uma urna e compromete-se a conhecer melhor e orar por aquela pessoa ao longo da semana.

O grupo nasceu de maneira despretensiosa há aproximadamente quatro anos, e mais tarde tornou-se um ministério de edificação interdenominacional. Renata Veiga, uma das líderes do ministério, conta que amigos crentes, que se encontravam todo fim de semana, resolveram fazer algo mais do que sair para ir ao cinema ou lanchar. “No início, eram poucos. Estudávamos juntos a Bíblia, fazíamos devocionais… Acontece que o grupo de amigos foi crescendo e, quando se viu, as reuniões já atraíam um número que ultrapassava o de muitos grupos de jovens de igrejas tradicionais”.

“A gente começou com um foco mais evangelístico, mas com o tempo percebemos que quem aparecia na Celva não eram pessoas não-crentes, e sim crentes em busca de edificação e de alguma coisa diferente”, diz Renata. “Havia também quem estava começando a se despertar para Jesus, embora estivesse na igreja há bastante tempo.” Depois de mais de uma centena de reuniões, a Celva começou a tomar forma parecida com o que é hoje – um ministério com liderança, missão, visão e objetivos. Desde então, além das tradicionais reuniões, o grupo já realizou alguns eventos evangelísticos, chegando a reunir cerca de 120 jovens. No entanto, o que parece mesmo atrair a galera é o aprendizado e crescimento espiritual possibilitados pela convivência em grupos menores que o de uma igreja estabelecida.

Uma das estratégias para tentar manter o pessoal antenado e unido espiritualmente é o site da comunidade, onde são marcados os encontros e também é publicado um estudo devocional que orienta o debate das sextas-feiras. Além disso, a Celva também faz uso da modernidade: está presente em comunidade do orkut, fotolog e chats. E apesar de, a cada dia, receber novos jovens, até mesmo de outras cidades, a liderança do grupo deixa bem claro que a idéia não é se tornar uma igreja, alegando que assim perderiam a informalidade e liberdade que hoje existe. “O foco da Celva é ser um lugar onde as pessoas possam conversar livremente e se abençoar, se ajudar. É um local bacana para construir um relacionamento cristão. Isso é uma coisa que foi boa pra gente e queremos que isso seja legal pra outras pessoas também”, explica Débora Pinheiro.

Em busca dos doidões

O evangelismo underground no Brasil ganhou força nos anos 1980, quando diversos grupos surgiram na esteira deixada por trabalhos pioneiros como o da Igreja Cristo Salva, em São Paulo, e Comunidade S8, na Região Metropolitana do Rio. Reunida num casarão do bairro Higienópolis, na capital paulista, a Cristo Salva era uma igreja sem cara de igreja: ali, jovens de diversas tribos paulistanas ouviam a Palavra de Deus em uma linguagem que podiam entender, sem as amarras litúrgicas e a ênfase em usos e costumes então em voga no segmento evangélico.

À frente do ministério, o pastor Cássio Colombo, falecido em 1999, fazia de seus cultos uma pescaria de almas pouco convencionais: atraía hippies, roqueiros e doidões de todo tipo, assim como gente considerada normal, simplesmente em busca de algo novo. Por ali passaram, entre outros, o evangelista Alex Dias Ribeiro, ex-piloto de Fórmula 1 e fundador do Ministério Atletas de Cristo, e o pastor Luciano Manga, que juntamente com outros músicos da comunidade, fundou a banda Oficina G3, até hoje na estrada.

Outro trabalho que marcou época foi o da Comunidade S8. Liderado pelo pastor presbiteriano Geremias de Matos Fontes, a obra nasceu dentro da casa da família quando um de seus filhos, embora criado no Evangelho, viciou-se em drogas. Liberto à custa de muita oração dos pais, ele começou a trazer seus amigos para ouvirem os conselhos de Geremias e sua mulher, Noeli, carinhosamente chamado de tios pela moçada. O ministério cresceu e virou um atuante centro de recuperação de dependentes químicos, que funcionava lado a lado com uma igreja bastante original e que marcou época. O trabalho continua até hoje, liderado por aqueles que, há coisa de 30 anos, estavam perdidos no submundo do tóxico e ainda contando com a emblemática presença de tio Gere.

Outro ícone do evangelismo alternativo foi o pastor Fábio Ramos de Carvalho, fundador da curiosíssima igreja Caverna de Adulão, sediada em Belo Horizonte (MG). Com base no texto bíblico de I Sm 22, que narra como o jovem Davi, perseguido pelo rei Saul, refugiou-se em uma caverna, reunindo pessoas que, como ele, “achavam-se em aperto, endividados e amargurados de espírito”, Fábio saiu às ruas em busca de almas perdidas. Encontrou punks, metaleiros, skin-heads e outros bichos, a quem mostrou o caminho da salvação. Na Caverna de Adulão, a busca pelo Senhor passa por caminhos diferentes. No site, o grupo se descreve como “uma comunidade formada por pessoas de padrões sócio-culturais diferentes, onde as diferenças são respeitadas e servem para mostrar a riqueza da diversidade criativa de Deus”. Fábio morreu no ano passado, durante uma viagem evangelística a Cuba – sofreu um infarto fulminante aos 42 anos –, mas o trabalho segue firme, trazendo para a rede de Jesus alguns peixes que, de outra maneira, dificilmente abraçariam a fé.

Fonte: Revista Eclésia

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